Descarbonização das empresas: utopia ou realidade alcançável?
Em 2015, a adoção do Acordo de Paris inaugurou uma nova era da ação contra as alterações climáticas, estabelecendo os dois graus Celsius como o limite máximo do aumento da temperatura global até ao final do século face aos níveis pré-industriais.
Os especialistas apontam como fundamental a redução drástica, que deve ser transversal a todos os setores, das emissões de gases com efeito de estufa, como o dióxido de carbono e o metano, cuja concentração na atmosfera é sobretudo fruto da queima de combustíveis fósseis, da desflorestação e de práticas agrícolas insustentáveis.
Por isso, a União Europeia, com base nas orientações científicas do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), estabeleceu metas muito concretas para a descarbonização das sociedades e economias da região: cortar em 45% das emissões de gases com efeito de estufa até 2030 e alcançar a neutralidade carbónica até 2050. Como Estado-membro da UE, Portugal está obrigado a cumprir as metas ambientais traçadas em Bruxelas, e foi nesse seguimento que, em 2019, o Governo aprovou o ‘Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050’ (RNC 2050), através do qual é assumido o compromisso para atingir a neutralidade carbónica até meados deste século.
Esse esforço implica a redução das emissões entre 85% e 90% até 2050, face a valores de 2005, e “a compensação das restantes emissões através do uso do solo e florestas, a alcançar através de uma trajetória de redução de emissões entre 45% e 55 % até 2030, e entre 65 % e 75 % até 2040, em relação a 2005”, como se pode ler na Resolução do Conselho de Ministros n.º 107/2019. Entre os principais eixos estratégicos do RNC 2050 contam-se a promoção da “transição energética na indústria, a incorporação de processos de produção de baixo carbono e as simbioses industriais, promovendo a inovação e a competitividade”, a alteração do “paradigma de utilização dos recursos na produção e no consumo, abandonando o modelo económico linear e transitando para um modelo económico circular e de baixo carbono” e a utilização da fiscalidade como “um instrumento da transição para a neutralidade, prosseguindo com a eliminação dos subsídios prejudiciais ao ambiente, reforçando a aplicação da taxa de carbono e promovendo maior tributação sobre o uso dos recursos, reciclando as receitas para a descarbonização e transição justa”.
Apesar dessa meta, quer o Primeiro-ministro António Costa, quer o seu ministro do Ambiente e da Ação Climática, Duarte Cordeiro, disseram já que o país tem todas as condições para antecipar a neutralidade carbónica para 2045. Os compromissos ambientais de Portugal estão também patentes no Plano Nacional Energia e Clima 2021-2030 (PNEC 2030), que o Governo considera ser “o principal instrumento de política energética e climática nacional para a próxima década rumo a um futuro neutro em carbono” e que tem como um dos seus objetivos centrais “descarbonizar a economia nacional”.
O PNEC 2030 deixa claro que as empresas nacionais têm um papel central a desempenhar na descarbonização do país, algo que só acontecerá se, elas próprias, alcançarem essa neutralidade carbónica, por exemplo, através de maior eficiência energética, de mais investimento em investigação e inovação tecnológica no campo das energias renováveis e da formação de frotas automóveis com menores impactos ambientais. No programa do atual Governo, as alterações climáticas e a descarbonização são indicadas como um “desafio estratégico”, prevendo-se que a “transição energética que se perspetiva para a próxima década terá de mobilizar mais de 25 mil milhões de euros de investimento”, mas salientando- se que “a descarbonização é, também, uma estratégia de investimento e criação de emprego”. Para isso será precisa “uma aposta inequívoca no investimento em produção renovável que deverá mais do que duplicar a sua capacidade instalada, na próxima década, atingindo um patamar superior a 80% de renováveis na produção de eletricidade”.
Do programa político consta ainda o investimento de 715 milhões de euros, previstos no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), para promover “processos e tecnologias de baixo carbono na indústria”, a “adoção de medidas de eficiência energética na indústria”, a “incorporação de energia de fonte renovável e armazenamento de energia” e a “capacitação das empresas” para que possam “identificar as soluções tecnológicas eficazes, específicas para a indústria nacional e eficientes em termos de custos”. Muitas vezes se ouve dizer que o combate às alterações climáticas, que tem como um dos pilares centrais a descarbonização, deve mobilizar todos os setores das sociedades. Por isso, têm as empresas realmente um papel a desempenhar na construção de sociedades mais ambientalmente sustentáveis? Sem margem para dúvidas, os especialistas dizem que sim.
O PAPEL DAS EMPRESAS
“Se assim não for não existirão sociedades onde essas empresas possam prosperar”, declara Luís Amado, especialista em sustentabilidade empresarial e diretor-executivo da filial europeia da B Lab entre 2017 e 2022, uma organização sem fins lucrativos que se dedica à promoção de empresas mais sustentáveis e com os menores impactos ambientais e os melhores impactos sociais. A sustentabilidade das empresas tem no seu cerne a sigla ESG (Ambiente, Sociedade e Governança) e Luís Amado diz que as duas primeiras vertentes “poderão conferir grande competitividade às empresas” e que, “se as empresas não contribuírem para uma sociedade melhor, criando valor para a mesma, mas, pelo contrário, no cômputo geral da sua atividade, retirarem valor à sociedade enchendo apenas os bolsos de alguns acionistas, a sociedade deveria ser capaz de as eliminar”.
Caso contrário, “será uma sociedade suicida com um futuro comprometido”, avisa. Na luta por um planeta mais saudável, as empresas não podem ficar à margem, especialmente, porque “a sua importância, face aos Estados, tende a aumentar, devido ao processo de globalização ainda em curso e ao aumento do poder de compra e da população mundial”, afirma João Wengorovius Meneses, secretário-geral do BCSD Portugal, uma organização que congrega hoje mais de 150 empresas e que trabalha para “ajudar as empresas associadas na sua jornada para a sustentabilidade”. Essa visão é partilhada por Luís Amado: “Se olharmos para o mundo, atualmente as empresas têm mais poder e, arrisco até a dizer que, embora indiretamente ou de formas menos óbvias, mandam mesmo mais do que os governos”, refere.
João Meneses assinala que, “dada a escala do setor privado, por um lado, não só este tem impactes ambientais e sociais significativos – que é fundamental mitigar – como, por outro, tem um enorme potencial de investimento e inovação – que é fundamental alavancar em prol do interesse coletivo”. E recorda que “o primeiro momento histórico em que, claramente, as empresas foram chamadas à responsabilidade de colaborarem com o setor público e a sociedade civil, no sentido de apoiarem a transição para um modelo de desenvolvimento sustentável, foi a Cimeira da Terra das Nações Unidas, que teve lugar no Rio de Janeiro, em 1992”. Desse encontro internacional brotou o compromisso para “a criação de uma entidade que pudesse servir de interface com as empresas – a qual veio a ser o World Business Council for Sustainable Development (WBCSD), de cuja Rede Global o BCSD Portugal faz parte, desde 2001”.
“Hoje, as empresas já compreenderam que só serão competitivas e resilientes no futuro se, a par da dimensão económica ou do lucro, derem igual relevância aos aspetos ESG, isto é, ambientais, sociais e de governance”, argumenta o responsável do BCSD Portugal. E aponta que a capacidade das empresas para gerarem “valor partilhável com outros stakeholders – que não apenas os seus acionistas – e com as gerações futuras será, cada vez mais, um aspeto crítico e valorizado pelos seus clientes, investidores, trabalhadores e, claro, pelos reguladores”.
A LUTA CLIMÁTICA
Lançando o olhar sobre o que se passa em Portugal, Luís Amado diz que “sem dúvida que as empresas são chamadas à linha da frente” do combate à crise climática e que “são elas que têm capaci-dade de mudar muitas das coisas de um modo mais eficiente e rápido e é disso que precisamos para fazer face aos desafios climáticos”. Sem as empresas, “não é possível mudar, por isso, se queremos mudar temos de as chamar à linha da frente”. No entanto, João Meneses acredita que “falta fazer progressos no sentido de uma concertação social ao nível do ambiente, no sentido de uma concertação ambiental em bom rigor”, sendo que “sem uma colaboração muito mais profícua e profunda entre os diversos setores, nomeadamente, entre o setor público, o setor privado, a academia e a sociedade civil, a transição para um modelo de desenvolvimento sustentável será muito difícil, bem como o cumprimento dos diversos acordos, planos e metas, nacionais, europeus e internacionais, com que estamos comprometidos até 2030 e 2050”.
Luís Amado considera que, em Portugal, “existe já colaboração entre empresas, de empresas com governos e sociedade civil e esta deverá ter um papel fundamental” rumo a uma sociedade mais sustentável. E isso “não só porque [as empresas] têm consciência de que sem isso não existirão daqui a algum tempo, mas também porque isso lhes confere competitividade no mercado atual”. É por isso que o especialista assevera que “o setor privado não está a ser deixado de parte, não deve e não pode ser deixado de parte” e que “tanto os governos, que devem representar as populações, como as populações, enquanto consumidoras, deverão pressionar, empurrar, condicionar as empresas para que elas sejam parte dessa mudança que precisamos de ter”.
O CAMINHO DA SUSTENTABILIDADE
A perda de competitividade das empresas portuguesas, nas últimas décadas, por exemplo, para a Ásia, a disputa das marcas nacionais nos mercados além- -fronteiras e agora as pressões relacionadas com a sustentabilidade, nas suas três vertentes, são elementos que levantam vários obstáculos no caminho da revolução ambiental do tecido empresarial português, que, sendo maioritariamente constituído por Pequenas e Médias Empresas (PME), enfrentou “muitos desafios e choques externos em poucas décadas”, aponta João Meneses. A esse respeito, Luís Amado afirma que, “atualmente, é impossível não estar na rota da sustentabilidade, tal a frequência com que se fala no assunto”, mas ressalva que, independentemente de as empresas reconhecerem que esse será, de modo inevitável, o caminho do futuro e o garante da sua competitividade, “não poderão ignorar que têm de viver, se não nela, pelo menos com ela”.
Apesar de reconhecer que a preocupação das empresas com a sustentabilidade, de facto, parece existir, “o que não existe, tanto como eu gostaria e me parece necessário e premente é a atuação consentânea com essas preocupações no sentido de mudar alguns procedimentos, opções, formas de estar, estratégias, etc., que permitirão um posicionamento mais sustentável”. O especialista acredita que o problema está na discrepância entre o que as empresas dizem e o que fazem. Embora muitas expressem frequentemente a sua preocupação para com a redução dos seus impactes ambientais e a melhoria da sua atuação na sociedade, depois isso não se traduz em ações concretas. “Ora, isto é um é um mau sinal, porque é sinal de que ainda falta dar este passo, e até poderá indicar falta de competência por parte de quem gere, que dá importância a alguma coisa que depois não está a aplicar na sua estratégia”, frisa Luís Amado, que acautela contra generalizações, porque “temos já muitos e bons exemplos de alinhamento com esta rota da sustentabilidade”.
AS EXIGÊNCIAS EUROPEIAS
João Meneses considera que “as maiores e as mais expostas a mercados internacionais, mais maduros e exigentes, estão mais preparadas para integrar os exigentes compromissos internacionais, europeus e nacionais que devemos atingir até 2030 e 2050” e que, para a construção de sociedades mais sustentáveis, poder contar com as empresas, “isto é, com a sua capacidade de inovação e investimento, o mais importante será os Governos definirem regras claras e estáveis”. Para o responsável do BCSD Portugal, “há um trabalho a fazer – necessariamente em concertação com as empresas – no que toca à política fiscal e aos incentivos públicos”, salientando que “a transição climática precisa de ser programada para 2030 e 2050” e não pode estar sujeita aos ciclos anuais do Orçamento do Estado. “Para a atração de investimento direto estrangeiro ‘verde’, necessário para acelerar a transição da economia nacional rumo ao paradigma da sustentabilidade, é necessário planeamento a médio e longo prazo”, indica o responsável, recordando que “uma das razões para as empresas iniciarem a jornada para a sustentabilidade das suas cadeias de valor é económica: menor consumo de matérias-primas ou maior eficiência energética permite poupanças relevantes”.
Por isso, “há uma racionalidade económica imediata”. Sendo Portugal parte da UE, a sua realidade empresarial não difere muito do que se passa noutros Estados-membros, embora em alguns haja “uma consciência mais madura destas preocupações e desafios e, portanto, poderão ir um bocadinho mais à frente, enquanto outros irão um bocadinho mais atrás”, observa Luís Amado. O especialista em sustentabilidade empresarial acentua que todos os países europeus sentem a “pressão” das exigências vindas de Bruxelas, como ao nível da eficiência energética e do consumo e da economia circular. Mas essa pressão vem também dos governos nacionais.
O resultado “é uma reformatação dos negócios que não os torna mais competitivos ou menos competitivos, mas implica que têm de adaptar-se” a uma “nova realidade” que trará “novas oportunidades para aqueles que souberem adaptar-se às novas situações e desafios”, em que a sustentabilidade, a palavra de ordem, não será nada mais nem nada menos do que “fazer as coisas de um modo mais eficiente, de fazer mais com menos, para que os recursos disponíveis possam chegar para todos”. Sobre a neutralidade carbónica, no geral, João Meneses recorda que “exige soluções que requerem uma forte capacidade de convergência e colaboração entre os diversos setores: público, privado, academia e sociedade civil”, e as empresas, em particular, “precisam, sobretudo, de regras claras até 2030, por exemplo, ao nível da regulação, da política fiscal e da estratégia de incentivos públicos”.
Apontando que as empresas, “sobretudo as PME, precisam de mais apoio e capacitação”, o responsável lamenta que “os fundos públicos disponíveis na transição para a sustentabilidade nem sempre são de fácil acesso”, pelo que “seria útil a criação de um balcão de apoio ao investimento sustentável, por parte do IAPMEI, bem como de um selo ‘PME sustentável’”. “É fundamental capacitar as PME nacionais para a alavancagem de todos os apoios nacionais e europeus existentes em relação à transição das suas cadeias de valor para o paradigma da sustentabilidade”, sustenta João Meneses. Para Luís Amado, a maior dificuldade sentida pelas empresas no que toca à descarbonização é não conhecerem os seus níveis de emissões de gases com efeito de estufa, assim como identificar as fontes dessas emissões.
“Na maior parte das vezes, essas emissões resultam da cadeia de abastecimento e, portanto, depois é preciso, além das escolhas de um fornecedor de energia mais verde, ou de adotar uma frota mais elétrica, que são mais fáceis, fazer outras mais complicadas”, explica, acrescentando que “o desafio é trabalhar com os fornecedores, exigir cada vez mais aos fornecedores, escolher novos fornecedores, trabalhar com esses fornecedores para que, eles próprios, melhorem o seu posicionamento em termos de sustentabilidade e das emissões”.
NEUTRALIDADE CARBÓNICA EM 2050?
A esta pergunta, os dois especialistas assumem posicionamentos diferentes. Para não exceder os limites climáticos do Acordo de Paris, as emissões da UE têm de ser reduzidas em 55% até 2030, mas as estimativas indicam que, ao invés, teremos um aumento de 15%, avisa João Meneses, por isso assume estar “pessimista”. Para chegar à neutralidade carbónica, até meados deste século, seriam necessárias “medidas rápidas com escala, uma disrupção ao nível dos sistemas económicos e dos nossos estilos de vida”. Mas Meneses indica que, na última cimeira climática global (COP27), os líderes mundiais não pareceram “motivados para a ação drástica e imediata que seria necessária”. Sobre a Lei de Bases do Clima, em Portugal, o secretário-geral do BCSD refere que “precisa de medidas específicas urgentes para sair do papel” e “a sua aplicação não pode ser um processo apenas de-cima-para-baixo, tem de envolver concertação social alargada”.
“Seria mais fácil o Pacto Ecológico Europeu ser bem-sucedido até 2030 se a jornada tivesse começado há 10 anos. Teríamos tido mais tempo”, comenta. Luís Amado expressa maior otimismo quanto à neutralidade carbónica em 2050. O especialista assinala que, “se fomos capazes de chegar até aqui e de estragar, acredito que também somos capazes de remediar a questão”, desde que haja “os incentivos certos e a motivação certa”, dois elementos que tornarão possível “atingir a velocidade necessária para alcançar os objetivos em 2050”. Ainda assim, também concorda que “a velocidade atual não é suficiente e, por isso, é preciso que as pessoas percebam ser preciso mudar rapidamente”, e que, para essa aceleração acontecer, “vamos ter de deixar muitas das coisas a que estamos habituados e, se calhar, inverter muitas prioridades e mexer com muitos dos poderes instituídos na sociedade”.
“Se, como sociedade, como consumidores, como um todo, conseguirmos empurrar nesse sentido, rapidamente, e com uma grande influência dos que têm mais capacidade, ou seja, os que têm dinheiro, os investidores, há muita tecnologia disponível para se poder alterar muita coisa. Assim os recursos sejam alocados a essas e não a outras coisas”, destaca. Por isso, Portugal está num bom caminho, mas precisa de caminhar mais rapidamente, com João Meneses a destacar, por exemplo, a importância de mais investimento no aumento da representatividade das energias renováveis na produção elétrica nacional, do hidrogénio verde, da mobilidade elétrica e da biomassa como alavancas “de uma nova economia verde nacional”, e a necessidade de “uma política de florestas e solos mais ambiciosa – incluindo a diminuição do fenómeno dos incêndios –, bem como de melhorias substanciais ao nível do tratamento dos resíduos sólidos urbanos, aspeto em que comparamos mal com os demais países da UE”.
“A descarbonização da nossa economia pede mais inovação, mais colaboração, melhor regulamentação e novos comportamentos por parte dos cidadãos – e tudo num curto espaço de tempo”, declara. Luís Amado também reconhece os avanços feitos por Portugal no campo das renováveis, mas é preciso “que as empresas comecem a perceber, além do fornecimento da energia e das frotas ‘verdes’, como é que podem melhorar no que toca à descarbonização no seu dia a dia, nas suas operações, na forma como se relacionam com a envolvente, na relação com a sua cadeia de fornecedores”, para que sejam também “mais eficientes, de forma a emitirem menos e a serem mais amigos do ambiente. Só com essas transformações multidimensionais poderemos “ter um planeta no qual seja possível todos vivermos com um mínimo de qualidade”, remata.
O PAPEL DOS GOVERNOS
Recordando as iniciativas de Mário Soares nos anos de 1990, João Meneses, do BCSD Portugal, defende que “seria interessante uma Presidência Aberta do Ambiente antes de 2025, de modo a incentivar os portugueses para os atuais – exigentes, mas fundamentais – compromissos do país no domínio do ambiente”. Luís Amado indica que “para mim, a questão não é se o setor se sente abandonado ou deixado a si próprio”, até porque “não existe alternativa” e “temos de estar todos, lado a lado, governos e empresas, para que possamos dar a volta a este desafio exigente”. Admitindo que existe sempre “uma tensão natural” entre o Governo e as empresas, designadamente sobre os apoios dados pelo primeiro às segundas, o especialista considera que a descarbonização da economia tem de ser feita “em conjunto” e que o diálogo entre o público e o privado deve ser mantido “constantemente”, porque “vai ser fundamental para que se chegue a bom termo”.
“O Governo sozinho e o setor, sentindo- se abandonado, não vão chegar lá”, alerta, acrescentando que “as novas regulamentações, como as que aparecem via União Europeia, e depois por via do governo nacional, acrescidas de mais algumas de caráter nacional, são fundamentais para acelerar o processo. Portanto, não vamos poder deixar essas de parte, por muito que as empresas, às vezes, não gostem delas, nomeadamente numa primeira fase, porque em termos de sociedade elas vão ser fundamentais”. “Espero que o Governo saiba ouvir os desejos dos cidadãos e interagir com as empresas de forma eficiente para que seja possível atingir a eficiência de que tanto necessitamos para fazer a transição ambiental”, remata Luís Amado, pois “não há mais tempo a perder”.
GRANDES EMPRESAS, PME E STARTUPS
Não será surpresa para ninguém saber que as empresas maiores são as que estão mais bem preparadas para concretizar a transição em direção à neutralidade carbónica: mais dinheiro, mais recursos humanos, mais capacidade para a transformação. “A generalidade das empresas cotadas em mercados internacionais já tem estratégias, equipas e relatórios de sustentabilidade”, explica João Meneses, mas, “muito em breve, as PME também serão chamadas a medir e reportar os seus riscos e impactos ESG, mesmo ao nível dos rótulos dos seus produtos ou subprodutos”. Isto porque “a UE deverá publicar em breve uma diretiva relativa ao passaporte dos produtos, que obrigará todos os produtos a revelar a pegada carbónica, entre outros aspetos da sua pegada ecológica”.
Além disso, “também a política aduaneira da UE está a sofrer alterações importantes, no sentido de penalizar os produtos exportados para o mercado europeu com pegada carbónica, de modo a desincentivar o dumping ambiental”, relembra o responsável do BCSD Portugal. Luís Amado detalha que a principal vantagem das grandes empresas sobre as mais pequenas deriva de um maior “acesso a informação e a mais recursos e, portanto, estão mais capacitadas para fazer as alterações”. Por outro lado, “as PME e start-ups poderão ser mais ágeis e, portanto, terão essa vantagem, mas sentem mais dificuldade em ter acesso a informação, além de terem menos acesso a recursos”.
É por causa dessa discrepância que o especialista considera que “será muito importante criar mecanismos que permitam disponibilizar este conhecimento em rede”, para que PME e start-ups “possam ir aprendendo umas com as outras e, com isso, partilhar e ir partilhando recursos e, com alguns apoios de programas governamentais e outros, fazer esta transição tão rapidamente quanto possível e desejável”.
A CRISE ECONÓMICA
Os efeitos da pandemia da Covid-19, cujos ecos ainda se fazem sentir dolorosamente em muitas economias (se é que alguma não os sente), e a guerra na Ucrânia, que agravou uma crise energética e também económica, que tinha já vindo a germinar, mudaram as prioridades de muitos governos e, claro, também de muita empresas. Inflação em trajetória crescente, poder de compra em queda, cadeias de abastecimento internacionais em convulsão deram à luz novos contextos políticos e económicos internacionais que obrigaram a cortes em áreas consideradas estrategicamente não prioritárias. Será que a transição ambiental das empresas pode ser relegada para segundo plano? “As empresas confundem cada vez menos o que é urgente com o que é importante, sendo que, no caso da ação climática, trata-se de um tema simultaneamente urgente e importante”, explana João Meneses, defendendo que “os Governos também têm de ter mais coragem de governar para o longo prazo, para o que é importante, e não apenas para o que é urgente”. “Há uns anos, conheci um astronauta americano com mais de 90 anos que participou numa das missões Apolo na década de 1970”, recorda o responsável.
“No regresso à Terra, e ao constatar a sua fragilidade suspensa no horizonte negro do Universo, teve uma epifania: a Terra precisa de um plano estratégico a 250 anos”. Embora reconheça que “esse horizonte de planeamento pode parecer exagerado”, diz que “seguramente precisamos de governar para 2030, 2050 e 2100” e que “cabe ao setor público, aos Estados e Governos de todo o mundo, dar o exemplo, liderar”.
Este ano, a cimeira global do clima, a COP28, acontece no Dubai, Emirados Árabes Unidos, quase a meio caminho das metas de descarbonização traçadas para 2030. “Seria fundamental haver progressos tangíveis”, defende João Meneses, comentando que a cimeira “realiza- se num país sem interesse económico na descarbonização e com pouca força diplomática”. É por isso que se confessa “pessimista”, e que “as crises económicas e geopolíticas que estamos a viver também serão um fator de entropia”, embora acredite que “não deviam ser”, porque “só temos a ganhar em assegurar a nossa soberania energética com base em energias renováveis”.
O atual panorama económico é, para Luís Amado, “sem dúvida adverso e de incerteza”, chamando a atenção para que a guerra na Ucrânia possa ser usada como ‘desculpa’ por “aqueles que não querem mudar” no sentido de uma mudança lenta, que não mudem de todo ou possam mesmo “até andar para trás”. A suspensão dos compromissos climáticos “quando muito trará vantagens a curto prazo, mas na verdade põe em risco o cumprimento dos objetivos de neutralidade, e isso parece-me totalmente desajustado e mesmo ilegítimo, quanto mais não seja para as futuras gerações”, avisa. O especialista em sustentabilidade empresarial assinala que esse posicionamento é “um risco demasiado grande para ser corrido, portanto as dificuldades do contexto económico devem ser vistas como mais um desafio, mas não devem sobrepor-se nem adiar o desafio da neutralidade que é fundamental ser vencido para termos um futuro, qualquer que ele seja”.
A NEUTRALIDADE CLIMÁTICA
Quando falamos da transição das empresas para modelos de negócio em maior harmonia com o planeta, não será invulgar ouvirmos falar nos danos que essas transformações poderão causar na competitividade das empresas, especialmente nos mercados que concorrem com outras entidades que não se pautam por padrões ambientais tão exigentes e que, por isso, têm maior margem para gerar lucro. Mas ‘competitividade’ e ‘neutralidade carbónica’ não são antónimos e podem mesmo ser elementos que se reforçam mutuamente. Sobre essa conciliação, “não só é possível, como a economia verde representa uma nova oportunidade económica e muitos empregos potenciais”, enfatiza João Meneses, destacando que, se dúvidas restassem, “num planeta metade em chamas, metade em cheias, a economia será a primeira vítima”.
Lembrando que metade da riqueza mundial depende da biodiversidade da Terra, dos seus ecossistemas e dos serviços por eles disponibilizados, refere que a falha na sua proteção e conservação Luís Amado, especialista em sustentabilidade empresarial João Wengorovius Meneses, secretário-geral do BCSD Portugal acarreta riscos económicos. “Quando estes recursos acabarem, acabam para sempre – e com eles metade da nossa economia global”, avisa o responsável. “Não se trata apenas de uma questão de qualidade de vida e justiça intergeracional”, remata, “trata-se de um risco económico muito real e tangível”. Para Luís Amado, não só é possível “fazer mais com menos”, como “ser mais sustentável vai aumentar a competitividade das empresas e contribuir para a neutralidade climática”.
Conta o especialista que “há já muitas empresas a fazer isto há décadas e não é por isso que deixam de ter sucesso. Pelo contrário, cada vez se verifica que vêm a ter mais sucesso”, e que, pelo mundo, podemos encontrar “milhares de empresas que se preocupam com a medição e gestão, transparente, do impacte que estão a causar em toda a sua envolvente e no planeta, e com cada vez mais sucesso graças à valorização, pelos consumidores, desta atitude”. “Estou certo de que este tipo de reconhecimento continuará a mantê-las saudáveis e competitivas, uma vez que é ele a pagar os salários de quem nelas trabalha”, afiança.
Artigo publicado originalmente na edição impressa da revista Green Savers nº 11