Entrevista: “A transição climática não é uma agenda que possa ser adiada”
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Isabel Barros foi eleita, no ano passado, Presidente do GRACE – Isabel Barros, sucedendo a Margarida Couto. Licenciada em Psicologia pela Universidade do Porto e com um MBA Executivo EADA Business School Barcelona e da Nagoya International School Japan, é Administradora Executiva da MC Sonae, contando com os pelouros de Transformation, People and Sustainability. Traz consigo uma vasta experiência em temas como a Sustentabilidade, as Jornadas ESG e o compromisso com as metas estipuladas na Agenda 2030, estando empenhada em levar o GRACE a novos patamares de sucesso e excelência.
Nesta entrevista, fala-nos sobre o que, do seu ponto de vista, é ser uma empresa socialmente responsável, sobre a importância de ratings e índices ESG, rankings e questionários que se propõem avaliar o desempenho das empresas na área da sustentabilidade e sobre o papel “crucial” do Governo ao estabelecer políticas de incentivo e programas de financiamento que facilitem a adoção de práticas sustentáveis, num tecido empresarial “a avançar a duas velocidades”.
– Que atributos precisa de ter uma empresa para merecer o qualitativo de socialmente responsável?
Nos dias de hoje, ser socialmente responsável implica olhar como um todo e de forma proativa para o tema da sustentabilidade, compreendendo que essa responsabilidade vai além do que tradicionalmente concebemos como apoio à comunidade ou filantropia. Significa trabalhar de forma integrada na gestão das questões ambientais, sociais e económicas subjacentes à atividade das nossas empresas. Não se trata apenas de reportar ou cumprir os requisitos legais, mas sim de adotar uma abordagem mais ampla sobre o que significa criar valor, numa perspetiva integrada dos diferentes capitais – natural, humano, social e financeiro – para assegurar a resiliência dos negócios a médio e longo prazo e sustentar vantagens competitivas.
Ser um catalisador desta transformação junto do setor corporativo é, sem dúvida, uma ambição e um trabalho que o GRACE tem vindo a realizar de forma consistente junto dos seus Associados.
– A Responsabilidade Social das empresas é frequentemente conotada com benefícios aos trabalhadores, com melhores salários e condições de trabalho, com a redução das emissões de dióxido de carbono. É só mesmo isso ou deverá/poderá haver mais?
Cada empresa insere-se num setor de atividade com impactos e dependências distintos. Dessa forma, ao integrar a sustentabilidade de forma estratégica na gestão da empresa e negócio, atendendo ao seu contexto, às suas condicionantes e ao seu estado de maturidade, implicará um conjunto específico de benefícios e trade-offs nas diferentes dimensões económica, social e ambiental. De forma sucinta diria que a resiliência da competitividade do negócio será um dos benefícios fundacionais desta abordagem à gestão.
– Acha que é preciso (re)pensar a forma como a responsabilidade social das organizações tem sido exercida? De que forma?
Todos os dias, somos confrontados com notícias e factos que nos alertam precisamente para essa necessidade. Ainda no início deste ano, o UN Global Compact destacava que apenas 15% dos indicadores que medem o progresso da Agenda dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável estava on track para cumprirmos a ambição de 2030.
Nos dias de hoje, ser socialmente responsável implica olhar como um todo e de forma proativa para o tema da sustentabilidade, compreendendo que essa responsabilidade vai além do que tradicionalmente concebemos como apoio à comunidade ou filantropia
Reconhecendo que houve uma evolução muito significativa na forma como as empresas têm vindo a olhar e trabalhar o tema da sustentabilidade, é igualmente necessário reconhecer que é urgente fazermos mais, passarmos dos diagnósticos e compromissos à ação. Mas é igualmente necessário frisar que não se trata apenas do que as empresas podem e devem fazer. Cumprir a ambição de 2030 significa um esforço concertado dos diferentes stakeholders.
Ao longo deste quarto de século que vamos celebrar no GRACE, temos vindo a trilhar esse percurso. Começámos por ser um grupo de grandes empresas com o objetivo de sensibilizar o tecido empresarial para a importância da cidadania e responsabilidade social nas empresas. Nos dias de hoje, temos a ambição de acelerar a agenda, também pela construção de pontes entre as diferentes partes.
– O Merco, o monitor de referência para a Iberico-América, publicou em fevereiro o ranking das 100 empresas mais responsáveis em termos de ESG. O Grupo Nabeiro – Delta Cafés (1º) lidera o ranking das empresas mais responsáveis de Portugal, seguido da EDP (2º) e do IKEA (3ª). Nas posições que se seguem encontram-se o LIDL em 4º lugar e a Sonae, em 5º. Como é que analisa estes resultados?
Nos últimos anos, temos assistido a uma proliferação de ratings e índices ESG, rankings e questionários que se propõem avaliar o desempenho das empresas na área da sustentabilidade. Estes instrumentos desempenham um papel extremamente positivo, na medida em que trazem maior foco e mais atenção à temática. Neste caso em específico, avaliam a perceção dos consumidores sobre a abordagem das empresas à sustentabilidade e a forma como comunicam os seus esforços e impactos, conferindo um input para as empresas avaliarem o seu desempenho.
– Vanessa Sequeira, Country Manager do Merco em Portugal considera que “só há um caminho para concretizar a responsabilidade social das empresas: a coerência”. Concorda?
A coerência entre o que as empresas dizem e fazem, a coerência que trabalhar de forma integrada as diferentes dimensões que estão subjacentes ao conceito de sustentabilidade, a consistência entre o curto, médio e longo prazo são na minha opinião fatores essenciais para assegurar a resiliência das propostas de valor das empresas.
– O desafio das grandes empresas é integrarem fatores sociais, ambientais e de governança nas suas políticas de gestão até 2030. Vão conseguir?
Diria que não é uma questão opcional. Sabemos que a integração de fatores sociais, ambientais e de governação (ESG) nas políticas de gestão representa um enorme desafio, mas não integrar ou adiar essa transição até 2030 não é uma opção. Isto é especialmente verdade se estivermos efetivamente comprometidos com a ambição da Agenda do Desenvolvimento Sustentável.
Nos últimos anos, temos assistido a uma proliferação de ratings e índices ESG, rankings e questionários que se propõem avaliar o desempenho das empresas na área da sustentabilidade. Estes instrumentos desempenham um papel extremamente positivo, na medida em que trazem maior foco e mais atenção à temática
A integração bem-sucedida exigirá uma mudança fundamental no mindset da gestão de topo para incorporar os princípios ESG em todos os níveis da organização, no sentido de fazer diferente e, assim, fazer a diferença.
– O Pacto Ecológico Europeu é um pacote de medidas que deverá permitir às empresas e aos cidadãos europeus beneficiar de uma transição sustentável, visando atingir a neutralidade climática até 2050, tornando a Europa no primeiro continente climaticamente neutro, retardando o aquecimento global e atenuando os seus efeitos. Como é que se convocam pessoas e empresas portuguesas para este complexo pacto?
Temos é um tecido empresarial a avançar a duas velocidades. Por um lado, há grandes empresas e grupos económicos com estratégias e roadmaps muito ambiciosos, já em execução, com reduções e contributos muito significativos. Por outro lado, temos pequenas e médias empresas (PMEs) que enfrentam outras limitações.
O Governo tem um papel crucial nesta matéria, ao estabelecer políticas de incentivo e programas de financiamento que facilitem a adoção de práticas sustentáveis.
O Governo tem um papel crucial nesta matéria, ao estabelecer políticas de incentivo e programas de financiamento que facilitem a adoção de práticas sustentáveis
A colaboração entre o setor público e privado, bem como iniciativas de capacitação e partilha de melhores práticas, será igualmente importante para garantir que todas as empresas portuguesas estejam alinhadas com a meta de emissões líquidas nulas até 2050.
– Todos os estados estão juridicamente vinculados à meta de emissões líquidas nulas em 2050. Em que parte do caminho estão as empresas portuguesas?
Como já referi este é um desafio não só das empresas, mas dos Estados como um todo. E essa não é uma realidade portuguesa, mas europeia. Há muita legislação produzida, mas não basta produzir é preciso acompanhar a sua implementação, criar condições para concretizar a ambição atendendo às especificidades dos diferentes sectores económicos e o nível de maturidade das empresas.
– Temos de reduzir as emissões em 55% até 2030. Só faltam 6 anos. É possível? Como?
De acordo com o Inventário Nacional de Emissões 2024, publicado pela APA, em 2022, a emissão de GEE em Portugal foi de 56,4 Mt CO₂e, o que representou um aumento de 0,1% face a 2021, mas um decréscimo de 34,5% face a 2005.
Se considerarmos, em específico, o sector da energia, que inclui os transportes e a produção de energia, temos reduções ainda mais significativas, que são maioritariamente explicadas pelo fim da produção de eletricidade a partir do carvão. Por outro lado, sabemos que a produção de energia renovável em 2023 atingiu o valor mais elevado de sempre no sistema nacional.
Estes são alguns dados que reforçam a confiança para mantermos o foco e o ritmo da descarbonização da nossa economia, sabendo que temos pela frente importantes e complexos desafios que requerem quadros políticos robustos, colaboração público-privada e soluções inovadoras.
– Disse em entrevista ao Expresso que prefere “grandes targets para 2030 com roadmaps (roteiros) claros do que grandes neutralidades para 2050 sem roadmaps para os atingirmos”. Porquê?
A transição climática não é uma agenda que possa ser adiada. Para cumprirmos o objetivo de neutralidade carbónica, temos de atuar hoje, com uma estratégia transversal e consistente, um modelo de governação transparente e um plano de ação orientado para cumprir objetivos específicos, com métricas monitorizáveis e com os recursos necessários para o efeito identificados.
Para um combate eficaz ao greenwashing existem dois caminhos complementares: o conhecimento e a regulamentação
Numa empresa, qualquer estratégia de negócio precisa de planos claros, métricas e dados para ser aprovada e implementada. Ninguém apresentaria um plano a mostrar que iria quadruplicar as vendas até 2030 sem apresentar os factos e o racional subjacente. A sustentabilidade não pode ser diferente.
– No atual quadro de crises planetárias, há quem defenda que a responsabilidade social tem de deixar de ser vista como algo voluntário, para passar a obrigatório para evitar agudizar a degradação dos sistemas da Terra. Mas as empresas, pelo menos algumas, tendem a resistir a obrigações, defendendo o carácter voluntário. Considera que a responsabilidade social em contexto de alterações climáticas deve ser uma obrigação? Quais os prós e os contras dessa abordagem?
Como referi anteriormente, não é apenas uma obrigação; é um fator crítico de sucesso para qualquer empresa e negócio. Não obstante, estamos conscientes de que a transição é um processo complexo e financeiramente pesado.
Dessa forma, a tónica e o foco da discussão deverão ser sobre a melhor forma de conseguirmos realizar a transição de maneira mais ágil, promovendo a capacitação das empresas e salvaguardando a sua competitividade e resiliência.
– Ambientalistas e outras vozes críticas da atuação das empresas no planeta têm chamado a atenção do público, e os legisladores e reguladores, para estratégias apresentadas como ‘verdes’ ou ‘climáticas’ que mais não fazem do que enganar acionistas e consumidores, o chamado greenwashing. Como é que se combate essa prática?
Para um combate eficaz ao greenwashing existem dois caminhos complementares: o conhecimento e a regulamentação.
Por um lado, a regulamentação visa limitar as formas de atuação das empresas em matéria de greenwashing através, por exemplo, de iniciativas como a diretiva das green Claims ou a Diretiva para a capacitação dos consumidores para a transição ecológica. Por outro lado, a promoção do conhecimento e literacia dos consumidores são fundamentais para que as tentativas de greenwashing sejam cada vez mais difíceis. É exatamente neste papel de disseminar o conhecimento da sociedade que todos temos um papel ativo, incluindo o próprio GRACE.
*Artigo originalmente publicado na edição em papel de setembro