Arqueólogos investigam História de escravos africanos no Vale do Sado
A presença de escravos africanos no Vale do Sado entre os séculos XV e XVII vai ser estudada por uma equipa internacional de arqueólogos a partir de sábado, disse à agência Lusa Rui Gomes Teixeira que vai dirigir os trabalhos.
“Este é um projeto que pretende evidenciar a longa presença africana no Vale do Sado [Alcácer do Sal] e, de forma muito particular, as pessoas que foram escravizadas e levadas para a região a partir do século XV”, disse à Lusa o arqueólogo da Universidade de Durham e do Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa.
“Essas pessoas não eram sujeitos passivos e criaram formas próprias de socialização e de luta e que deram contributos para uma cultura comum no Alentejo”, ao longo dos séculos, explica.
Para o arqueólogo é importante sublinhar que “estes africanos escravizados” e enviados para o Vale do Sado “não são um corpo externo como muitas vezes se imagina sem se pensar muito nisso”.
“São pessoas que fazem parte integralmente da formação do país desde uma época muito antiga e, considerando todos estes legados, podemos considerar mesmo Portugal como o país mais africano da Europa”, frisa.
“Durante muito tempo [esta comunidade] foi conhecida como ‘negros do Sado’ e isso gerou uma série de preconceitos que foram sentidos até muito recentemente. Hoje em dia tem havido cada vez mais interesse por parte de investigadores e da sociedade em geral o que ajuda a dar mais visibilidade às pessoas da região do Sado”, descendentes dos escravos, refere Rui Gomes Teixeira.
Este projeto arqueológico, que se vai prolongar durante todo o mês de agosto, envolve diretamente desde o início a Djass – Associação de Afrodescendentes, a Associação Batoto Yetu Portugal, a Câmara Municipal de Alcácer do Sal e a Associação da Defesa do Património de Alcácer do Sal.
Integrada nesta investigação vai decorrer no Monte do Vale de Lachique, junto a São Romão do Sado, no dia 05 de agosto, pelas 12:00, uma cerimónia de homenagem às vítimas da escravatura, de reconhecimento dos ancestrais africanos e dos contributos que conferiram à cultura alentejana.
A cerimónia vai ser acompanhada pelo músico Ebrima Mbye, pelos percussionistas da Associação Batoto Yetu Portugal, e pelo Grupo Coral Feminino “Paz e Unidade” de Alcáçovas.
Em concreto, os trabalhos arqueológicos começam no sábado e vão consistir, numa primeira fase, na prospeção geofísica do terreno do Monte do Vale de Lachique onde os arqueólogos vão tentar encontrar algumas estruturas mais antigas que não estão visíveis.
Esses vestígios podem ajudar a encontrar “cultura material” dos séculos XV e XVI que já foram detetados à superfície e que podem estar associados à fase que corresponde ao tempo em que as pessoas escravizadas foram pela primeira vez levadas para aquela zona.
A partir dessa escavação vão ser recolhidos também dados ambientais (arqueobotânica) que podem permitir fazer uma reconstituição do meio ambiente da região nas últimas centenas de anos.
Esta análise, em particular, vai ser feita em ligação a um trabalho que já foi feito por investigadores da Faculdade de Ciências da Universidade Lisboa e que fazem parte do projeto.
O projeto mais amplo enquadra-se na investigação “Ecologias da Liberdade: Materialidades da Escravidão e Pós-Emancipação no Mundo Atlântico” que pretende entender os impactos do colonialismo e da escravatura no meio ambiente e tentar saber de que forma as pessoas deram “evidência a uma ideia de liberdade com base nos constrangimentos sociais” que foram impostos pela escravatura.
“Nós estamos a tentar comparar o Vale do Sado e Cacheu na Guiné-Bissau, onde trabalhámos no ano passado, numa antiga casa comercial que atualmente é o Memorial da Escravatura e também nas sondagens no rio Cacheu, no norte da Guiné-Bissau”, disse Rui Gomes Teixeira à Lusa.
Em Cacheu funcionou, durante o período colonial português, “um dos portos negreiros mais importantes da África Ocidental, que serviu o tráfico de escravos” e de onde foram trazidas muitas pessoas para Portugal.
Por outro lado, diz Rui Gomes Coelho, a questão dos africanos do Sado “ajuda a pensar” em questões sociais mais amplas da região alentejana como o acesso à terra ou a introdução dos vários cultivos, incluindo do arroz.
“Nós podemos imaginar que são experiências que se intercetam de alguma forma. É muito interessante porque podemos pôr como hipótese que a proletarização dos camponeses alentejanos pode estar relacionada com a chegada de pessoas escravizadas e que podem ter levado a baixar o valor do trabalho. Isso pode ter feito com que as condições de vida dos trabalhadores alentejanos a partir do século XV se tenham deteriorado”, diz.
Outro assunto que vai ser estudado é a introdução da cultura do arroz, até porque vários investigadores defendem que se trata de uma cultura introduzida no Vale do Sado graças ao conhecimento de africanos que se estabeleceram na região quando escravizados ou já depois da abolição da escravatura em Portugal.
Rui Gomes Teixeira refere ainda a importância da investigação da historiadora Isabel Castro Henriques (“Os ‘Pretos do Sado'”, editora Colibri, 2020), que entre outros aspetos estudou as igrejas e as confrarias das comunidades de escravos, mantendo os descendentes o associativismo local e as tradições orais “que são transmitidas entre elas e aos [seus] descendentes mantendo a memória das comunidades”.