Entrevista a Margarida Couto: Começámos a olhar para a descarbonização “tarde, mas não tarde demais”
Se investirmos “fortemente em inovação”, ainda temos tempo de atingir as metas da descarbonização. É esta a convicção de Margarida Couto, crente de que Portugal tem desafios, mas também “grandes oportunidades por ser um dos países europeus que mais caminho já fizeram em matéria de energias renováveis”.
Margarida Couto, Presidente do GRACE, em entrevista à Green Savers, defende que a melhor forma de convocar as empresas para o Pacto Ecológico Europeu é mostrar-lhes que é uma questão de competitividade porque, se não fizerem o caminho da descarbonização atempadamente, “poderão ter de pagar uma pesada fatura por essa escolha”. Para a responsável, a taxonomia “é a nova linguagem da sustentabilidade” e as empresas já perceberam que esta “não é ‘uma estratégia’, mas antes ‘a estratégia’”. Porém, em Portugal, o caminho está a ser feito a velocidades “muito diferentes”.
O Pacto Ecológico Europeu é um pacote de medidas que deverá permitir às empresas e aos cidadãos europeus beneficiarem de uma transição sustentável, visando atingir a neutralidade climática até 2050, tornando a Europa no primeiro continente climaticamente neutro, retardando o aquecimento global e atenuando os seus efeitos. Como é que se convocam pessoas e empresas portuguesas para este complexo pacto?
Acredito que a melhor forma de convocar as empresas para este exigente Pacto Ecológico é através da demonstração de que, para elas, é um tema de competitividade.
Se as empresas compreenderem que, se não contribuírem para a descarbonização da economia (e se não forem sustentáveis também noutras dimensões, como a social), deixarão, mais tarde ou mais cedo, de ser atrativas para os colaboradores/perderão talento, passarão a ter um acesso mais difícil/mais caro ao investimento e serão menos atrativas para os clientes (sobretudo em atividade B2C), elas acabarão por fazer esse caminho.
As pessoas, felizmente, sentem-se crescentemente convocadas, sobretudo as das gerações mais novas, que têm crescente consciência de que o seu futuro pode estar comprometido se não se mobilizarem – e é nessas gerações que estão os colaboradores do futuro e os consumidores do futuro. Se as empresas quiserem, também elas, ter futuro, têm de saber atrair essas gerações.
Todos os Estados estão juridicamente vinculados à meta de emissões líquidas nulas em 2050. Em que parte do caminho estão as empresas portuguesas?
As empresas portuguesas estão em pontos muito diferentes do caminho, sendo infelizmente muitas aquelas que não deram ainda o primeiro passo – a medição das suas emissões. Mas este é um caminho que se faz caminhando, é uma corrida de fundo, não é um sprint. O importante é começar e não se deixar ficar para trás (e caminhar mais rápido, para compensar eventuais atrasos!).
Temos de reduzir as emissões em 55% até 2030. Só faltam oito anos. Disse recentemente que “é muito desafiante”. Mas é possível? Como?
Diria que é entre o “muito desafiante” e o “mesmo muito desafiante”… Não sendo talvez impossível, não me parece infelizmente que seja um resultado provável, tendo em atenção o progresso registado nestes últimos anos, que foi manifestamente insuficiente para nos levar onde queremos chegar em 2030. Mas a meta final é 2050!
É um mito dizer-se que o pacote “Fit for 55” – propostas que visam ajudar a UE a reduzir as emissões em 55% até 2030 e atingir emissões líquidas nulas até 2050 – se dirige essencialmente às indústrias que trabalham na área da energia ou às empresas energéticas?
Na minha opinião é um mito, sim! Desde logo porque não há nenhum setor que viva sem energia, pelo que, tudo o que afeta a energia, afeta qualquer empresa, em maior ou menor dimensão. Aliás, alguns dos setores mais afetados pelo pacote “Fit for 55” nem estão liga[1]dos à indústria da energia – é o caso, por exemplo do setor automóvel (que terá de deixar de produzir carros ligeiros a combustão) ou do setor da construção (que terá de passar a construir net zero buildings).
Um dos seus efeitos vai ser o aumento do preço do carbono, a transição do setor automóvel. O que pode acontecer se alguns setores empresariais não interiorizarem a necessidade da sua descarbonização?
Desde logo, e como já referido, considero que as empresas que não forem interiorizando e trabalhando a descarbonização das suas atividades terão, no médio/longo prazo, sérios problemas de competitividade, perdendo terreno para as empresas concorrentes que tenham melhor desempenho ambiental.
Além disso, admite-se que o preço do carbono sofrerá um aumento significativo, pelo que as empresas que não fizerem o caminho da descarbonização atempadamente poderão ter de pagar uma pesada fatura por essa escolha.
A descarbonização insere-se em qual dos critérios de sustentabilidade ESG?
Tipicamente, a descarbonização é considerada um “tema do E” (ou seja, ambiental). Mas o “E”, o “S” e o “G” não são silos – pelo contrário, estão intimamente ligados. Na minha opinião, a descarbonização é também, por exemplo, um “tema do S” (social) – com efeito, se a transição energética (sem a qual não há descarbonização) não for feita de forma justa, atirará com milhões de pessoas para a pobreza energética, que é uma violenta forma de pobreza.
A sustentabilidade não é apenas descarbonização, mas começa por ela. O GRACE tem hoje associadas mais de 240 empresas, funcionando como uma plataforma de partilha e de apoio às empresas na estruturação das suas políticas de Responsabilidade Social e de Sustentabilidade, enquanto procura influenciar as políticas públicas. Como é que estão a conduzir as vossas associadas neste processo ou como estão elas a seguir (ou não) esse caminho?
O GRACE tem uma abordagem holística da sustentabilidade, numa lógica “ESG”. Como temos na nossa massa associativa empresas grandes e pequenas, nacionais e multinacionais, de setores muito diversos, baseadas em múltiplas geografias, a nossa proposta de valor tem de ser muito abrangente e multifacetada, sob pena de não conseguirmos criar valor para todos os nossos associados. Procuramos assim oferecer respostas tão tailor-made quanto possível, que efetivamente apoiem as empresas na sua jornada de sustentabilidade, ou lhes facilitem o caminho. E acreditamos que todos os nossos associados estão a fazer esse caminho, senão não encontrariam razão para estar no GRACE!
A taxonomia tem de ser o dialeto dos negócios sustentáveis? As empresas já estão a mudar a forma como olham para os temas da sustentabilidade?
A taxonomia é a nova linguagem da sustentabilidade, sim. Infelizmente é um “dialeto” com as suas complexidades, o que dificulta um pouco a mudança da for[1]ma como as empresas olham para os te[1]mas da sustentabilidade. Passada a “curva de aprendizagem”, acredito que essa mudança acelere. Mas neste momento ainda não se faz sentir fortemente.
Falou recentemente do papel transformador das empresas nesta caminhada e que, “sem as empresas, praticamente nenhum dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) poderá ser atingido”. Que estratégias estão já a traçar as empresas no âmbito da Agenda 2030 das Nações Unidas?
As empresas que estão determinadas em fazer parte do futuro já compreenderam que a sustentabilidade não é “uma estratégia”, mas antes “a estratégia”. E a Agenda 2030 das Nações Unidas (os 17 objetivos de Desenvolvimento Sustentável) constitui, de facto, um enquadramento que funciona como um excelente ponto de partida para as empresas delinearem um road map – nomeadamente, começando por “selecionar” quais os ODS para cuja prossecução mais poderão contribuir.
Defendeu num debate do Digital Lab para a sustentabilidade, promovido pela Axians e pela IDC, que “Portugal é um país não a duas, mas a umas 20 velocidades” em matéria de estratégias para a sustentabilidade nas empresas. Pode desenvolver?
As empresas portuguesas estão de facto a fazer o seu caminho a velocidades muito diferentes, em matéria de sustentabilidade. Em Portugal, temos desde empresas pioneiras que ombreiam com os seus concorrentes estrangeiros, até empresas que ainda não começaram a jornada (algumas das quais nem consciência têm de que o tema é um tema), passando por empresas que já delinearam um plano, mas não sabem bem como aplicá-lo ou que estão a tentar definir uma estratégia de sustentabilidade, mas não conseguem ter os meios para a fazer sair do papel. É de facto um panorama muito diverso.
Quais são, então, os maiores desafios que Portugal, e em concreto as empresas, tem de enfrentar para alcançar a ambicionada descarbonização?
As empresas têm desafios diferentes, que variam, desde logo, em função do setor de atividade. Uma empresa “energívora”, à partida tem desafios mais complexos, até porque não está ao seu alcance alterar o “mix energético” disponível, ficando assim dependente do surgimento de soluções hipocarbónicas que outras empresas irão criar, por via da inovação. E nesse campo Portugal tem desafios, é certo, mas também grandes oportunidades, nomeadamente por ser um dos países europeus que mais caminho já fizeram em matéria de energias renováveis.
Um dos propósitos do GRACE é precisamente influenciar políticas públicas. Como se tem materializado essa influência ao nível da sustentabilidade?
De várias formas. Desde logo, através da participação construtiva em consultas públicas sobre temas relacionados com a sustentabilidade. Depois, levando a cabo eventos de sensibilização que envolvam os atores públicos relevantes.
Procuramos também, por exemplo, influenciar a alteração de diplomas legais que, por serem antigos ou por não terem sido bem concebidos, constituem entraves à agenda de sustentabilidade das empresas.
Defendeu recentemente que “financiar as empresas e descarbonizar a economia são a mesma coisa”. Pode explicar?
No contexto do Pacto Ecológico Europeu, o sistema financeiro está a ser fortemente incentivado a canalizar fundos/investimento/financiamento, essencialmente para empresas e projetos que contribuam para a descarbonização da economia.
O risco de sustentabilidade é financeiro e acredito que, com o passar do tempo, será cada vez menos o financiamento disponível para empresas que não estejam a fazer o caminho da sustentabilidade. Até porque as entidades do sistema financeiro começarão a ser penalizadas (nomeadamente com maiores exigências de capital) se o seu portfolio não se for tornando, ele próprio, sustentável. Os incentivos estão alinha[1]dos para que a descarbonização da economia efetivamente ocorra.
Acha que começámos a olhar para as alterações climáticas e para a descarbonização tarde demais?
Sou uma otimista por natureza, acho que começámos tarde, mas não tarde demais. Se investirmos fortemente em inovação, ainda temos tempo – acredito que serão tecnologias que ainda não existem as que vão dar o maior contributo para a descarbonização.
*Entrevista publicada originalmente em março de 2023, na revista física da Green Savers