Restaurar para descarbonizar: como investir na Natureza ajuda a reduzir as emissões
Reduzir as emissões de gases com efeito de estufa para a atmosfera é fundamental para travar a crise climática, e também todas as outras que a essa estão associadas. A remoção e o sequestro de carbono são essenciais, e o restauro ecológico pode ser uma peça indispensável desses esforços.
A descarbonização é indispensável para reduzir as concentrações de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera e, assim, aplacar o aquecimento da Terra provocado pelas atividades humanas. Por outras palavras, sem descarbonização o combate às crises planetárias, especialmente às alterações climáticas, estará, à partida, fadado ao fracasso.
Essa palavra tem, ao longo dos últimos anos, conquistado lugar de proeminência nos discursos e narrativas de políticos, líderes empresariais, cientistas e organizações da sociedade civil. A descarbonização refere-se, essencialmente, aos esforços e práticas de redução de emissões de gases com efeito de estufa (predominantemente CO2, embora também possa abranger outros, como o metano) e a sua remoção da atmosfera e posterior sequestro. Em suma, o derradeiro objetivo é reduzir as concentrações atmosféricas de gases com efeito de estufa, que propiciam o aquecimento global e todas as crises daí decorrentes, e mitigar as alterações climáticas e os seus efeitos devastadores.
Em setembro de 2024, num discurso na Semana Climática de Nova Iorque, Simon Stiell, Secretário-executivo da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas (UNFCCC), dizia que “a descarbonização é inevitável e a maior transformação da economia global deste século”. E deixava claro que é algo que “não é nada fácil”.
Embora seja, por definição, a redução das emissões de gases com efeito de estufa lançadas na atmosfera, a descarbonização goza de uma flexibilidade que surge na forma do conceito da neutralidade.
A neutralidade carbónica (ou climática, como é usada em alguns contextos para abranger mais do que CO2) refere-se à compensação das emissões geradas com ações que têm como fim capturar a mesma quantidade de CO2 que é expelida para a atmosfera. Isto é, a neutralidade é a manutenção do equilíbrio entre a quantidade de gases com efeito de estufa que é emitida e a captura dessa mesma quantidade, de forma que a “balança carbónica” se mantenha equilibrada.
Por exemplo, se um dado país emitir X toneladas de dióxido de carbono por ano, pode alcançar a neutralidade carbónica se conseguir que essa mesma quantidade seja capturada e sequestrada. Assim, apesar das suas emissões, a concentração de gases com efeito de estufa que lança na atmosfera é, na prática, anulada.
Na União Europeia (UE), os Estados-membros assumiram o compromisso de até 2050 tornarem o bloco regional climaticamente neutro, com uma redução de 55% até ao final desta década.

Contudo, de acordo com o EU Emission Tracker, um portal que monitoriza o progresso dos Estados-membros da UE em direção à neutralidade climática, apenas dois países estão no caminho certo, a Suécia e a Finlândia, com os restantes 25 ainda a terem de fazer mais para conseguirem lá chegar na data prevista.
Para acelerar a descarbonização, reduções absolutas drásticas das emissões de gases com efeito de estufa podem não ser suficientes, embora sejam, no entanto, indispensáveis. É preciso, ao mesmo tempo, olhar para formas de retirar esses gases da atmosfera e de sequestrá-los de forma que não possam voltar a ser libertados. Como? Recorrendo à inovação tecnológica ou à força da Natureza. Ou mesmo implementando soluções que unam as forças de ambas.
Soluções tecnológicas versus soluções de base natural
A remoção de gases com efeito de estufa, em particular de CO2, da atmosfera é vista cada vez mais como essencial para desacelerar o aumento da temperatura global da Terra e, dessa forma, combater as alterações climáticas e todas as outras crises associadas, incluindo a perda de biodiversidade.
Aliás, isso já foi confirmado pelo Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), que, num relatório de abril de 2022 sobre a mitigação das alterações climáticas, descrevia como “inevitável” a implementação de medidas de remoção de CO2 para compensar “emissões residuais” difíceis de eliminar e para ser possível alcançar sociedades e economias climaticamente neutras.
Do lado da tecnologia, a forma que poderá parecer mais óbvia é a remoção de CO2 diretamente do ar. Esta abordagem, de forma genérica, tende a usar ventoinhas potentes para sugar o ar para mecanismos onde as moléculas de CO2 são separadas das demais, com o ar “purificado” a ser libertado.
O CO2 removido poderá ser usado para outros fins (como na produção de novos produtos e materiais ou noutros processos industriais) ou pode, por exemplo, ser armazenado permanentemente em formações rochosas subterrâneas, onde ficará sequestrado, idealmente, para sempre.
De acordo com a Agência Internacional de Energia, existem atualmente cerca de 45 instalações comerciais (como fábricas e centrais energéticas, mas não só) que estão já a usar tecnologias de captura e sequestro de carbono, com uma capacidade combinada para extrair mais de 50 milhões de toneladas de CO2 da atmosfera todos os anos. Mas o IPCC estima que, para ser possível manter o aquecimento do planeta abaixo dos 1,5 graus Celsius, um objetivo do Acordo de Paris de 2015 que parece cada vez mais utópico, é necessário remover da atmosfera perto de seis mil milhões de toneladas de CO2 por ano até 2050. Ainda estamos muito longe disso.
Ademais, essas tecnologias ainda são caras e isso poderá ser um entrave à sua disseminação e pode lançar dúvidas sobre se esse será mesmo o caminho mais adequado a seguir para alcançar a descarbonização e a neutralidade, em linha com a urgência de se agir o mais rapidamente possível para tentar, ao máximo, pôr cobro à crise climática.
Em 2023, especialistas do Instituto Internacional para o Desenvolvimento Sustentável (IISD) diziam que a complexidade do design e as necessidades de personalização das tecnologias de captura e sequestro de carbono limitam a sua disseminação. Além disso, apontavam que essas tecnologias exigem altos consumos de energia, e se essa energia vier de combustíveis fósseis, então serão também fonte de emissões.
Dadas as metas definidas para a neutralidade carbónica e climática definidas na UE, será preciso olhar para alternativas, e é aí que entram as chamadas soluções de base natural (SBN).
De forma simples, trata-se de recorrer aos sistemas da Natureza para capturar e armazenar carbono, por exemplo, no solo ou nas plantas, não apenas nas árvores das florestas, mas também nas zonas húmidas, como pauis, turfeiras, sapais.
Abordagens apoiadas em SBN incluem ações de florestação ou reflorestação, de revitalização dos solos para aumentar o seu potencial de sequestro de carbono e de proteção e restauro de ecossistemas e habitats degradados que tenham uma grande capacidade para capturar e aprisionar carbono.
Essas soluções tendem, comparando com as tecnológicas, a ser vistas como as mais eficientes em termos de custos e de benefícios, além de que, consoante os casos, podem ajudar a resolver dois problemas de uma só assentada: reduzir as concentrações de CO2 na atmosfera através do seu sequestro e regenerar áreas naturais e contribuir para o combate à crise da perda da biodiversidade.
Numa análise desenvolvida em 2021 pelo Serviço de Pesquisa do Parlamento Europeu (EPRS), que fornece análises independentes aos eurodeputados sobre uma diversidade de temas, especialistas reconheciam, com base no conhecimento existente, que as SBN são as mais baratas, mas, por outro lado, têm potenciais de captura de carbono a longo-prazo mais limitados quando comparadas com as soluções tecnológicas. De uma outra perspetiva, as abordagens tecnológicas, dizia a mesma fonte, são as que se estima terem os maiores potenciais de captura de carbono, mas os custos mais elevados.
Nos corredores da Academia ainda se debatem estas questões, especialmente se as soluções de base natural permitem realmente um sequestro duradouro do CO2, uma vez que, por exemplo, nas florestas os ciclos naturais de vida e de morte não só capturam CO2 como também o libertam. Além disso, esses sumidouros naturais de carbono estão vulneráveis, por exemplo, a incêndios que em pouco tempo podem lançar na atmosfera grandes quantidades de CO2 absorvido ao longo de décadas.
Apesar de parecer que ainda não há consenso sobre se uma abordagem é realmente melhor do que a outra, há quem diga que, dada a urgência climática, é preciso explorar todas as opções disponíveis, e não é afastada a possibilidade de uma combinação entre a inovação tecnológica e as SBN ser o caminho a trilhar.
Independentemente de discussões de foro mais académico, facto é que a Natureza captura e armazena carbono há muito mais tempo do que nós, e perceber como é que isso é feito, descortinar os seus mecanismos e potenciais, é mais uma via de descarbonizar e mais uma flecha na aljava daqueles que energizam os esforços em direção às ambicionadas economias neutras em carbono. Por isso, a recuperação de habitats e ecossistemas com elevados potenciais de sequestro de carbono poderá ser um elemento fundamental da equação da descarbonização, ao qual empresas, Estados e outras organizações devem, porventura, prestar mais atenção.
Sem restauro ecológico não há descarbonização
Em junho do ano passado, o Conselho da UE aprovou a Lei do Restauro da Natureza, uma peça legislativa enaltecida como uma vitória para a conservação da biodiversidade na região, com os Estados-membros a serem obrigados a recuperar pelo menos 20% dos seus habitats terrestres e marinhos até 2030 e a totalidade dos ecossistemas considerados degradados até 2050.
Certo é, e os especialistas assim o dizem, que o restauro ecológico de áreas que atuam ou podem atuar como sumidouros naturais de carbono por si só não será suficiente para alcançar as metas de descarbonização traçadas. A redução direta das emissões de gases com efeito de estufa é indispensável, mas sem investimentos no restauro os cortes não serão suficientes para chegarmos onde queremos.

Embora reconheça que o foco das empresas atualmente incide ainda muito sobre a redução direta das emissões, Filipa Pantaleão, Secretária-Geral do Conselho Empresarial para o Desenvolvimento Sustentável (BCSD Portugal), acautela que “é utópico pensar que se conseguirá alcançar um balanço líquido neutro de emissões apenas com base na redução”.
Para a responsável, com formação de base em Engenharia do Ambiente, por muito ambiciosos que possam ser os esforços de diminuição das emissões de gases com efeito de estufa haverá sempre “algumas emissões residuais” que serão “inevitáveis”, especialmente em “setores difíceis de descarbonizar”.
Como tal, defende que as reduções devem ser acompanhadas por medidas de sequestro de carbono, “recorrendo tanto a sumidouros naturais (reflorestação, regeneração de solos e restauro de ecossistemas marinhos) como a tecnologias inovadoras de captura e armazenamento de carbono”.
Por isso, Filipa Pantaleão considera que o restauro ecológico “surge como uma solução essencial para a descarbonização” e “uma peça complementar e estratégica” para alcançar a neutralidade. E essas ações não contribuem apenas para a remoção de carbono da atmosfera, como têm também “benefícios adicionais de biodiversidade, resiliência climática e apoio às comunidades locais”, acrescenta.
Na mesma linha, Nuno Gaspar de Oliveira afirma perentoriamente que o restauro ecológico “provavelmente é a única forma de tornar a descarbonização verdadeiramente efetiva e durável”.
Biólogo com mais de 20 anos de experiência em biodiversidade e ecossistemas, o diretor-executivo da consultora portuguesa Natural Business Intelligence (NBI), que ajuda empresas e outras organizações a adotarem economias de base natural para aliar o desenvolvimento económico à proteção do planeta, explica-nos que o restauro ecológico não se resume a reduzir a quantidade de CO2 na atmosfera, mas trata-se de “recompor relações ecológicas que permitam ao planeta voltar a desempenhar o seu papel de regulador climático”.
“Empresas que integram esta visão não estão apenas a compensar, estão a investir na infraestrutura ecológica do seu próprio modelo de negócio”, sentencia Nuno Gaspar de Oliveira.
Mas será que as empresas estão realmente conscientes de que investir no restauro ecológico pode ajudá-las a cumprirem as suas metas de descarbonização?
Começa a crescer a consciência de que é preciso restaurar para descarbonizar
As empresas estão ainda muito focadas nas reduções diretas das suas emissões, apostando fortemente na eletrificação das suas frotas automóveis, na adoção das renováveis e no aumento da sua própria eficiência energética.
Filipa Pantaleão considera que essa é uma prioridade correta, uma vez que “a descarbonização direta das operações de cadeias de valor é o primeiro passo crítico para qualquer plano climático credível”. No entanto, aponta que, à medida que as metas climáticas se aproximam, começa-se a olhar mais seriamente para “soluções complementares” e o restauro ecológico a ser visto como “uma alavanca fundamental para atingir objetivos de longo prazo”.
O foco ainda praticamente exclusivo na redução direta das emissões provém do que Nuno Gaspar de Oliveira descreve como “a obsessão pela métrica técnica”, que limita o espaço para o que é “orgânico, resiliente, complexo”.
Mas para o biólogo o restauro ecológico como medida de descarbonização e, em última instância, de combate à crise climática, não pode ser só feito com “boas intenções ou estratégias de compensação”. É preciso, defende ele, “inteligência territorial e coragem de assumir que o carbono não se resolve apenas com tecnologia”, mas sim “com solo, raízes e tempo”. E alerta que “já não basta saber, é preciso agir”.
Em Portugal, tal como um pouco por todo o mundo, as empresas têm também as suas atenções centradas na redução direta das emissões, mas parece que começam a despertar para outras formas de reduzirem as suas pegadas carbónicas. Filipa Pantaleão recorre à experiência que tem tido no BCSD Portugal para nos dizer que “observamos um interesse crescente [das empresas] por temas como o restauro ecológico”, não só para cumprimento de compromissos de regeneração dos ecossistemas, mas também para alcançarem a neutralidade carbónica.
“Algumas empresas membro [do BCSD Portugal] já estão a integrar projetos de reflorestação, regeneração de solos ou recuperação de áreas degradadas nos seus planos de sustentabilidade”, afirma a responsável. Para que essa tendência continue e seja reforçada, acredita que é preciso fazer ver às empresas que o restauro ecológico “é uma ferramenta estratégica tanto para a descarbonização como para a criação de valor ambiental e social” e que as SBN são uma abordagem eficiente em termos de custos e de benefícios “para remover carbono e simultaneamente regenerar o capital natural, apoiar comunidades e aumentar a resiliência face às alterações climáticas”.
Assim, o país parece estar a atravessar “uma transição silenciosa, mas significativa”, como nos diz Nuno Gaspar de Oliveira, com a ideia de que investir na Natureza é “um ato de benevolência ambiental” a dar lugar à convicção de que “a Natureza é infraestrutura produtiva” e que o restauro ecológico é “uma forma de gestão de risco e de captura de oportunidades”.
O diretor-executivo da NBI considera que o restauro ecológico como forma de descarbonizar tem de deixar de ser visto por um prisma quase puramente técnico e de ser olhado de forma estrutural, percebendo as ligações indissociáveis entre “restauro, carbono, biodiversidade e água”. Para isso, é necessário “coordenação e determinação”, algo que diz faltar atualmente, bem como “literacia ecológica e mecanismos políticos e económicos compatíveis com o tempo da Natureza”.
Falta de conhecimento é o principal entrave
Os especialistas são unânimes na identificação do principal entrave a um maior desenvolvimento do restauro ecológico como peça indispensável da descarbonização: a falta de conhecimento.
De forma geral, os líderes empresariais ignoram, na maior parte das vezes sem o saberem, o potencial que se esconde nas SBN, designadamente no restauro ecológico, para fazer avançar a descarbonização das suas organizações.
Se, por um lado, Filipa Pantaleão nos chama a atenção para uma “falta de conhecimento técnico” sobre o potencial dessas abordagens “para mitigar emissões, regenerar ecossistemas e gerar benefícios económicos e sociais”, e que muitos decisores continuam a olhar para o restauro como somente “uma ação de responsabilidade social ou de conservação da natureza” e não o veem como “uma solução climática integrada e eficaz”, Nuno Gaspar de Oliveira aponta “a linguagem” como “a maior barreira”.
O biólogo afirma que “a semântica da ecologia ainda não é comum nas salas de decisão” e que embora muitos líderes empresariais possam genuinamente querer “fazer diferente”, a falta de conhecimento faz com que não sejam capazes de “ler um ecossistema” ou saber as perguntas certas a fazer.
“É o equivalente a querer investir num ativo financeiro sem perceber o seu grau de risco”, exemplifica.
Mas o desconhecimento não é o único impedimento, ainda que possa ser o mais fundamental. Também há a perceção de que os processos de restauro ecológico demoram muito tempo até que possam dar os resultados de captação e sequestro de carbono desejados pelas empresas, que procuram mostrar trabalho na redução das suas emissões com metas para 2030.
A Secretária-Geral do BCSD Portugal diz-nos que também existem alguns desafios relacionados com a medição, reporte e verificação dos impactos dos projetos de restauro nas estratégias de ação climática das empresas, “o que pode gerar receio quanto à sua credibilidade junto de investidores, clientes e reguladores”.
Para ultrapassar esses obstáculos, salienta, é preciso “combinar esforços de educação e capacitação, desenvolver métricas robustas e promover políticas públicas” que permitam valorizar e incentivar a adoção das SBN “com parte dos esforços globais de descarbonização”.
E nesse campo dos incentivos há ainda muito a fazer, com Nuno Gaspar de Oliveira a contar-nos que “a ausência de incentivos fiscais ou mecanismos de financiamento adequados e acessíveis para o restauro ecológico ainda limita o apetite de investimento”. Como tal, diz que é “essencial” criar um enquadramento jurídico e económico “que reconheça os benefícios dos serviços dos ecossistemas, não como externalidades, mas como ativos essenciais à competitividade futura das empresas”.
Muito mais do que plantar árvores
São vários os casos de empresas, outras organizações e municípios que têm já dado passos no restauro ecológico para mitigarem as suas pegadas carbónicas. Para os mais atentos, será evidente o facto de muitas dessas ações se traduzirem em plantações de árvores.
As árvores e as florestas parecem ser vistas por muitos como os sumidouros naturais de carbono por excelência. Mas será que são mesmo? Antes disso, vejamos por que razão as ações de plantação são tão populares.
Tanto Filipa Pantaleão como Nuno Gaspar de Oliveira concordam que o fator “visibilidade” pesa e muito. Se, por um lado, é “uma solução mais conhecida, visualmente apelativa, relativamente barata e com benefícios de reputação claros”, como diz a responsável do BCSD Portugal, por outro, os projetos florestais são, aponta o diretor da NBI, “mais familiares e acessíveis”.
Filipa Pantaleão acrescenta ainda que os programas de reflorestação têm “mecanismos de certificação e contabilização de carbono já estabelecidos”, algo que ajuda a encaixá-los “nos compromissos de responsabilidade climática das empresas”.
No entanto, comparando com os sistemas florestais, as zonas húmidas, como os sapais e pauis, os sistemas ribeirinhos, as pradarias de ervas marinhas e os recifes de coral, podem ter um potencial muito maior de captação e sequestro de carbono. Lamentavelmente, são menos visíveis, de mais difícil acesso, sabe-se menos sobre as suas dinâmicas ecológicas e, diz Filipa Pantaleão, o seu restauro tem “custos iniciais mais elevados”, além de gozarem de “uma menor familiaridade” junto da sociedade em geral.
Mas ignorar o enorme potencial das zonas húmidas como sumidouros de carbono é um erro, e as empresas, e os próprios municípios que queiram reduzir as suas pegadas carbónicas, deveriam começar a prestar mais atenção a esses ecossistemas. Isto, porque além de ajudarem a reduzir as concentrações de CO2 na atmosfera e, assim, a combater as alterações climáticas, as zonas húmidas são também “escudos naturais” que ajudam a proteger comunidades humanas e não-humanas de impactos da crise climática, como tempestades e cheias, e a manter a biodiversidade e o sustento de muitas pessoas que vivem na orla costeira ou junto a sistemas fluviais.
Zonas húmidas: sumidouros de carbono longe das luzes da ribalta
Há mais de duas décadas que Bernardo Duarte se dedica ao estudo das áreas alagadas no estuário do rio Tejo, onde se tem também debruçado sobre o potencial que essas zonas têm enquanto sumidouros do chamado “carbono azul”, uma referência à água que é um dos principais elementos desses ecossistemas.
Ainda que reconheça que o restauro ecológico “não é a mãe de todas as soluções” para a descarbonização, mas sim “mais uma a juntar a todas as que estão disponíveis” e que certamente contribuirá para alcançar esse objetivo, o investigador do pólo do centro de investigação MARE na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL), onde também é docente, diz-nos que o potencial de captura e sequestro de carbono, por exemplo, dos sapais é muito superior ao das florestas. Estimativas apontam para que um hectare de zona húmida, como um sapal, é capaz de reter 1.760 quilogramas de carbono, o que equivale às emissões de CO2 de um automóvel num percurso de 32.572 quilómetros.
O enorme potencial desses ecossistemas aquáticos como sumidouros de carbono torna-se claro quando comparado com o das florestas temperadas. Acima do solo, as zonas húmidas de todo o mundo conseguem apenas reter, em média, 43 mil milhões de toneladas de CO2 por ano, ao passo que as florestas temperadas conseguem sequestrar 57 mil milhões de toneladas.

Mas o segredo das zonas húmidas está abaixo da superfície, onde têm o potencial para sequestrar 643 mil milhões de toneladas de CO2 por ano, face ao potencial de armazenamento subterrâneo de 96 mil milhões de toneladas das florestas temperadas.
Pensa-se que no último século a Europa tenha perdido 80% das suas zonas húmidas, muito fruto da expansão humana, sobretudo urbana e agrícola, na região, que levou à drenagem desses ecossistemas e à sua consequente destruição, convertendo-as, de sumidouros, em fontes de emissões de gases com efeito de estufa.
Dado o grande potencial de sequestro de carbono das zonas húmidas, por que razão ações de descarbonização e de compensação de emissões realizadas por empresas ou outras organizações não incidem mais sobre esses ecossistemas?
Uma vez mais, será, sobretudo mas não só, uma questão de visibilidade. Ao passo que as florestas, e as árvores aí plantadas, são altamente visíveis, a vegetação nas zonas húmidas ou está submersa, e por isso longe dos olhares do público, ou é considerada pouco atraente e, assim, desvalorizada. Das zonas húmidas podem também emanar odores desagradáveis ao olfato humano, contribuindo para que não estejam no topo da lista de ações de restauro para fins de descarbonização.
Além disso, a falta de conhecimento desse grande potencial de sequestro de carbono é também um fator de peso. Bernardo Duarte diz que muitas empresas e até alguns municípios que têm trabalhado com ele e com os seus colegas no restauro de zonas húmidas não estão, muitas vezes, à partida conscientes de que esses ecossistemas podem reter grandes quantidades de CO2, ficando surpreendidos quando isso lhes é revelado.
O investigador recorda que foram feitas ações de restauro no estuário do Tejo para mitigar a pegada carbónica das Jornadas Mundiais da Juventude, que decorreram em agosto de 2023. Para ele, esse é um exemplo que mostra que, apesar de ainda escassa, começa a surgir e a crescer a consciência de que o restauro de zonas húmidas ajuda a compensar emissões.
Bernardo Duarte acredita que casos como esse permitem mostrar que essas abordagens funcionam e que podem ser replicadas em muitos outros contextos.
Ao nível dos municípios, o restauro ecológico depende das características de cada território. Regiões mais interiores tenderão a ter menos zonas húmidas e o foco recairá, inevitavelmente, sobre áreas florestais, ao passo que territórios mais perto da costa olharão mais para os ecossistemas aquáticos. Por isso, o investigador diz que não há uma solução única, pelo que cada município deve avaliar as suas necessidades, as suas metas e, claro, os recursos orçamentais que tem disponíveis, bem como a sua própria pegada carbónica.
Quanto às empresas, o que é preciso é essencialmente mais conhecimento sobre o potencial do restauro das zonas húmidas para mitigar as suas emissões, algo que Bernardo Duarte diz que exige também uma maior proximidade e sinergia entre a comunidade científica e o mundo empresarial. É, em suma, preciso mostrar que ações de descarbonização através do restauro ecológico podem ir muito além da plantação de árvores.
A expansão do restauro ecológico como mais uma dimensão da descarbonização dependerá também da disponibilidade das entidades para esperarem pelos resultados, “porque são processos lentos”, afirma o investigador, acrescentando que “as soluções baseadas na Natureza não são imediatas e levam tempo”, mas podem granjear, no final do dia, muito mais benefícios em muito mais dimensões (conservação da biodiversidade, adaptação às alterações climáticas, melhor qualidade da água) do que outro tipo de abordagens.
Por isso, o investimento no restauro tem de se visto a longo prazo, pelo que “se necessitarem de uma solução imediata é claro que vão optar por soluções de engenharia ou químicas, porque também as há, com diferentes graus de eficiência, e tendem a ser mais imediatas”, explica-nos.
Apesar dos benefícios que tem para a descarbonização, Bernardo Duarte, tal como outros investigadores, defende que, o restauro ecológico não deve ser reduzido a uma só dimensão de captura e sequestro de carbono. Para ele, esse tipo de medidas deve ser encarado, acima de tudo, como formas de melhorar o estado dos ecossistemas e da biodiversidade que, de forma complementar, têm contributos importantes a dar para mitigar as emissões de gases com efeito de estufa.
Evitar que o restauro caia na armadilha do “greenwashing”
Em tudo o que toca na redução dos impactos sobre o ambiente, há o risco de empresas, municípios e Estados poderem cair, inadvertidamente ou não, na armadilha do “greenwashing”.
Num artigo publicado em dezembro de 2023 na revista ‘Trends in Ecology & Evolution’, com o título “Valuing the functionality of tropical ecosystems beyond carbon”, alertava-se para a plantação de espécies não-nativas em ecossistemas tropicais, no âmbito de programas de mitigação de emissões de CO2.
Os autores desse estudo apontavam que essas regiões do planeta, devido às suas condições climáticas e ecológicas, promovem o rápido crescimento das árvores, permitindo, dessa forma, uma mais rápida absorção de carbono. Noutras zonas do planeta, estão a ser plantadas árvores onde antes não existiam, como em pradarias, alterando a ecologia local, ou a ser usada apenas uma ou outra espécie, promovendo manchas florestais homogéneas e desvirtuando a biodiversidade desses habitats.
“A atual tendência de plantação de árvores com foco no carbono está a levar-nos por um caminho que resultará na homogeneização biótica e funcional de larga-escala, com ganhos de carbono reduzidos”, dizia Jesús Aguirre-Gutiérrez, primeiro autor do artigo.
Para que o restauro ecológico não seja desvirtuado e acabe por causar mais danos do que benefícios, é preciso, como diz Filipa Pantaleão, do BCSD Portugal, seguir “orientações científicas e critérios rigorosos de planeamento, execução e monitorização”, envolvendo especialistas locais, comunidades e cientistas e evitando “soluções ‘rápidas’ e visíveis” que “priorizam o retorno reputacional em detrimento da regeneração ecológica genuína”.
Para Nuno Gaspar de Oliveira, da Natural Business Intelligence, não se deve avançar com projetos de restauro “sem saber claramente em que direção queremos ir”, sendo que o ponto de partida deverá ser sempre “o diagnóstico ecológico”.
“A integridade é construída com base em evidência, acompanhamento técnico e transparência na cadeia de valor, e é isso que diferencia o restauro ecológico sério do greenwashing”, sentencia.
Restaurar os ecossistemas não é uma “solução mágica” que vai permitir a empresas, municípios, Estados e outras organizações reduzirem as suas emissões de um dia para o outro. Mas é uma abordagem que não deve ser desvalorizada.
A descarbonização deverá, idealmente, passar pela redução direta de emissões de gases com efeito de estufa, com o reforço da mobilidade elétrica e a substituição progressiva das energias fósseis pelas renováveis, em articulação com ações de restauro ecológico, que revitalizem áreas degradadas e protejam aquelas em bom estado de conservação, impulsionando o seu potencial enquanto sumidouros naturais de carbono.
Mas é preciso perceber que o restauro não se limita a uma só métrica – o carbono – e deve ser encarado como uma abordagem com efeitos muito mais abrangentes, que, se bem aplicada e monitorizada, pode ajudar a cumprir uma panóplia de metas para aplacar as grandes crises planetárias.
* Publicado originalmente na edição em papel de junho de 2025