Na Arrábida pode esconder-se um berçário de tubarões-azuis

Os tubarões-azuis (Prionace glauca) vivem nas águas temperadas e tropicais do planeta, e no Atlântico Norte podem ser encontrados entre a superfície marinha e profundidades de até mil metros. Por isso mesmo, é uma das espécies de tubarões mais afetadas pela pesca em todo o mundo, tendo, em 2019, sido classificada, a nível global e europeu (incluindo nas águas portuguesas), como “Quase Ameaçada” pela União Internacional para a Conservação da Natureza. Contudo, no Mediterrâneo, as populações estão “Criticamente Ameaçadas”, muito por causa dos impactos da pesca comercial.
Em Portugal, os tubarões-azuis são a espécie de tubarão mais frequentemente capturada por pesca de palangre de superfície, uma arte piscatória, especialmente destinada à captura de atum e espadarte, que consiste numa linha principal, a madre, que flutua à tona de água, e da qual saem várias linhas secundárias, cada qual com um anzol.

Foto: Frederico Almada
Além da captura acidental, os tubarões-azuis enfrentam também outras ameaças, como o ruído antropogénico, um perigo em crescendo desde a costa ao mar profundo e proveniente, por exemplo, do tráfego marítimo, da pesca e de atividades portuárias.
Ainda que os elasmobrânquios, o grupo que inclui os tubarões e as raias, seja um dos menos estudados quanto aos impactos sofridos pelo ruído antropogénico, estudos sugerem que todo o barulho que nós, humanos, produzimos nos mares afeta o comportamento desses animais.
Agora, um grupo de investigadores do MARE – Centro de Ciência do Mar e do Ambiente, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e do Oceanário de Lisboa desvenda alguns aspetos de como os tubarões-azuis se movimentam e comportam, ajudando a aprofundar ainda mais o conhecimento sobre essa espécie.
Tubarões-azuis na Arrábida
A quase 60 quilómetros da costa da Arrábida, para lá das fronteiras do Parque Marinho Professor Luiz Saldanha, os tubarões-azuis são a espécie da megafauna local mais frequentemente observada ao longo de toda a coluna de água. Nessa área, devido ao canhão Lisboa-Setúbal, um vale submarino, as profundidades podem ir dos 60 aos 2.500 metros.

Fonte: Ríos et al., 2025.
O objetivo dos investigadores era recolher informação sobre a biodiversidade pouco conhecida que existe fora do parque marinho. Para isso, a equipa colocou no mar da área de estudo três sistemas remotos de vídeo subaquático, conhecidos, na gíria científica, como BRUVS, um método não invasivo e não extrativo muito usado para estudar, através de captação de imagens e sons, ambientes e espécies marinhas no local.
Os BRUVS, suspensos a 12 metros de profundidade com a ajuda de uma boia, foram equipados com isco para atrair animais e, assim, captar episódios das suas vidas misteriosas, e invisíveis para muitos de nós.
A equipa percebeu que os tubarões-azuis, uma espécie considerada esquiva e, por isso, muito difícil de conhecer, eram muito abundantes no local, pelo que decidiram esquadrinhar os dados obtidos, entre 2019 e 2020 no âmbito do projeto INFOBIOMARES, e desenvolver um estudo sobre o comportamento desses peixes cartilagíneos pelágicos. As descobertas foram publicadas recentemente na revista ‘Marine Ecology Progress Series’, e Noelia Ríos é a primeira autora.
Em entrevista à Green Savers, por via telefónica, a investigadora do MARE-ISPA conta-nos que os resultados mostram que, na área de estudo, existem diferenças na forma como os tubarões usam o espaço, consoante a idade, o sexo e até a altura do ano. E isso pode dar pistas importantes sobre aspetos pouco conhecidos das vidas destes predadores.
“Os juvenis aparecem mais na primavera e mais perto da costa, e isso coincide com a época de reprodução”, diz Noelia Ríos, o que, aliado à grande abundância verificada de animais entre os zero e um ano de idade, leva a equipa a sugerir que a área de estudo poderá servir como um berçário para a espécie.
Quanto aos adultos, esses tendem a surgir mais pelo outono e mais afastados da costa. Contudo, os investigadores perceberam que algumas fêmeas apareciam também mais perto da costa durante a primavera, outra das razões que os leva a crer que a zona do canhão Lisboa-Setúbal a cerca de 60 quilómetro da costa da Arrábida é uma área usada pelos tubarões-azuis para se reproduzirem e terem as suas crias. Além disso, por serem animais cuja reprodução está muito associada a zonas de maior profundidade, a abundância de juvenis registada na área do canhão reforça a ideia de que se tratará, muito provavelmente, de um berçário.
Com esses dados em mãos, a equipa comparou-os com estudos de outras partes do mundo onde os tubarões-azuis ocorrem para tentarem perceber quais a características que os berçários da espécie normalmente têm e ver ser coincidiam com as encontradas no local de estudo. “E vimos que cumpria os requisitos para, potencialmente, ser identificado como um berçário”, explica-nos Noelia Ríos. “Obviamente que um só estudo não é suficiente, mas já é um bom começo”, salienta.
Ruídos dos barcos afetam comportamento
Através da análise dos vídeos captados pelos BRUVS, os cientistas perceberam que, quando uma embarcação se aproximava do local, os tubarões-azuis passavam muito menos tempo a interagir com os aparelhos de filmagem, e a frequência das interações era também muito menor. E porque seria isso relevante? Noelia Ríos responde: “são comportamentos que estão associados à alimentação”.
Com base nas observações recolhidas, a equipa considera que o ruído causado pelos barcos faz com que os tubarões-azuis passem menos tempo a procurar alimento, algo que poderá pôr em risco a sobrevivência das populações dessa espécie.
Pode, no entanto, haver o efeito inverso. Embora neste trabalho se tenha observado que o ruído afastava os tubarões das câmaras iscadas submarinas, outros estudos sobre tubarões indicam que a perturbação sonora pode também atraí-los para a fonte do ruído.
“Nesse caso, aumenta também a probabilidade de ser capturado acidentalmente”, salienta Noelia Ríos, sendo por isso um fator que agudiza as ameaçadas enfrentadas pela espécie.
A investigadora diz que um dos próximos passos será recolher dados sobre o tráfego marítimo nas águas que banham a Arrábida, para que se possa traçar uma ligação mais clara entre as atividades humanas no mar e o comportamento dos tubarões.
Tubarões-azuis precisam de mais proteção
Dado a importância que os canhões submarinos terão para a reprodução e, consequentemente, para a sobrevivência das populações de tubarões-azuis, será preciso olhar com mais atenção para esses habitats menos conhecidos e protegê-los devidamente.
“São área menos exploradas, e o que acontece é que protegemos menos aquilo que conhecemos menos”, diz-nos Noelia Ríos. “É verdade que sobre as áreas costeiras temos mais informação, são de mais fácil acesso, e, por isso, estão sempre mais protegidas do que zonas mais desconhecidas.”
Como os tubarões-azuis são frequentemente capturados acidentalmente em artes de pesca que têm outras espécies como alvo e as suas populações mediterrânicas estão em declínio devido à captura acessória, a investigadora acredita que é preciso “tomar medidas para proteger esta espécie”.

Foto: Projeto INFORBIOMARES / MARE-ISPA
Embora a pesca de palangre de superfície não seja dirigida ao tubarão-azul, acaba por resultar em muitas capturas desses animais, e os impactos continuam a fazer-se sentir. Noelia Ríos aponta que já estão a ser feitos alguns esforços para reduzir a pesca acessória de tubarões, como alterar o formato dos anzóis de modo a permitirem aos tubarões libertarem-se quando o mordem, mas será preciso reforçar essas medidas.
Por outro lado, sabendo-se onde e quando os tubarões-azuis se reproduzem, sugere a cientista do MARE-ISPA, poderiam definir-se períodos de interdição ou redução da pesca nesses locais durante esses períodos, para assegurar a continuidade da espécie.
Questionada sobre se o turismo poderá ser um problema, Noelia Ríos diz que, nas águas marinhas da Arrábida, não parece que seja, uma vez que se tende a concentrar mais perto da costa, ao passo que os tubarões-azuis ocorrem a vários quilómetros da linha costeira.
Embora em águas portuguesas a espécie esteja classificada como “Quase Ameaçada”, a investigadora salienta que, ainda assim, é preciso protegê-la, pois, em menos de nada, por causa da persistência das pressões antropogénicas, pode ver agravado o seu estatuto de ameaça.
Em julho de 2023, o Governo português de então decidiu criar um grupo de trabalho que teria como missão “elaborar o Plano de Ação Nacional para a gestão e conservação de tubarões, raias e quimeras. No entanto, desde o anúncio da criação do grupo de trabalho e há exceção de uma primeira reunião em outubro desse ano, não houve, até ao momento, quaisquer outras comunicações sobre o desenvolvimento do plano de ação, apesar do reconhecimento da sua importância.
“Muito sensíveis e muito tímidos”
Os tubarões-azuis são uma espécie migradora, e, embora possam ser encontrados durante todo o ano ao longo da sua ampla área de distribuição, os mesmos indivíduos não ficam os 365 dias na mesma área. Isto é, com o passar das estações, tubarões-azuis individuais vão circulando pelo mundo, mantendo a presença de populações da espécie nos locais onde ela ocorre, mas variando os indivíduos que as compõem.
“São animais muito sensíveis e muito tímidos, pelo que é muito difícil estudá-los no meio natural. Daí a importância do nosso estudo”, explica-nos Noelia Ríos. “Também são curiosos, como vimos nos vídeos captados pelas nossas câmaras.”
Essa espécie alimenta-se sobretudo de pequenos peixes pelágicos, como as sardinhas e os carapaus, mas são também predadores oportunistas, pelo que se, durante as suas longas viagens migratórias, encontrarem outro tipo de presas de tamanho semelhante às suas presas habituais não deixarão passar a oportunidade.
Na região do Atlântico Norte, as fêmeas preferem dar à luz nas costas portuguesa continental e galega, mas também ao largo dos Açores é possível encontrar alguns juvenis. Quando nascem, os tubarões-azuis não têm mais do que uns poucos centímetros, mas os adultos podem chegar aos dois metros e meio de comprimento.
Os tubarões gozam de uma má reputação junto de grande parte do público, em muito alimentada pela cinematografia de ficção-científica que os mostra como máquinas assassinas sedentas de sangue. “Mas a imagem que vemos nos filmes está muito longe da realidade”, garante Noelia Ríos, acrescentando que os tubarões-azuis, em particular, “não são nada agressivos”.