A crise não mora aqui



Os bairros de Lisboa estiveram em “guerra” no final do ano passado. E por um bom motivo: durante um dia A Padaria Portuguesa oferecia pães de deus ao bairro vencedor. Campo de Ourique foi o felizardo. A disputa decorreu no Facebook e animou os fãs desta rede de padarias/pastelarias. “Pretendemos devolver aos bairros a vida de bairro. Mais do que vender pão e bolos, o nosso objectivo é transaccionar relações sociais”, apresenta Nuno Carvalho, director–geral de A Padaria Portuguesa. Após vários anos a trabalhar no Grupo Jerónimo Martins, a determinada altura sentiu que “tinha reunido competências para desenvolver um negócio próprio que acrescentasse valor ao país”. Dito e feito, a avaliar pelo ritmo de abertura dos espaços e sucesso junto dos clientes.

Em contraciclo, A Padaria Portuguesa terminou 2012 com 13 lojas e mais de 200 colaboradores, entre os espaços comerciais e a fábrica, para produção própria de pão e bolos. E não fica por aqui. “Até ao final do ano deveremos ser cerca de 300”, adianta Nuno Carvalho, ao mesmo tempo que prevê a abertura de sete lojas ao longo de 2013. Franchisar está fora de questão e “possivelmente iremos entrar noutros mercados que não a Grande Lisboa”. O segredo desta receita de sucesso? “A peça-chave é a qualidade da equipa fantástica que diariamente trabalha com um foco enorme no consumidor final”, explica o responsável. Ao mesmo tempo, aponta três factores: “Relação qualidade/preço acima da média; lojas com ambiente agradável, que resulta numa experiência de compra especial; relação próxima com os bairros e comunidades envolventes”.

Com uma “proposta de valor adequada a tempos difíceis”, Nuno Carvalho não receia a actual conjuntura. Até porque A Padaria Portuguesa actua numa área com hábitos enraizados na nossa cultura. “É certo que há retracção de consumo, mas se os portugueses não tiverem possibilidade de tomar um café e comprar pão estaremos mesmo muito mal”, desabafa. “A decisão de arrancar com um negócio num cenário económico recessivo tem inerente a predisposição para correr risco. Contudo, por se tratar de um negócio de comida barata, tem um grau de risco menor do que muitos outros negócios”.

Diferente, com muito gosto

Além da simpatia do atendimento e qualidade dos produtos, A Padaria Portuguesa assenta numa imagem própria que a diferencia dos outros espaços, ao mesmo tempo que lhe confere identidade. É fácil perceber que se está numa loja desta rede de padarias/pastelarias. O mesmo acontece numa livraria quando nos deparamos com um livro da Tinta da China.

“Muitas editoras fazem livros lindíssimos – não achamos que fazemos melhor –, mas fazemos de forma que é fácil identificar que somos nós”, reconhece Bárbara Bulhosa, livreira durante dez anos e que em 2005 lançou-se no mundo da edição com Inês Hugon. Desde o início que a aposta reside na diferenciação. “A nossa preocupação não foi fazer os livros assim porque sabemos que vendem ou funcionam em termos comerciais. Vamos fazer uma coisa diferente, vamos fazer livros como nós gostamos mesmo dos livros”. E há mais quem goste. A Tinta da China conquistou um grupo de leitores fiel e especial: “Trabalhamos para um público que gosta muito de livros, aqueles que, com muito ou pouco dinheiro, consomem sempre”.

Os títulos publicados são criteriosamente seleccionados, sempre em nome da qualidade. “Foi também uma ideia inicial – e temos mantido essa convicação –, ter um catálogo coerente, só com bons autores, muita qualidade. Se vendem muito? Não, não vendem. Não são autores best-sellers, com excepção do Ricardo Araújo Pereira”. Mas Bárbara Bulhosa não sonha com uma grande editora. É no acompanhamento próximo das várias fases da produção de um livro que reside a alma deste negócio, tal como o prazer que toda a equipa retira do trabalho que faz diariamente. “Não produzimos assim tanto e não queremos produzir mais: isso tira-nos atenção”.

“Small is the new big”, é assim que Carlos Coelho, um dos fundadores da agência Ivity, empresa especialista em criação, gestão de marcas e programas de inovação, resume a Tinta da China. Para este especialista, as marcas só têm a ganhar com “uma boa dose de ‘essensualidade’ (essencial+sensual), que manterá os consumidores despertos para a relação [de fidelidade] e induzirá comportamentos de repetição na compra e de proximidade relacional”.

Fora de portas

A Tinta da China levou a “essensualidade” dos seus livros para o outro lado do Atlântico. “Não é que o Brasil precise, mas temos alguns autores que não estão lá e que achamos que são muito bons”, explica Bárbara Bulhosa, que tem várias apresentações de escritores portugueses em terras brasileiras agendadas para este ano. A ideia surgiu numa altura em que editora receou pelo futuro do mercado nacional. Face à boa receptividade dos livros Tinta da China em feiras internacionais, pensou: “Isto é exportável”. Razões várias levaram-na ao país de Jorge Amado. “Não vamos conquistar o Brasil, vamos tentar divulgar os nossos autores lá e apresentar autores brasileiros cá”.

Já Miguel Amaro quer conquistar o mundo com a plataforma UniPlaces. Ainda longe dos 30 anos, este empreendedor nato, juntamente com três amigos, deu vida a uma ideia que ajuda os estudantes universitários a encontrar casa. “Ainda não existe um portal que consolide e solucione toda a procura e oferta de alojamento universitário internacional, e a UniPlaces espera estar a construir essa solução global”, assume. A ideia surgiu quando Miguel Amaro, Mariano Kostelec, da Argentina, e Ben Grech, do Reino Unido, vieram para Portugal, depois de estudarem no estrangeiro, para criar um negócio próprio. Primeiro obstáculo: encontrar um lugar para viver. “Foi muito complicado”, recorda. A ideia do negócio surgiu precisamente dessa dificuldade: procurar casa nos anúncios colocados nos postes, como lhes recomendaram, não era método.

A UniPlaces, plataforma de alojamento universitário, começou no Parque de Ciência e Tecnologia da Universidade do Porto, em Novembro de 2011. Dois meses depois mudou-se para a capital, incubada na Startup Lisboa. Hoje encontra–se também no Chile, após vencer a Startup Chile, e no Reino Unido, e conta com o apoio de dois investidores e mais um sócio, Leo Lara, de Espanha. Simplificação é palavra de ordem neste projecto. A plataforma é “muito escalável”, fácil de usar e com oferta de serviços complementares, como seguros e clínicas de advogados. “Queremos ser o Google para o alojamento”, afirma Miguel Amaro. Para já, tem mais de 21 mil anúncios em Portugal, dos quais mais de 7 mil foram colocados directamente pelos senhorios, e “27 parceiros universitários de todo o país”.

Revolta criativa

Tempos de crise são, simultaneamente, arriscados e acertados para dar vida a uma ideia. Apesar das muitas empresas que fecham diariamente, também todos os dias surgem outras. Basta frequentar um mercado urbano ou feira de artesanato, ou espreitar a plataforma de crowdfunding Massivemov para perceber que há vontade de fazer, seja por ambição, seja por necessidade.

“O Homem só se move ou por dor ou por amor”, afirma Carlos Coelho. E a crise incita à acção, garante. “Cria a instabilidade que acorda o desconforto, que acorda a necessidade que resulta em dor e que se transforma em energia de revolta. Acordados e sem alternativa construímos pontes sobre as dificuldades que fabricamos com o cimento do amor e da água de lágrimas”. Não há respostas mágicas que expliquem por que algumas empresas e marcas sobrevivem aos tempos conturbados e outras sucumbem. As que “melhor resistem são normalmente as que dispõem de sistemas ‘anti-sísmicos’ capazes de abanar, mas não cair. Isso significa que nem são as mais antigas, nem as mais novas – são aquelas que forem capazes de se prepararem para os terramotos dos mercados”, diz o responsável da Ivity.

O tempo dirá se A Padaria Portuguesa, Tinta da China e UniPlaces pertencem a esse clube. Para já estão de parabéns e continuam de olhos postos no futuro, cheias de planos para o presente. “Até ao ano passado eu dizia sempre: ‘Vou sobreviver mais um ano’. Hoje acho que também vou sobreviver mais este”, admite Bárbara Bulhosa. Para este ano preparou um plano editorial “muito ambicioso”, com o lançamento, entre outros, de nova ficção de autores como Dulce Maria Cardoso e Pedro Rosa Mendes, a estreia de uma colecção de poesia e a edição, em Portugal, da conceituada revista literária Granta.

Com o sonho que “A Padaria Portuguesa chegue a todos os portugueses”, Nuno Carvalho assume que os dois anos de actividade voaram. “Ainda agora começámos. Acho que fiz muito pouco em relação ao que acredito que possa vir a fazer”. Também para a UniPlaces o melhor ainda está para vir: “2013 auspicia-se de crescimento. Temos algumas novidades preparadas para os próximos meses e estamos bastante optimistas”. Mesmo em tempos de crise, sempre que o Homem sonha, o mundo pula e avança.

Este artigo foi originalmente publicado na Recicla nº10. Pode ler todas as edições da Recicla no site da Sociedade Ponto Verde, em http://www.pontoverde.pt. Agora pode também fazer o download da aplicação Recicla para iPad e Android.





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