Aves desenvolveram cérebros complexos diferentes dos mamíferos
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O pálio é a região do cérebro onde se forma o neocórtex nos mamíferos, a parte responsável pelas funções cognitivas e complexas que mais distingue o ser humano das outras espécies. Tradicionalmente, tem sido considerado uma estrutura comparável entre mamíferos, aves e répteis, variando apenas nos níveis de complexidade. Partiu-se do princípio de que esta região albergava tipos neuronais semelhantes, com circuitos equivalentes para o processamento sensorial e cognitivo. Estudos anteriores tinham identificado a presença de neurónios excitatórios e inibitórios comuns, bem como padrões gerais de conetividade que sugeriam um percurso evolutivo semelhante nestas espécies de vertebrados.
No entanto, os novos estudos revelaram que, embora as funções gerais do pálio sejam equivalentes entre estes grupos, os seus mecanismos de desenvolvimento e a identidade molecular dos seus neurónios divergiram substancialmente ao longo da evolução.
O primeiro estudo, realizado por Eneritz Rueda-Alaña e Fernando García-Moreno em Achucarro, com o apoio de uma equipa multidisciplinar de colaboradores dos centros de investigação bascos CICbioGUNE e BCAM, do CNIC de Madrid, da Universidade de Múrcia, de Krembil (Canadá) e da Universidade de Estocolmo, mostra que, embora as aves e os mamíferos tenham desenvolvido circuitos com funções semelhantes, a forma como estes circuitos se formam durante o desenvolvimento embrionário é radicalmente diferente.
“Os seus neurónios nascem em locais e momentos de desenvolvimento diferentes em cada espécie”, explica García-Moreno, chefe do laboratório Brain Development and Evolution, ‘indicando que não são neurónios comparáveis derivados de um antepassado comum’. Utilizando a transcriptómica espacial e a modelização matemática, os investigadores descobriram que os neurónios responsáveis pelo processamento sensorial nas aves e nos mamíferos são formados utilizando conjuntos de genes diferentes.
“As ferramentas genéticas que utilizam para estabelecer a sua identidade celular variam de espécie para espécie, apresentando cada uma delas tipos de células novos e únicos.” Tudo isto indica que estas estruturas e circuitos não são homólogos, mas sim o resultado de uma evolução convergente, o que significa que “desenvolveram independentemente estes circuitos neuronais essenciais através de diferentes caminhos evolutivos”, acrescenta.
O segundo estudo explora ainda mais estas diferenças. Realizado na Universidade de Heidelberg (Alemanha) e co-dirigido por Bastienne Zaremba, Henrik Kaessmann e Fernando García-Moreno, fornece um atlas detalhado dos tipos de células do cérebro das aves e compara-o com os dos mamíferos e répteis. “Conseguimos descrever as centenas de genes que cada tipo de neurónio utiliza nestes cérebros, célula a célula, e compará-los com ferramentas de bioinformática”.
Os resultados mostram que as aves mantiveram a maior parte dos neurónios inibitórios presentes em todos os outros vertebrados durante centenas de milhões de anos.
No entanto, os seus neurónios excitatórios, responsáveis pela transmissão de informação no pálio, evoluíram de uma forma única. Apenas alguns tipos de neurónios no cérebro das aves foram identificados com perfis genéticos semelhantes aos encontrados nos mamíferos, como o claustrum e o hipocampo, sugerindo que alguns neurónios são muito antigos e partilhados entre espécies. “Ainda assim, a maioria dos neurónios excitatórios evoluíram de formas novas e diferentes em cada espécie”, explica García-Moreno.
Os estudos, publicados na revista Science, utilizaram técnicas avançadas de transcriptómica espacial, neurobiologia do desenvolvimento, análise de uma única célula e modelação matemática para traçar a evolução dos circuitos cerebrais em aves, mamíferos e répteis.
Reescrever a história evolutiva do cérebro
“Os nossos estudos mostram que a evolução encontrou várias soluções para construir cérebros complexos”, explica García-Moreno. “As aves desenvolveram circuitos neuronais sofisticados através dos seus próprios mecanismos, sem seguir o mesmo caminho que os mamíferos. Isto muda a forma como entendemos a evolução do cérebro”.
Estas descobertas realçam a flexibilidade evolutiva do desenvolvimento do cérebro, demonstrando que as funções cognitivas avançadas podem surgir através de vias genéticas e celulares muito diferentes.
A importância de estudar a evolução do cérebro
“O nosso cérebro torna-nos humanos, mas também nos liga a outras espécies animais através de uma história evolutiva partilhada”, explica García-Moreno. A descoberta de que as aves e os mamíferos desenvolveram circuitos neuronais de forma independente tem implicações importantes para a neurociência comparativa.
A compreensão dos diferentes programas genéticos que dão origem a tipos específicos de neurónios pode abrir novas vias de investigação no domínio do neurodesenvolvimento. García-Moreno defende este tipo de investigação fundamental: “Só compreendendo como o cérebro se forma, tanto no seu desenvolvimento embrionário como na sua história evolutiva, é que podemos compreender verdadeiramente o seu funcionamento.”