Numa paisagem de cinzas, o que terá acontecido aos lobos?

O ano de 2025 ficou já marcado por ter sido o que teve a maior área ardida da última década em Portugal. Entre 1 de janeiro e 31 de agosto, 254.296 hectares foram atingidos pelas chamas, um aumento considerável face a 2017, o ano do tragicamente memorável incêndio de Pedrógão Grande e no qual arderam 236.485 hectares.
Apesar de o número de incêndios rurais ter sido o quinto mais baixo desde 2015, as ocorrências foram mais devastadoras e consumiram, no seu conjunto, mais floresta, mais matos e mais áreas agrícolas do que anos anteriores com mais fogos registados. Pondo as coisas em perspetiva, até 31 de agosto, registaram-se menos 23% de incêndios rurais face à média dos últimos 10 anos, mas mais 259% de área ardida.
Até dia 9 de setembro, a área ardida em espaços rurais, de acordo com o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), era de 258.031 hectares.
De acordo com o 5.º Relatório Provisório de Incêndios Rurais de 2025, emitido pela Direção Nacional de Gestão do Programa de Fogos Rurais e publicado pelo ICNF, a maioria dos incêndios registados nesse período, cerca de 83%, consumiu áreas inferiores a um hectare. Os fogos entre um e 10 hectares foram a segunda maior categoria em número de ocorrências. Quanto aos grandes incêndios, aqueles com mais de 100 hectares de área ardida, registaram-se 83.
Os fogos de maiores dimensões aconteceram entre julho e agosto, sobretudo nos distritos de Viseu, Guarda, Bragança e Vila Real, mas também em Aveiro, Coimbra, Viana do Castelo, Porto e Castelo Branco. As maiores áreas ardidas foram nos concelhos de Arganil (Coimbra), com 65.417 hectares, Trancoso (Guarda) com 46.325 hectares e Sátão (Viseu) com 13.769. A fechar a lista dos cinco maiores incêndios nesse período estão Sabugal (Guarda) e Freixo de Espada à Cinta (Bragança).
Os 20 concelhos mais afetados pelos incêndios entre 1 de janeiro e 31 de agosto representaram 71% do total de área ardida no país, embora apenas 7% do total de ocorrências a nível nacional. Os 10 concelhos com as maiores extensões de área ardida foram Covilhã, Sabugal, Trancoso, Sernancelhe, Mêda, Arganil, Penedono, Fundão, Seia e Aguiar da Beira.
As chamas não consumiram apenas explorações de valor económico nem propriedade humana. Reduziram a cinzas habitats inteiros, devastaram ecossistemas, acabaram com um ainda desconhecido número de vidas de animais não-humanos.
Os impactos estão ainda a ser aferidos, mas tudo indica que os lobos-ibéricos (Canis lupus signatus), uma subespécie “Em Perigo” em Portugal, tenha sido consideravelmente afetada, podendo tornar a sua conservação uma demanda ainda mais hercúlea.
Mapas de devastação
Os incêndios deste verão assolaram predominantemente as regiões Norte e Centro de Portugal, os derradeiros baluartes do último grande carnívoro da fauna portuguesa: o lobo-ibérico. Apesar de serem animais conhecidos pela sua insubmissão perante a adversidade e pela sua extraordinária capacidade de adaptação, a subespécie ibérica continua numa situação de grande fragilidade no país.
O mais recente censo populacional, publicado em dezembro passado e referente ao período 2019-2021, registou uma redução do número de alcateias face ao levantamento anterior de 2002/2003: de 63 alcateias detetadas, passou-se para 58.
O núcleo da Peneda/Gerês foi, dos quatro, o único que registou um aumento do número de alcateias detetadas: 24 confirmadas face às 16 do censo anterior. No núcleo de Alvão/Padrela, o número de alcateias caiu mais de metade, das 13 para as seis. No de Bragança a queda foi menor, das 25 para as 22, e a sul do Rio Douro registou-se uma redução de cerca de um terço, das nove alcateias detetadas para as seis.
Comparando os mapas dos incêndios rurais que ocorreram este ano com os que mostram as localizações das alcateias de lobos-ibéricos é fácil perceber que há sobreposições. Ou seja, os fogos que deflagraram este verão atingiram áreas onde foi detetada a presença de lobos, pelo que é quase certo que várias alcateias tenham sido afetadas, embora a dimensão desses impactos esteja ainda por revelar.
O ICNF avança à Green Savers que “nos incêndios registados entre 1 de janeiro e 20 de agosto de 2025, estima-se que cerca de 7% da área de presença do lobo-ibérico em Portugal tenha sido afetada pelo fogo, com maior expressão a sul do rio Douro”. E acrescenta o organismo que “na área de presença regular da espécie, a afetação foi de aproximadamente 3% a norte e 19% a sul do Douro”.
Francisco Álvares, investigador do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (CIBIO) da Universidade do Porto e que estuda lobos há quase 30 anos, conta-nos, por seu lado, que os incêndios deste verão afetaram “ uma grande parte (+ 60%) do território atribuído a várias alcateias”, incluindo locais de reprodução. Significa isso que algumas alcateias tiveram mais de metade dos seus territórios queimados pelo fogo.
Diz o ecólogo especializado em mamíferos carnívoros que a alcateia da Amarela, na região da Peneda/Gerês, e alcateias nos núcleos populacionais do Alvão e a do sul do Douro terão muito provavelmente sido afetadas pelas chamas que deflagraram nos seus territórios. O mesmo é-nos comunicado pelo ICNF, que aponta que “as alcateias com maior incidência de área ardida foram as de Trancoso e Lapa (sul do Douro), a do Vaqueiro (Alvão/Padrela) e a da Amarela (Peneda/Gerês)”.
“No caso da alcateia da Amarela, temos conhecimento que o local onde se encontravam as crias ardeu completamente em agosto”, avança Francisco Álvares, sendo que, depois do incêndio, “já foram observados vários lobos adultos, mas sem deteção de crias”, embora, frise, elas possam ter sobrevivido.
A alcateia da Amarela ocupa a serra com o mesmo nome no concelho de Ponte da Barca, no distrito de Viana do Castelo, mesmo na fronteira com Espanha, pelo que parte da sua área vital, a zona que usa ativamente para alimentação e reprodução, está na Galiza, mais especificamente na serra de Santa Eufémia. Esse grupo lupino vive, segundo o último censo, perto da localidade de Lindoso, onde, a 26 de julho, deflagrou um incêndio que consumiu mais de sete mil hectares.
Até ao momento da publicação deste artigo, “não existe registo de baixas na população de lobos em resultado direto dos incêndios”, assegura-nos o ICNF, com base no Sistema de Monitorização de Lobos Mortos.
As fêmeas de lobo dão à luz entre maio e junho, pelo que as crias, com cerca de dois meses quando os grandes fogos chegaram aos seus territórios, possivelmente terão sido capazes de escapar pelas próprias patas, acompanhando os progenitores. No entanto, tudo é ainda uma incerteza e as hipóteses de sobrevivência dos lobos dependem de vários fatores, como a intensidade dos incêndios, as características dos habitats, as capacidades de reação e fuga dos próprios animais, o que os jovens lobos já conhecem do ambiente à sua volta.
Outras alcateias podem também ter sido afetadas. Francisco Petrucci-Fonseca, presidente do Grupo Lobo e estudioso de longa data dos lobos, diz-nos que é provável que algumas alcateias no distrito de Vila Real, no núcleo Alvão/Padrela, tenham de alguma forma sido atingidas pelos efeitos dos incêndios.
A alcateia de Vaqueiro está dada como provável no censo de 2019-2021. Pensa-se ocupar a vertente sul da serra do Alvão, do rio Olo ao vale da Campeã, na transição para a serra do Marão. Estará localizada no concelho de Vila Real, pertencente ao distrito com o mesmo nome, com uma área importante na freguesia da Pena.
Foi nessa localidade que no dia 2 de agosto deflagrou um incêndio que acabou por consumir quase seis mil hectares, maioritariamente matos e floresta.
Dada a relativa proximidade, é possível que também as alcateias da Sombra e do Alvão tenham sentido os impactos do fogo.
No núcleo de Bragança, o incêndio que começou na freguesia de Rebordelo, no concelho de Vinhais, a 28 de agosto, e que resultou numa área ardida de cerca de 3.600 hectares, poderá ter afetado as alcateias mais próximas, como a de Tuela-Cibrão.
Ainda nesse grupo populacional, a alcateia de Mogadouro Sul, situada na zona meridional do concelho de Mogadouro e a norte de Lagoaça, pode ter sido impactada pelo incêndio que chegou à aldeia de Estevais, anexa à freguesia de Castelo Branco. No dia 18 de agosto, quando as chamas lá chegaram, a presidente da Junta de Freguesia de Castelo Branco, Silvina Pereira, dissera que teve de evacuar os residentes, uma vez que as chamas haviam cercado Estevais.
Esse incêndio começara em Freixo de Espada à Cinta e alastrara para norte, chegando ao território ocupado pela alcateia de Mogadouro Sul.
A sul do Rio Douro está a subpopulação nacional de lobos-ibéricos mais vulnerável do país, especialmente por causa do isolamento face às alcateias do lado espanhol, das alterações ao habitat e do “elevado nível de mortalidade por causas humanas”, como se lê no mais recente censo. Todos esses fatores contribuem para dificultar a expansão dos lobos nessa região. E os incêndios são também uma das condicionantes.
No concelho de Trancoso, distrito da Guarda, o fogo de Moreira de Rei, com início a 14 de agosto e que queimou perto de 8.700 hectares de floresta, mato e zonas agrícolas, deflagrou muito perto da zona onde se pensa estar localizada a alcateia de Trancoso. As chamas que chegaram às localidades de Terrenho poderão também ter tido impactos nessa mesma alcateia, bem como os fogos nos concelhos de Sernancelhe, de Mêda e de Penedono.
O grupo lupino da Lapa, que vive na serra com o mesmo nome e na zona montanhosa em redor do concelho de Aguiar da Beira, também no distrito da Guarda, onde o fogo consumiu seis mil hectares, pode ter sido afetado.
O futuro das alcateias da região a sul do Rio Douro pode ser ainda mais incerto do que era antes dos incêndios deste ano, e talvez o mesmo seja verdade para o núcleo de Alvão/Padrela. Embora também se possam aí registar impactos, nos grupos de Bragança e Peneda/Gerês, dado que neles concentram a maior parte das alcateias em Portugal e os maiores números de lobos-ibéricos a nível nacional, a sua recuperação poderá ser, pelo menos em teoria, mais fácil ou, para pôr as coisas no tom certo, menos difícil.
Abaixo do Douro, diz-nos Petrucci-Fonseca, os grandes incêndios que se registaram este verão “tornam mais difícil a recuperação do lobo”, porque era já uma subpopulação mais frágil do que os demais núcleos no norte de Portugal.
O docente aposentado da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa refere a alcateia de Leomil, que reside entre os concelhos de Vila Nova de Paiva e de Moimenta da Beira, esse último atingido por fogo que queimou quase quatro mil hectares, dizendo que o grupo “tem sido resistente ao longo dos anos, mas vamos ver o que lhe aconteceu”. Essa alcateia foi detetada pela primeira vez nos anos 1990 e desde então tem sido uma das mais monitorizadas a sul do Douro.

Não se sabe, para já, o que terá acontecido às alcateias de Leomil, da Lapa e de Trancoso, mas os impactos podem ter sido consideráveis. Olhando para o mapa das áreas ardidas nessa região, Petrucci-Fonseca confessa que “é uma desgraça”.
Assim, as famílias de lobos-ibéricos a sul do Douro muito provavelmente foram as que sofreram os maiores impactos dos incêndios que lá deflagraram. “Temo que seja mais difícil a recuperação”, diz-nos o presidente do Grupo Lobo, ficando esse núcleo ainda mais vulnerável do que já estava.
Isto, porque a norte do Douro as populações de espécies-presa, como veados, corços e javalis, são relativamente mais numerosas do que a sul, pelo que poderão eventualmente recolonizar as áreas queimadas mais facilmente (dependendo da regeneração do solo e da vegetação). Por isso, é expectável, embora não certo, uma recuperação mais célere no norte, algo que dificilmente acontecerá no núcleo populacional mais meridional.
Num artigo publicado em 2019 na revista ‘Landscape and Urban Planning’, investigadores da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto e do CIBIO, incluindo Francisco Álvares, confirmavam já que a maioria dos incêndios e da área ardida em Portugal regista-se no Norte e Centro, “criando uma sobreposição com a atual área de distribuição do lobo e sendo um fator de perturbação do habitat deste grande predador”.
Lembrando que se prevê um aumento do risco de incêndio e da área ardida no país até ao final do século, os cientistas afirmam que, juntando a isso o aumento da expansão de infraestruturas humanas dentro dos territórios de lobo, poderá assistir-se a “uma redução da disponibilidade de habitats adequados para os lobos encontrarem alimento, refúgio e condições para a reprodução”.
Num país mais quente, mais seco e, assim, ainda mais propenso ao fogo, o futuro dos lobos torna-se mais preocupante, especialmente a sul do Rio Douro, mas os núcleos mais setentrionais não estão imunes a esses efeitos nefastos dos tempos que atravessamos.
O rescaldo
Os especialistas são unânimes no que consideram ser o principal impacto dos incêndios nas alcateias: a perda de condições para as suas presas.
Petrucci-Fonseca diz-nos que incêndios de grandes dimensões como os que se registaram “vão afetar as presas do lobo”, como os corços, os veados e os javalis, sendo que a recuperação dessas espécies, e consequentemente das alcateias que delas se alimentam, depende sobretudo da densidade das populações de presas antes dos fogos, do nível de mortalidade que deles resultou e também da capacidade que o solo tem para voltar a suportar vegetação suficiente para alimentar esses ungulados maioritariamente herbívoros (recorde-se que o javali é omnívoro).
Olhando para o panorama nacional, Francisco Álvares considera que os grandes incêndios em Portugal são “uma forte ameaça ao fomento das florestas nativas e das condições adequadas de refúgio” às presas do lobo, condições essas que descreve como “cruciais para um aumento dos ungulados silvestres”, que são “mais exigentes do que o lobo, em termos de habitat”.

O investigador do CIBIO diz-nos também que a destruição de zonas de refúgio para os próprios lobos, especialmente de locais de reprodução em uso, faz com que esses canídeos selvagens fiquem ainda mais expostos “à perseguição ilegal por parte dos humanos”.
“Esta ameaça poderá ser mais preocupante na área de alcateias instáveis, que apresentam um reduzido tamanho de grupo e sucesso reprodutor, como se verifica por exemplo na região do Alvão e a sul do Rio Douro”, afirma Francisco Álvares, pelo que “os extensos incêndios ocorridos este verão nestas duas regiões terão seguramente contribuído para fragilizar ainda mais as alcateias locais”.
No entanto, o ecólogo avança ainda que há um outro fator de ameaça relacionado com os fogos, desta feita indireto, que afeta os lobos. “Os trabalhos de gestão de combustíveis para redução do risco de incêndios”, como a limpeza de matos e a abertura de caminhos, “são muitas vezes realizados no interior de locais de reprodução ativos, onde se encontram as crias de lobo, levando a uma elevada perturbação humana e destruição do habitat, durante o período mais sensível da reprodução das alcateias”, alerta.
Por isso, defende “uma maior e melhor articulação entre as entidades competentes”, para que os trabalhos de gestão florestal e de redução do risco de incêndio não aconteçam dentro ou demasiado perto dos locais de reprodução que estejam a ser usados pelos lobos, especialmente durante o período de nascimento e quando as crias ainda dependem dos progenitores, ou seja, de maio a setembro.
“Também é crucial apostar no fomento e restauro das florestas nativas, como carvalhais e bosques ripícolas, uma vez que são mais resilientes aos incêndios e apresentam condições mais adequadas para refúgio do lobo e das suas presas naturais”, salienta Francisco Álvares. O cientista reconhece que, de uma forma geral, isso está já patente no Plano de Ação para a Conservação do Lobo-ibérico em Portugal (PACLobo), em vigor, e também na proposta para a nova estratégia, o Programa Alcateia 2025-2035, atualmente em consulta pública, mas diz que, ainda assim, “torna-se urgente assegurar a sua execução efetiva e eficiente no terreno”.
Os lobos e o fogo
Diz-nos a Ciência, e não poucas vezes, que os incêndios tornar-se-ão mais frequentes e possivelmente mais intensos à medida que as dinâmicas climáticas e ecológicas da Terra vão sendo cada vez mais alteradas. E as chamas poderão mesmo vir a ser uma das maiores forças de transformação dos habitats e dos ecossistemas.
Os lobos são considerados animais incrivelmente adaptáveis e resistentes. Em regiões e territórios propensos ao fogo, como é o caso da Península Ibérica, esses grandes carnívoros conseguiram adaptar-se a condições que seriam o fim de outras espécies, fruto de uma longa evolução em cenários altamente desafiantes. Já este mês, o fotógrafo do mundo natural Carlos Pontes, natural de Ponte da Barca e que tem dedicado grande parte da sua vida a documentar os lobos no Parque Nacional da Peneda-Gerês, publicou no seu Instagram ainda este mês de setembro uma fotografia de um lobo a atravessar uma paisagem negra queimada pelas chamas nessa área protegida no norte do país.
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Em jeito de homenagem à indomabilidade do lobo que protagoniza a imagem, e de todos os outros lobos-ibéricos, Carlos Pontes escreve:
Sob um manto de cinzas, ergue-se um cenário devastado e devastador. Nitidamente contrastado com a paisagem, um lobo ibérico avança, com passos lentos e firmes, como se cada pegada fosse um ato de resistência. O caminho que percorre é memória. Foi ali que nasceu, onde a sua linhagem encontrou abrigo e força para perpetuar o ciclo da biodiversidade. Agora, entre vestígios de um mundo em declínio, caminha como herdeiro e guardião de um legado indomável. Como símbolo da persistência selvagem, que resiste onde tudo parece ter acabado.
No mesmo artigo de 2019, os investigadores diziam que o estudo que realizaram sugere que o fogo não afeta as tendências de distribuição dos lobos nem a seleção de locais de reprodução. E apontavam mesmo que os resultados mostram “uma resiliência notável das populações de lobos a eventos de fogo”, algo que tem implicações para as estratégias e esforços que visam a sua conservação.
“Na verdade, o fogo motivado pelas atividades humanas, como a agricultura e a pastorícia, tem alterado a cobertura vegetal na Península Ibérica há milénios, tornando-se um fator frequente de perturbação ao qual os lobos estão expostos há muito tempo”, escreviam os investigadores.
Contudo, são animais como todos os outros e até mesmo eles têm os seus limites. A conjugação de incêndios mais intensos e de outros fatores de pressão, como a perseguição pelos humanos e a conversão dos seus habitats em zonas agrícolas ou noutros tipos de exploração comercial, pode ter “um efeito negativo na viabilidade a longo-prazo das populações de lobos, apesar da resiliência até agora demonstrada”, avisam.
“De facto, embora os lobos tenham persistido sob um forte regime de fogo nos últimos anos, a esperada tendência de aumento tanto da área ardida como do desenvolvimento humano pode reduzir drasticamente, no futuro, a disponibilidade de áreas adequadas para o refúgio e reprodução do lobo”, referiam os autores do artigo, uma preocupação especialmente relevante, sustentavam, para “a pequena e ameaçada população de lobo a sul do Rio Douro, uma das poucas na Europa considerada à beira da extinção”.
Cientistas e conservacionistas estão agora a tentar perceber de que forma os incêndios deste verão afetaram as alcateias que residem em Portugal. É possível que na próxima época de reprodução dos lobos, entre maio e setembro, se consiga já ter pelo menos uma ideia, ainda que preliminar, de como as vidas desses animais, representantes do único grande carnívoro sobrevivente em terras lusas, foram transformadas. E, sobretudo, perceber se e como conseguirão recuperar.
Os lobos-ibéricos pertencem a uma subespécie sobre a qual a sombra da extinção paira há décadas. Desde 1990 que está classificada, em Portugal, com o estatuto de ameaça “Em Perigo”. Até finais do século XIX, viviam praticamente em todo o território continental português, mas atualmente a sua área de distribuição é apenas um quinto daquilo que, em tempos não muito distantes, fora.
A mortalidade causada pelos humanos, especialmente devido à predação de animais domésticos e gado, a perda de presas e a degradação do seu habitat para dar lugar a espaços humanos são frentes de pressão que continuam a avançar sobre os lares ancestrais dos lobos. Os incêndios mais frequentes e mais intensos são mais uma farpa no flanco desses canídeos indomáveis.
Até dia 18 de setembro, está em consulta pública uma nova estratégia de conservação do lobo-ibérico em Portugal, o Programa Alcateia 2025-2030, que vem atualizar o PAC Lobo de 2017. Contendo algumas referências aos incêndios como ameaças à conservação da subespécie, objetivo é que, no espaço de 10 anos, o lobo-ibérico alcance um estado de conservação favorável, ou seja, que fiquei, por fim, fora de perigo, e que a tendência de declínio populacional seja revertida.
Esse esforço passará pela promoção de condições ecológicas mais favoráveis à conservação dos lobos e pela melhoria da coexistência com as atividades humanas, especialmente a pecuária, com o pagamento atempado e em valores justos das indemnizações por prejuízos causados por ataques a gado. O reforço da monitorização e do conhecimento sobre as alcateias portuguesas e uma maior sensibilização com vista à valorização da conservação do lobo são também objetivos estratégicos do programa avançado pelo Governo.
A esperança, como se diz, é a última a morrer. Mas o que é certo é que o futuro dos lobos em Portugal, tal como o de tantos outros animais ao longo de múltiplos táxons da fauna portuguesa, é, paradoxalmente, incerto e difícil de discernir por entre as nuvens de fumo e de cinzas. A única certeza que existe é que é preciso fazer mais e fazer melhor para que os lobos possam seguir o caminho do lince-ibérico (Lynx pardinus), que no ano passado deixou de estar “Em Perigo” e passou para o estatuto de “Vulnerável”, e não o do urso-pardo (Ursus arctos), classificado, pelo menos por agora, como “Regionalmente Extinto” em Portugal há quase 200 anos.
(Notícia atualizada com contributos do ICNF)