25 Abril: Sonho da Reforma Agrária em vila alentejana resistiu até 2023



O “entra e sai” de outrora, com tratores carregados de aveia para o celeiro, contrasta agora com o “marasmo” nas antigas instalações de uma das últimas Unidades Coletivas de Produção (UCP) a fechar portas no Alentejo.

“Os tratores traziam a aveia no reboque, lembro-me de haver muita aveia, entravam, porque o portão é grande, e, com um sem-fim, descarregavam lá para dentro”, recorda à agência Lusa Augusta Ferreira, antiga dirigente da UCP Boa Esperança.

A aveia “era ajeitada e ficava ali, a granel, em montes” no celeiro e, depois, “ia sendo vendida, ao longo do ano, e, na altura das sementeiras, as pessoas compravam para voltar a semear”, prossegue.

No final de 1975, em pleno período da Reforma Agrária e na “ressaca” da revolução do 25 de Abril, nascia a UCP Boa Esperança após a ocupação de várias herdades na zona da vila de Lavre, no concelho de Montemor-o-Novo, distrito de Évora.

Augusta Ferreira era criança e não se recorda do período em que ocorreram as ocupações, mas ainda guarda na memória quando entrou na UCP, num dia de novembro de 1976, então com 14 anos, para trabalhar no campo.

“Trabalhei durante oito anos no campo e, depois, vim para o escritório, em 1984”, relata, recordando que foi escolhida, num plenário de trabalhadores, para ocupar um lugar em aberto na contabilidade da UCP.

E por lá ficou, primeiro, como funcionária e cooperante e, mais tarde, como presidente da mesa da assembleia, num total de 47 anos, até novembro de 2023, quando foi concluído o processo de liquidação.

“Ultimamente, era o gado, as ovelhas, e semeava-se alguma pastagem para elas. Searas já não se faziam, porque já não tínhamos terras para fazer essas culturas”, refere Augusta Ferreira.

A liquidação durou cerca sete anos, de 2016 até novembro de 2023, período no qual foram vendidas as restantes propriedades, a sede, máquinas agrícolas e um rebanho de 700 ovelhas.

Mas nem sempre foi assim. No auge, em finais dos anos 70 do século passado, como atesta à Lusa Paulo Alves, também antigo cooperante e funcionário, a Boa Esperança chegou a ter “300 e tal” trabalhadores e entre cinco mil a seis mil hectares de terra.

“Havia muito trabalho e produzia-se muito”, nomeadamente todo tipo de cereais, como aveia ou trigo, mas também grão, arroz, tomate, tabaco e pastagens, além da parte do gado, com porcos, vacas e ovelhas, lembra.

Nesse período, replica Augusta, a UCP chegou a ter um talho nas suas instalações, em Lavre.

Assinalando que, tal como Augusta, também entrou aos 14 anos, mas mais tarde, em 1984, Paulo Alves diz que, nessa altura, “a cooperativa já não estava no auge”, depois da saída de muitos trabalhadores e da devolução de algumas terras aos proprietários.

“Toda aquela ideia de reforma agrária foi-se perdendo um bocado, porque começou a passar a época da revolução”, e a devolução da maioria das terras e o fim dos arrendamentos que tinham sido feitos precipitou o fim da UCP, justifica Augusta.

O escritório nas antigas instalações parece ter parado no tempo, com secretárias cheias de papelada e estantes com dossiês com mapas de pessoal ou balancetes. Num quadro de cortiça, ainda está afixada a convocatória para uma assembleia geral de 2012.

Estes documentos e outro espólio deverão passar para o Arquivo Municipal de Montemor-o-Novo, que abarca o Centro de Documentação e Arquivo da Reforma Agrária, para serem organizados e disponibilizados ao público.

É com alguma nostalgia que Augusta e Paulo falam dos avanços laborais que a UCP impulsionou, dando como exemplos a atribuição de férias e de descontos para a Segurança Social ou a simples emissão do recibo de vencimento.

Além disso, “a UCP estava sempre aberta aos sócios e aos que não eram sócios”, frisa Paulo, ao que Augusta remata que, se alguém precisasse de um trator ou de uma motosserra ou até para a realização de festas, “a cooperativa ajudava sempre”.

As instalações da UCP Boa Esperança, situadas numa rua central de Lavre, foram adquiridas pela Câmara de Montemor-o-Novo, que pretende ali instalar um fórum cultural com o nome do escritor José Saramago.

“É o espaço ideal para perpetuar a memória da relação do povo de Lavre com o escritor”, realça o vice-presidente do município, Henrique Lopes, lembrando que foi ali que José Saramago viveu um período e se inspirou para a obra “Levantado do Chão”.

Numa fase ainda muito embrionária, o projeto prevê a requalificação do imóvel para criação de um auditório multiusos, um espaço expositivo e uma biblioteca, com livros doados pelo próprio José Saramago, entre outras valências.





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