50 anos de CITES: Tráfico de espécies é uma “ameaça tremenda” à biodiversidade
Foi há precisamente 50 anos que a Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas de Fauna e Flora Selvagens (CITES) foi adotada. Em Washington, D.C., capital dos Estados Unidos da América, representantes de 80 países reconheceram que a vida selvagem é “uma parte insubstituível dos sistemas naturais da Terra que deve ser protegida” e que “os povos e os Estados são e devem ser os melhores protetores das suas próprias fauna e flora selvagens”.
Assim, no dia 3 de março de 1973, este tratado foi adotado e a 1 de julho de 1975 entrou em vigor. O objetivo? Assegurar que o comércio internacional de animais e plantas selvagens não representa uma ameaça para a sobrevivência dessas espécies.
Estima-se que todos os anos esse tipo de comércio gere milhares de milhões de dólares em todo o mundo, com centenas de milhões de animais e de plantas a atravessarem fronteiras, podendo passar, em muitos casos, por diversos países entre a origem e o destino.
A CITES, que conta hoje com 184 Estados-contratantes, pretende regular o comércio de espécies que se consideram estar ameaçadas de forma a evitar que a sua exploração possa exceder a sua capacidade de recuperação. Ou seja, com este instrumento legal pretende-se impedir que espécies de animais e de plantas desapareçam devido a práticas comerciais insustentáveis.
Portugal juntou-se à CITES em dezembro de 1980 e a convenção passou a vigorar no país em março do ano seguinte.
Uma das características distintivas desta convenção são os seus Apêndices. No Apêndice I estão listadas todas as espécies ameaçadas de extinção cuja sobrevivência está a ser ou pode vir a ser afetada pela sua comercialização. Por isso, o comércio desses animais e plantas está sujeito a uma “regulação particularmente rigorosa”, como se pode ler o no texto da CITES, “para não ameaçar ainda mais a sua sobrevivência”. No entanto, geralmente o comércio destas espécies do Apêndice I é proibido.
O Apêndice II, por sua vez, é constituído, essencialmente, por espécies de fauna e de flora que, embora não o estejam nesse momento, possam vir a ser empurradas para o limiar da extinção se a sua comercialização não foi devidamente regulada. O comércio internacional dessas espécies só é possível mediante a emissão de uma licença por parte das autoridades nacionais com competências sobre a gestão e conservação da Natureza. No caso de Portugal, essa responsabilidade recai sobre o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF).
Por fim, existe um Apêndice III, pouco falado, que inclui espécies cujo comércio é regulado por algum dos Estados-contratantes e que, para garantir que não desaparecem por via da extinção, requerem a cooperação de outros países para controlar a sua comercialização a nível internacional.
Atualmente, estima-se que, no seu conjunto, os três Apêndices englobem mais de 38 mil espécies de plantas e de animais, sendo que quase todas fazem parte do Apêndice I. Não importa o tamanho ou o grupo taxonómico ao qual pertença, se estiver ameaçada pelo comércio internacional essa espécie passará a fazer parte de um dos apêndices, e a grande maioria das espécies listadas são espécies de plantas.
Tal como acontece com outras convenções internacionais, no âmbito da CITES são convocadas Conferências das Partes (COP), também conhecidas com ‘conferências da vida selvagem’, durante as quais os vários Estados-contratantes são chamados a rever a implementação da convenção e a decidir sobre a inclusão ou retirada de espécies dos apêndices ou a mover espécies de um apêndice para o outro, consoante a avaliação do seu estado de ameaça face ao comércio internacional.
No passado mês de novembro, teve lugar mais um desses encontros, a COP19, dessa feita no Panamá, onde se reuniram delegações de mais de 160 países, bem como diversas organizações da sociedade civil. Do encontro resultou a adoção de propostas, apresentadas pelos Estados-parte, que, no seu total, incluíram mais de 500 novas espécies de plantas e de animais nos apêndices para regular o seu comércio internacional, algo que o Secretariado da CITES, o órgão máximo que gere a implementação da convenção entre as COP, considera ser um sinal claro do compromisso dos países para combater a crise da perda de biodiversidade.
Sobre a COP19, é de destacar a adição aos Apêndices de 54 novas espécies de tubarões e raias, das quais 19 estão hoje ameaçadas ou criticamente ameaçadas de extinção, o que a organização ambientalista WWF considerou ser uma decisão “histórica”. A inclusão dessas espécies de elasmobrânquios faz com que agora perto de 90% do comércio internacional desses animais só possa acontecer mediante a emissão de uma licença e se não colocar em risco a sustentabilidade e sobrevivência dessas populações.
50 anos depois: CITES “longe de ser um tratado perfeito” mas “um dos mais bem-sucedidos acordos ambientais multilaterais”
Numa altura em que se estima que mais de um milhão de espécies enfrentam o real risco de desaparecerem por completo, que mais de 35% dos stocks de peixe a nível global estão a ser sobre-explorados, e que se prevê que o aumento da população humana mundial colocará ainda maior pressão sobre os recursos naturais do nosso planeta, a proteção das espécies que estão sob a nuvem negra da extinção e das que, sem as medidas corretas, podem vir a sofrer o mesmo destino é de crucial importância.
Por isso, a CITES pode ser percebida como “um tratado que está entre o Comércio, o Ambiente e o Desenvolvimento Sustentável”, explicou-nos Ivonne Higuero, Secretária-geral da convenção, a partir de Washington, D.C., onde esta sexta-feira decorreram as celebrações do Dia Mundial da Vida Selvagem, uma efeméride criada pelas Nações Unidas que pretende chamar a atenção do mundo para a beleza da Natureza e de todas as formas de vida que dela fazem parte e para a urgência de as proteger.
Meio século após a adoção da CITES, e reconhecendo que “está longe de ser um tratado perfeito”, Higuero, que é bióloga de formação, acredita que esse é “um dos mais bem-sucedidos acordos ambientais multilaterais” e assinala que “sem esta convenção estaríamos numa situação bem pior”, referindo-se à perda de diversidade de espécies que hoje configura, a par da poluição e das alterações climáticas, uma das maiores crises planetárias dos nossos tempos.
A responsável recorda que, através desta convenção, foi possível ajudar os Estados-contratantes a melhorarem e a reforçarem as suas legislações nacionais sobre o comércio internacional de espécies ameaçadas de animais e de plantas e até fazer com que país que não tinham essa legislação passassem a tê-la.
O trabalho dos Estados-parte da CITES, segundo Higuero, permitiu já melhorar o estado de conservação de várias espécies, levando à sua passagem do Apêndice I, o nível mais alto de proteção ao abrigo da convenção, para o Apêndice II. No entanto, disse-nos que não têm feito essa transição tantas espécies quanto as que gostaria, “pois isso realmente demostra o sucesso da convenção, mas é encorajador ver algumas a passarem do Apêndice I para o Apêndice II”. E, em alguns casos, embora mais restritos, tem sido mesmo possível retirar completamente as espécies das listas devido aos aumentos populacionais que permitem afastar o perigo de extinção devido ao comércio.
Tráfico de espécies é uma “ameaça tremenda” à biodiversidade
A SG da CITES salientou também que este tratado tem sido uma importante ferramenta no combate ao tráfico ilegal de espécies ameaçadas, promovendo uma maior transparência e rastreabilidade do comércio desses animais e plantas, desde o local em que foram colhidos até ao destino final. A esse respeito, destacou o trabalho que tem sido feito, especialmente ao nível do Consórcio Internacional de Combate aos Crimes contra a Vida Selvagem (ICCWC), com a Interpol, com o Banco Mundial, com o Gabinete das Nações Unidas para as Drogas e o Crime (UNODC) e com a Organização Mundial das Alfândegas.
“Por todo o mundo, são feitas cada vez mais apreensões de vida selvagem comercializada ilegalmente”, contou-nos, especialmente nas zonas portuárias, que são muitas vezes as portas de entrada para produtos derivados da vida selvagem que violam as regras da CITES.
Apesar dos esforços, Higuero considera que “temos de fazer muito mais para combater essas organizações criminosas internacionais que estão envolvidas no tráfico de espécies ameaçadas”, mas observou que, de facto, tem sido possível verificar uma melhoria na capacidade para frustrar essas atividades ilegais.
O tráfico de espécies selvagens ameaçadas “é definitivamente uma ameaça tremenda”. Ao contrário do comércio legal, em que é possível perceber se uma espécie está a ser sobre-explorada e aplicar medidas para resolver o problema, a avaliação dos impactos do comércio ilegal nas espécies é muito mais difícil.
“Temos grandes apreensões de escamas de pangolins. Quantos animais estão a ser mortos? Não conseguimos saber ao certo”, contou-nos Higuero, reconhecendo que se trata de uma ameaça “muito difícil de combater”. Como tal, defende que a formação das autoridades fiscalizadoras do comércio e a implementação de ferramentas tecnológicas, como a Inteligência Artificial, são muito importantes nessa luta.
“Claro que o ideal é deixar de haver apreensões. Não porque não houvesse capacidade para fazê-las, mas porque esses crimes já não aconteceriam”, confessou-nos a responsável, argumentando que os crimes contra a vida selvagem “devem ser tratados como qualquer outro crime grave, com penalizações, com multas e com penas de prisão significativas”, que, segundo Higuero, devem ser aumentadas e não ser meros castigos simbólicos.
A caça-furtiva, especialmente de elefantes e de rinocerontes, e o comércio de certos produtos derivados de espécies em risco, como bexigas-natatórias de vaquitas, o cetáceo mais ameaçado em todo o mundo, têm diminuído nos últimos anos, de acordo com a responsável, mas “temos de nos manter atentos”. E o tráfico ilegal de madeiras e de enguias, por exemplo, continua a ser “muito preocupante”, alertou Higuero, acrescentando que “ouvimos falar muito do tráfico de marfim de elefantes, mas menos de pau-rosa”, um material que ainda é alvo de “uma grande procura”.
Assim, “não há como negar que ainda há procura por estes produtos”, pelo que “temos de continuar a luta contra os crimes contra a vida selvagem”.
Na proteção da biodiversidade, não podemos esquecer as comunidades locais e os povos indígenas
A Secretária-geral da CITES lembrou também que é preciso não esquecer os impactos que a restrição do comércio de espécies selvagens tem sobre as comunidades locais e povos indígenas, pois para muitos deles grande parte do seu rendimento, ou mesmo a sua totalidade, depende desse comércio.
“Trabalhamos com eles para que possam perceber melhor a responsabilidade que têm em manter esses habitats onde esses animais e plantas selvagens existem, procuramos assegurar que são recompensados pelo trabalho que fazem em prol da sua conservação e que as suas vozes são ouvidas”, relatou Ivonne Higuero, sustentado que existem já estudos que comprovam que as terras geridas por povos indígenas e comunidades locais, que tenham direitos sobre elas, prosperam muito mais do que outras que não o são.
Investimento e redução da procura são a chave para combater o comércio ilegal e preservar a vida selvagem
Quanto ao futuro, Ivonne Higuero mostra-se confiante de que a CITES continuará a sua missão de combate às atividades criminosas e ilegais que contribuam para a perda de biodiversidade. Destacou como melhorias vindouras a crescente digitalização das licenças de comércio, para combater os riscos de fraude e corrupção, o papel dos jovens na redução da procura por produtos do comércio irregular de vida selvagem e na consequente redução da oferta, e a consolidação do papel da convenção enquanto mais uma ferramenta para ajudar a evitar novas pandemias, embora, claro, admita que “nunca será zero”.
E o financiamento é, obviamente, algo que não só é fundamental para combater o comércio ilegal de espécies ameaçadas, mas também para revitalizar a Natureza, reparar os danos que por nós lhe foram e continuam a ser infligidos e ajudar as plantas e os outros animais a recuperarem de séculos de exploração desmedida.
Higuero afiançou que “é realmente preciso perceber que investir na biodiversidade, investir na Natureza, é algo que vale a pena fazer, porque ganhamos muito com isso”, não apenas, e não de somenos importância, para garantir a diversidade de vida que torna o nosso planeta único, mas também porque isso é investir no nosso próprio bem-estar e na garantia de podemos continuar a beneficiar dos serviços, muitas vezes indispensáveis (como a polinização, os ciclos de água, a captação de carbono), que os ecossistemas nos proporcionam, e dos quais nós quase nunca nos apercebemos ou tomamo-los por garantidos.
E porque a conservação das espécies “tem custos”, o dinheiro não pode vir apenas da esfera pública. Para a Secretária-geral da CITES, deve também fluir do setor privado, não só de empresas, mas também de pessoas com grandes fortunas, que podem ser fundamentais para assegurar que conseguimos estancar a perda de biodiversidade e que podemos recuperar a Natureza antes que seja demasiado tarde.
“É fundamental passar a mensagem de que não há qualquer necessidade para comprar produtos ilegais, que é preciso continuar a pressionar os governos para que façam o que é correto e para penalizarem os criminosos e assegurarem que esses cumprem penas de prisão efetivas, para que não seja um crime fácil de cometer”, sublinhou Ivonne Higuero, acautelando, ainda assim, que é preciso também encontrar alternativas ao comércio ilegal de espécies ameaçadas, porque para muitos essa via é a única fonte de subsistência e é uma realidade que não pode ser ignorada, pois essas pessoas “também precisam de por comida na mesa, de educar os seus filhos e de ter acesso à saúde”.