EleArt: Uma jornada de humanos e de elefantes pela conservação da Natureza e da Cultura
O que é que as histórias e jornadas de elefantes e de humanos nos podem ensinar sobre como conservar e valorizar as diversidades biológica e cultural do mundo no qual vivemos? Esta foi uma das questões que a historiadora da Arte Maria João Castro quis explorar na sua nova obra EleArt: Elefantes e Arte em Viagem.
O livro, já disponível nas livrarias e editado pela ArTravel, pretende contribuir para a salvaguarda da vida natural e da cultura artística, atentando nos entrelaçamentos que unem os grandes mamíferos não-humanos da fauna africana e o povo San, que subsiste na África meridional e é considerado um dos mais antigos do mundo, cuja arte traçada na pedra eterniza um legado de coexistência.

Maria João Castro, investigadora do CHAM – Centro de Humanidades, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, conta-nos, em entrevista, que o derradeiro objetivo do livro é “aprofundar um campo do saber novo (a conservação animal) em relação com um legado cultural (a arte rupestre do povo San) de índole pictural”.
O trabalho, que tem como fio condutor “a viagem que ambos têm vindo a protagonizar nos seus ecos e derivas contemporâneas”, resulta de várias deslocações que a investigadora, enquanto cronista de viagem, fez a África entre 2017 e 2019. Foi o contacto com essa realidade que a levou a querer saber mais sobre os universos desses dois protagonistas e também a questionar como se faz conservação de animais selvagens e de património cultural “de modo a formular um pensamento mais agregador”.
Já antes do desenvolvimento deste trabalho, Maria João Castro nutria uma “grande admiração” pelos elefantes, os “patudos gigantes”, como os descreve. O interesse pela arte rupestre San veio depois “quando comecei a viajar para África e me foi apresentado este povo, bem como as suas pinturas ancestrais”.
A obra contém várias imagens de desenhos de tons avermelhados traçados sobre as paredes rochosas de grutas. Nas montanhas de Cederberg, na África do Sul, por exemplo, figuras humanas e elefantinas surgem nos mesmos planos e a uma proximidade que deixa antever uma coexistência ancestral.
No continente africano, a investigadora descobriu uma “conexão” entre os elefantes e os San, o que fez surgir “o fio condutor” que liga ambos no livro, que tem como grandes alicerces diversas observações de elefantes em meio selvagem e em cativeiro e também “encontros fortuitos” com os San, “o povo mais antigo do mundo”. Com tudo isso, “a investigação foi-se estruturando e sintetizando”, diz-nos Maria João Castro.
Desafios partilhados
As histórias do povo San e dos elefantes em África partilham os mesmos desafios impostos por forças que vêm de fora e refletem o que a historiadora diz ser “um tempo incerto, o nosso tempo”.
Outrora vagueavam livremente por grande parte de África; hoje, a maioria do povo San, bem como das manadas elefantinas, encontra ‑se numa situação periclitante, causada pelo progresso do mundo global”, escreve a historiadora. Os San, por seu lado, foram obrigados a abandonar as suas vivências nomádicas por existências sedentárias de sobrevivência em locais de condições duras. Os elefantes, por seu turno, foram confinados a áreas protegidas “à medida que a humanização da paisagem (e os interesses dos governos) se alarga”.

Dois mundos ancestrais que tentam sobreviver num planeta cada vez mais distante do que em tempos fora, assim nos diz constantemente a Ciência. No entanto, há também relampejos de esperança, saibamos vê-los por aquilo que são. Maria João Castro explica-nos que a investigação que deu corpo ao EleArt “ancora-se numa narrativa prístina que se quis resgatar trazendo-a para o presente de modo a poder-se construir um olhar crítico que garanta a sua salvaguarda e futuro”.
Isso é especialmente importante, porque “a realidade está à vista de todos”. Aponta a historiadora que “no que toca ao reino animal, a diminuição do número das manadas é um dado adquirido; quanto ao património cultural, a destruição de locais de criação artística milenar é um facto incontornável”.
Para Maria João Castro, as razões para isso acontecer “são muitas” e resultam de “interesses económicos transversais às sociedades contemporâneas” e também “de uma gestão fragmentada, descuidada ou omissa onde os valores artísticos e naturais são relegados para um plano secundário, inconsequente e ao sabor das políticas do momento”. E salienta, com pesar: “nada de novo na espécie humana”.

Por tudo isso, considerou importante “trazer o tema para a Academia”, sendo este livro uma forma de também levá-lo a toda a sociedade.
“É preciso construir um olhar crítico e prospetivo sobre sustentabilidade e regeneração, mas as soluções não são lineares e dependem das circunstâncias e das geografias onde se inserem. Daí a necessidade de passar a informação ao público por forma a dar ferramentas para que cada um possa estruturar o seu próprio pensamento e posicionar-se.”
Outras escalas
Apesar de os protagonistas do EleArt terem as suas origens em África, o livro leva-nos também para outras geografias que serão, talvez, mais familiares, para o tema da obra “dar escala e contextualizá-lo num universo que nos fosse próximo, que dialogasse com a nossa História”.
Maria João Castro recorda-nos que os elefantes estão presentes em inúmeros relatos históricos, sobretudo como montadas de guerra ou para transporte de pessoas e mercadorias. Entre os anos de 193-211, moedas romanas circulavam com a imagem de um elefante.
Conta a historiadora que quando as grandes potências mundiais, Portugal incluído, começaram a expandir os seus domínios imperiais pelo mundo, os elefantes foram ganhando proeminência nas cortes europeias, por exemplo, como símbolo de poder. Relata Maria João Castro que “existem referências à presença destes animais em Lisboa desde meados do século XV”, com esses grandes animais africanos a tornarem-se “num dos principais símbolos de poder na corte portuguesa, diferenciando‑a das restantes congéneres europeias”.
No livro surge uma fotografia de um elefante, neste caso asiático, a passar pelas ruas de Lisboa em 1940, por ocasião da Grande Exposição do Mundo Português.
Além dos elefantes, também a autora chama a nossa atenção para os “zoos humanos”, os quais, instalados pelos países do Ocidente, exibem pessoas vindas da África e Ásia coloniais como “animais raros e exóticos”, incluindo membros do povo San.
“Daí ter incluído a ascendência elefantina na Europa e a exibição de membros do povo San no Velho Continente, enquadrando-os numa realidade vivida que nos fosse próxima culturalmente”, explica a investigadora.
“Ao trazer o assunto para a geografia que habitamos, o foco torna-se mais nítido e percebemos melhor do que estamos a falar. E isso é fundamental para se definir uma visão de conjunto, porque nos insere na História tornando-nos parte dela.”
Questões atuais
Além das dimensões históricas, o livro EleArt debruça-se também sobre questões muito atuais: o tráfico de marfim, o uso de animais para exibição em circos e zoos, a pressão do turismo insustentável sobre a Natureza, a conservação da biodiversidade, a extinção de espécies, as alterações climáticas e os conflitos entre humanos e vida selvagem, entre outras.
Todos esses problemas, afirma a autora, “são matérias que se entrecruzam num dado lugar”, um lugar que “tem uma história, um poder político e recursos identitários que o definem”. Por isso, defende que as soluções têm que ter em conta esses contextos específicos, pelo que é preciso, primeiro, conhecê-los e depois integrá-los em possíveis abordagens.
“Por isso, não há uma solução, mas várias, dependendo da escala e complexidade onde os desafios se apresentam”, considera Maria João Castro. E dá como exemplo o caso do combate à caça furtiva.

“Não podemos querer acabar com os caçadores furtivos e pronto. Temos de dar a estas comunidades alternativas de subsistência para que realmente consigam desistir de matar elefantes e passar a protegê-los. Para tal há que lhes dar instrução, equipamento de vigilância ou emprego nas várias reservas e safáris vendidos aos turistas. Estas reconversões demoram tempo, porque há que mudar todo um modo de vida, dando tempo para uma adaptação efetiva.”
A par disso, é preciso que as ações no terreno sejam acompanhadas por “constante fiscalização e monitorização”, o que significa que “se as políticas governamentais não forem robustas o trabalho perde-se”, argumenta a historiadora.
“No fundo, achei que EleArt poderia ser um instrumento a alocar saber e a inspirar boas práticas permitindo à sociedade acumular know-how e posicionando-se através de escolhas mais sábias e responsáveis. Só assim será possível reverter danos e estimular a proteção, divulgação e monitorização de legados únicos, e se este escrito der um pequeno impulso a uma ação política e social consertadas tanto melhor.”
Mas não devemos pensar que a responsabilidade para mudar as coisas é exclusiva de governos ou de organizações ambientalistas. Diz Maria João Castro que todos nós temos “um papel a desempenhar que, sem fundamentalismos ou olhares unívocos, contribua para minimizar danos e maximizar práticas sustentáveis e regenerativas, num verdadeiro compromisso”.
Tanto os elefantes como os San, indica a académica, “ensinam-nos a importância do equilíbrio do mundo natural, da relevância em não esgotar recursos, da resiliência e do respeito”.
“Se consegui transmitir um pouco dessa magia ao leitor, inspirando-o a mergulhar nesse universo tão rico quanto impactante, então o objetivo deste trabalho é plenamente atingido.”
Uma conservação a várias mãos
Quando se pensa em conservação da Natureza, ciências naturais como a Biologia ou a Ecologia surgem de imediato na mente de muitos de nós. No entanto, a conservação não é já propriedade exclusiva das ciências naturais, sendo que cada vez mais ciências sociais e as Humanidades mergulham nesses temas e contribuem para o avanço dessa área que é crescentemente interdisciplinar.
O EleArt é um livro que almeja contribuir para a conservação da vida selvagem, do património cultural humano e também das aprendizagens e conhecimentos que resultam dos contactos e da coexistência entre ambos. Para tal, é preciso extravasar os limites deste ou daquela área de saber.

“O pensamento que percorre este escrito é devedor de uma interdisciplinaridade que é hoje o motor a partir do qual o campo das Humanidades se desenvolve dentro da Academia”, explica Maria João Castro. Dessa forma, continua, “amplia-se o conhecimento correlacionando-a nas suas várias vertentes e práticas, colocando em equação as diferentes variáveis que compõem um dado universo”, porque, no final de contas, “nada está isolado no mundo atual, tudo está interligado e tem consequências na cadeia de valor”.
Nesta obra, “juntou-se a criação artística com a cultura visual, a conservação da natureza com a biodiversidade, a história das mentalidades com a ciência política numa confluência de saberes que, em diálogo entre si, condensam e cristalizam um conhecimento maior”. Só assim, defende a investigadora, “podemos ter uma panorâmica real de cada um dos dados, só assim se pode traçar um pensamento consequente que tem em conta todas as variáveis”.
No entanto, para que a conservação natural e cultural se possa traduzir em algo de concreto no terreno, Maria João Castro diz que é indispensável o envolvimento das comunidades locais. “Porque são elas que se encontram no terreno, que vivem num dado lugar e o conhecem, e quem primeiro sofre as consequências de uma má gestão ambiental-cultural”, salienta, acrescentando que “as tutelas podem criar diretivas orientadoras, mas, sem a participação dos locais que habitam uma dada geografia, sem a discussão e educação necessárias, as medidas falham”.

O caso do combate à caça furtiva é disso exemplo flagrante. “O sucesso dos programas governamentais de proibição da caça aos elefantes por causa do marfim só foi conseguido nos lugares em que estes envolveram os autóctones que o habitam”, assevera Maria João Castro, que salienta a importância de criar programas de transição de uma atividade danosa, a caça furtiva, para outras atividades rentáveis e mais sustentáveis e em linha com os objetivos de conservação, como o turismo responsável.
“Por outro lado, o conhecimento e as práticas tradicionais de determinada comunidade no que concerne, por exemplo, à conservação da Natureza resultam de uma experiência e vivência multisseculares no terreno, pelo que importa escutá-las e tê-las em atenção quando se trata de implementar determinadas medidas. O seu saber acumulado é precioso e determina o êxito ou não de um projeto.”
Olhando para o que foi o percurso que desaguou na publicação do EleArt, Maria João Castro diz-nos que, ao aliar “conhecimento e fruição” e criar “experiências e vivências memoráveis que nos enriquecem e transformam”, a obra pretende “contribuir para uma perspetiva crítica de valorização e usufruto de um património apaixonante cuja poética agrega valor enrobustecendo-nos. É essa a sua premissa e intenção e eventualmente, a sua mais-valia”.