Vida a dois: Investigadores desvendam mistérios da relação entre rémoras e jamantas nas águas dos Açores

As rémoras são peixes com estilos de vida peculiares. Não formando cardumes nem sendo propensos a viagens longas só com a força dos seus corpos, estes animais, da família dos Equeneídeos, usam estruturas especiais na parte superior das suas cabeças para se fixarem a outros peixes e mamíferos marinhos, como se fossem ventosas.
A rémora costuma ser surpreendida pelas câmaras subaquáticas de cientistas e entusiastas do mundo natural a viajar “à boleia” de baleias, tubarões, raias e tartarugas, a ondularem ao sabor da corrente como se fossem bandeiras hasteadas. Acredita-se que as rémoras se tenham adaptado a essa existência dependente de outros para poderem mais facilmente, e sem gastarem muita energia, fazer grandes travessias oceânicas, aceder a fontes de alimento mais vastas e abundantes e até beneficiar a proteção contra predadores, ainda que não intencional, que os hospedeiros lhes conferem.
Atualmente, são conhecidas oito espécies, pertencentes a três género distintos: Echeneis, Phtheirichthys e Remora. Nesse último grupo encontra-se a rémora-comum, de nome científico Remora remora, que habita águas tropicais e subtropicais dos oceanos Pacífico, Índico e Atlântico. E marca também presença nas águas açorianas, onde um grupo de investigadores desvendou detalhes singulares sobre a relação entre as rémoras e um visitante sazonal: as jamantas (Mobula tarapacana), uma espécie “Em Perigo”, de acordo com a Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza, tendo como principal ameaça a captura, intencional ou acessória.
Coordenada pelo OKEANOS – Instituto de Ciências Marinhas da Universidade dos Açores, em colaboração com o Instituto do Mar (IMAR) e o Centro para Engenharia e Desenvolvimento de Produto (CEiiA), a investigação tinha como um dos objetivos principais perceber de que forma as rémoras influenciam o movimento das jamantas. Ou seja, se as rémoras que têm fixadas nos seus corpos aumentam, de alguma forma, a resistência da água à passagem da jamanta, um efeito conhecido na gíria hidrodinâmica como “drag”.
Mas a equipa queria também verificar se as rémoras permanecem com os hospedeiros mesmo quando eles mergulham a grandes profundidades. Por vezes, as jamantas podem chegar quase aos dois mil metros abaixo da superfície, onde as temperaturas caem abaixo dos cincos graus Celsius e a pressão torna-se cada vez maior.
Através de mergulhos nas águas ao largo das ilhas do Faial e de Santa Maria, e usando também câmaras colocadas em quase 60 jamantas, os cientistas levantaram o véu de uma das relações mais icónicas dos mundos marinhos: a da rémora e do seu hospedeiro.
“As rémoras conhecem as forças hidrodinâmicas que atuam sobre o corpo da jamanta”
As jamantas M. tarapacana são uma das maiores espécies da família Mobulidae, podendo medir até 3,7 metros da ponta de uma das suas barbatanas peitorais à outra. São migradoras, percorrendo livremente os oceanos do mundo, mas todos os anos, entre junho e setembro, chegam aos Açores em grupos que atingem as várias dezenas de indivíduos. Embora ainda não se saiba ao certo o que as atrai a essa região, sabe-se não chegam sozinhas. Consigo, trazem as rémoras.
Um grupo de jamantas nada placidamente em águas bem iluminadas ao largo das ilhas açorianas. São visíveis várias rémoras a acompanharem as jamantas. Vídeo: Bruno Macena/OKEANOS-UAc
As agregações de jamantas nas águas açorianas são consideradas eventos únicos, pois, como nos explica Bruno Macena, investigador do OKEANOS e um dos autores do artigo, publicado este ano, que dá conta destas descobertas, “não se conhecem muitas áreas de agregação no mundo onde se possa observá-las tão facilmente”.
Com uma metodologia que, na prática, permite quase ver através dos olhos das jamantas, a investigação mostra que as rémoras, ao contrário do que se pensava, não abandonas as jamantas mesmos quando essas últimas se lançam em mergulhos profundos. Marcas de sucção na pele das jamantas e vídeos captados em mar comprovam que as rémoras são “fiéis” ao hospedeiro.
“Apesar de muitos trabalhos de investigação sugerirem que os animais mergulham profundamente para se livrar desses parasitas, não é o que acontece”, conta-nos Bruno Macena, em chamada telefónica. “As rémoras permanecem fixadas nos hospedeiros, até em profundidades muito grandes e ambientes extremos, com temperaturas de três ou quatro graus e pressões de 150 bares”, detalha, pelo que as considera “animais incríveis”.
As imagens recolhidas e as observações feitas durante os mergulhos dos cientistas registaram também os locais onde as rémoras mais frequentemente se fixam. Acima da cabeça jamanta parece ser um dos “spots” preferidos pelas rémoras, pois é uma área onde a força da água, gerada pelo movimento do hospedeiro, permite ao passageiro manter-se fixado sem correr o risco de ser deslocado.

Foto: Bruno Macena/OKEANOS-UAc
Contudo, as rémoras também se desprendem de vez em quando, para nadarem um pouco e para se alimentarem de pequenos peixes que vão passando. Quando o fazem, o local de eleição parece ser atrás da barbatana peitoral da jamanta, perto da barriga, “porque é o melhor local, em termos hidrodinâmicos”, refere o investigador.
“O fluxo da água gira em torno do corpo da jamanta, pelo que esse lugar tem uma turbulência que empurra as rémoras para a frente, e não precisam de gastar tanta energia a nadar”, acrescenta.
Ainda, esta equipa percebeu que cada jamanta costuma transportar, em média, uma ou duas rémoras no seu corpo.
Atestando a singularidades dessa espécie marinha pouco carismática, Bruno Macena diz-nos que “o que é mais interessante é que as rémoras conhecem as forças hidrodinâmicas que atuam sobre o corpo da jamanta, aproveitando, assim, os melhores locais para se fixarem e gastarem menos energia”.
Uma relação de ganho mútuo ou mais um parasita?
A relação entre as rémoras e as jamantas, ou outros hospedeiros como os tubarões-baleias, é geralmente vista como benéfica tanto para um como para o outro.
As rémoras aproveitam a boleia para fazerem grandes viagens sem terem de se cansar muito, obtendo alimento mais abundante e diversificado do que se ficassem num só local. Os hospedeiros, por seu lado, gozam de um serviço de limpeza “a bordo”, pois as rémoras comem também parasitas que se vão alojando, com o tempo, no corpo dos animais que as transportam.
É possível que as rémoras retirem também vantagens ao nível da reprodução. Se os seus hospedeiros se juntarem em grandes números em locais específicos, e se cada um deles tiver uma rémora, a probabilidade de esse peixe encontrar um parceiro é bastante maior do que se tivesse de percorrer os oceanos em busca dele.
Contudo, os ganhos para o hospedeiro nem sempre são claros. Bruno Macena conta que, por exemplo, há registos de jamantas com duas rémoras na cabeça e que balançam a cabeça de cima para baixo para tentarem expulsar os passageiros incómodos. Ainda assim, são casos pontuais e muitos específicos, pelo que não se pode afirmar com certeza que as rémoras sejam sentidas como um incómodo para todos os hospedeiros.
Além disso, os investigadores perceberam que, quanto mais rémoras tiver fixadas no seu corpo, mais energia terá a jamanta de gastar para conseguir nadar. Estima-se que cada rémora adulta aumenta em 4% a resistência da água à passagem da jamanta. “Geralmente elas têm uma rémora de cada lado da cabeça, por isso é quatro mais quatro. Se tem mais uma em baixo, são 12%”, aponta Bruno Macena.
Então, a jamanta, na verdade, ganha alguma coisa com esta relação? “Isso é muito questionável”, confessa o investigador do OKEANOS.
“Pensa-se que as rémoras jovens alimentam-se de parasitas das jamantas. Por isso, pode ser que no início da vida das rémoras a relação seja de mutualismo”, em que ambas saem a ganhar, explica, “mas, dependendo de quantas rémoras a jamanta tem e do tamanho delas, pode já não ser assim tão mutualística, e as rémoras começam a ser já parasitas hidrodinâmicos”.
Revelando aspetos até agora desconhecidos, ou pouco compreendidos, da vida destes dois animais, os investigadores querem, com este trabalho, mostrar sobretudo que ainda há muito por descobrir nos mundos marinhos, especificamente os que se escondem nas águas açorianas. E isso é algo que se reveste de especial importância numa altura em que a região autónoma está a criar a maior área marinha protegida do Atlântico Norte, querendo, dessa forma, destacar-se como referência a nível mundial para a conservação dos oceanos e da biodiversidade que neles habita.