Lince-ibérico: A espécie de felídeo mais ameaçada do mundo
O lince-ibérico (Lynx pardinus), felino esquivo e endémico da Península Ibérica, facilmente distinguível pela sua cauda curta, tufos de pelo na ponta das orelhas e uma ‘barba’ que lhe contorna a face, é considerado a espécie de felídeo mais ameaçada do mundo.
Desde 2002, integrava a Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN) na classificação ‘criticamente em perigo’, a nível global, tendo em 2015 passado para a categoria de ‘em perigo’ devido aos esforços de conservação ibéricos. No entanto, em Portugal continua criticamente em perigo de extinção, estimando-se que, no decurso da década de 90, a dimensão da população tenha sofrido uma quebra de 80%, especialmente por causa da destruição e fragmentação do seu habitat natural, um problema que os projetos europeus Iberlince (já concluído) e Lynxconnect (a decorrer), do programa LIFE, querem solucionar e, ao mesmo tempo, “reforçar a conectividade entre as subpopulações de Portugal e Espanha”.
Num estudo científico, publicado em 2020 na revista ‘Sustainability’, um grupo de investigadores de Espanha escrevia que “a fragmentação dos habitats e das populações surge como um dos principiais fatores responsáveis pela grave e rápida perda de biodiversidade”, pois o aumento desse fracionamento (para possibilitar atividades do foro agrícola, silvícola ou de desenvolvimento urbanístico) “resulta numa perda de conectividade na paisagem”, que os projetos de conservação da diversidade biológica pretendem mitigar e, até mesmo, reverter.
Nesse mesmo artigo, os cientistas dizem que o lince-ibérico é “um exemplo de uma espécie gravemente ameaçada pela fragmentação e perda de habitat”, um dos devastadores reflexos da “homogeneização da paisagem no sudoeste ibérico”, fenómeno fortemente impulsionado pela “intensificação agrícola do século XX”.
Além da fragmentação do seu habitat, em Portugal, a caça e a escassez da sua presa de eleição, o coelho-bravo (Oryctolagus cuniculus), “foram as principais causas do declínio desta população, levando a espécie ao próprio limiar da extinção”, aponta o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF). E estima-se que, ao longo da década de 1950 e até 2004, o declínio das populações de linces-ibéricos no país tenha sido constante.
Os primeiros tempos da proteção em Portugal
Há registos históricos do início do século XX que indicam que, outrora, esse felídeo terá estado presente em diversas regiões de Portugal, como na Serra da Estrela, na Serra da Malcata, em Alcácer do Sal, em Évora, em Barrancos e em Odemira.
Foi nessa altura, mais precisamente em 1979, que a Liga para a Protecção da Natureza (LPN), juntamente com o então Instituto para a Conservação da Natureza, antecessor do atual ICNF, lançou a campanha ‘Salvemos o Lince e a Serra da Malcata’, que conseguiu reunir mais de 46.500 assinaturas e que, dois anos depois, resultou na criação da Reserva Natural Parcial da Serra da Malcata. Era nessa área, segundo a organização, que se localizava “o núcleo mais notável de lince-ibérico” no território nacional.
“A Serra da Malcata seria uma das últimas parcelas do território português onde existiam esporadicamente linces”, conta João Alves, do Departamento de Conservação da Natureza e Biodiversidade do ICNF, que trabalha com os linces-ibéricos desde 2013, explicando que a Reserva Natural foi criada, precisamente, com o intuito de “conseguir melhores condições” para a preservação da espécie.
Até ao final do século XX, o então ICN realizou trabalhos de investigação, com a colaboração da Academia e com organizações ambientalistas, mas, nesse tempo, “não houve ainda possibilidade de fazer gestão ativa com expressão significativa, quer do habitat, quer do lince-ibérico”.
Só no final dos anos 1990, é que foi possível constatar que a espécie estava, verdadeiramente e sem margem para dúvidas, no limiar da extinção, no limbo da ‘pré-extinção’, e já não existiam linces residentes em Portugal. Contudo, tal não significa, explicou o técnico, que, de quando em vez, não cruzassem a fronteira alguns felídeos, sendo que acabavam sempre por regressar a Espanha.
Por isso, no começo do novo século, o lince-ibérico considerava-se extinto em Portugal. Do outro lado da fronteira, “a situação também era dramática”, contou João Alves, uma vez que se calculava que existissem menos de 100 indivíduos em território espanhol, concentrados em núcleos na região da Andaluzia, mais especificamente em Doñana e na serra Morena, a nordeste de Sevilha.
“Havia uma grande endogamia, ou seja, muita consanguinidade, pouca reprodução”, detalhou. O desaparecimento do coelho-bravo, espécie vítima da caça excessiva e de doenças, como a mixomatose e a doença hemorrágica viral, “afetou não só o lince, como outras espécies”, tais como diversas aves de rapina.
Nesse quadro de quase total desaparecimento do lince-ibérico, de ambos os lados da fronteira considerou-se que só restava uma solução para tentar evitar a sua extinção: a reprodução em cativeiro. Espanha deu os primeiros passos, logo no início dos anos 2000, com um programa de reprodução, no centro de El Acebuche, no Parque Nacional de Doñana.
Em 2004, os governos português e espanhol da época, reunidos em Santiago de Compostela, reconheceram oficialmente, através de um Memorando de Entendimento, o lince e, também, a águia-imperial-ibérica (Aquila adalberti) como espécies ‘criticamente em perigo’, estabelecendo um modelo de cooperação para a preservação dessas espécies, que ficou ao cargo do ICNF, da Dirección General para la Biodiversidad do Ministério del Medio Ambiente e da Administração da região de Andaluzia.
Espanha avançou para uma estratégia nacional de conservação do lince, ao passo que Portugal “foi trabalhando no sentido de contribuir para a execução dessa estratégia”, embora não estivessem ainda reunidas as condições para a criação de um plano português, o qual só veio a estar concluído em 2008, com a aprovação do primeiro Plano de Ação para a Conservação do Lince-Ibérico em Portugal (PACLIP 2008).
Portugal ganha papel preponderante
Anos volvidos, surgiu, por fim, uma oportunidade para Portugal passar a ter um papel mais preponderante nos esforços de conservação do lince-ibérico: o projeto para a construção da barragem de Odelouca, na região do Algarve, que seria financiado com fundos comunitários.
No entanto, e apesar de a infraestrutura ter sido sujeita a uma Avaliação de Impacte Ambiental, “o lince não foi inicialmente tido em conta”, pelo menos antes de a barragem ter começado a ser construída, em 2001. Já a construção ia avançando, quando diversas organizações não-governamentais de ambiente apresentaram uma queixa à Comissão Europeia, denunciando que a barragem ameaçava as serras de Monchique e do Caldeirão, áreas para as quais existiam registos de ocorrência histórica do lince-ibérico.
Por isso, em 2003, o financiamento europeu foi suspenso, assim como os trabalhos de construção. As obras viriam a ser retomadas em 2007, com um projeto que passou a reconhecer que “o enchimento da Barragem de Odelouca irá interferir com áreas de habitats florestais, incluindo sobreirais, montados, matos mediterrânicos e formações ripícolas”, e a contemplar medidas de compensação e sobrecompensação, para “atingir os objetivos de conservação das espécies e habitats diretamente afetados pelo empreendimento, em especial o Lince-ibérico, as aves de rapina (Águia-de-Bonelli), as espécies endémicas de ictiofauna e os habitats das galerias ribeirinhas”. Como pode ler-se na brochura da barragem de Odelouca elaborada pelas Águas do Algarve, detentora da obra, que considerou, após a pressão de Bruxelas e da contestação dos ambientalistas, que “a barragem e albufeira de Odelouca estão localizadas numa área com um importante património ecológico”. Além de um investimento adicional de perto de 11 milhões de euros para minimizar os impactes ambientais do projeto.
Desse conjunto de medidas fez parte a construção do Centro Nacional de Reprodução do Lince-ibérico (CNRLI), na Herdade das Santinhas, em Silves, que contemplava também o “fomento das populações de coelho bravo”, a “recuperação de manutenção de habitat favorável” para essas duas espécies e ainda um “programa de monitorização” com o objetivo de acompanhar a evolução do lince e do coelho-bravo.
Lembrou João Alves que a Comissão Europeia só desbloqueou os fundos para a continuação da construção da barragem depois de ter sido assumido o compromisso para a construção desse centro de reprodução em cativeiro.
Então, em 2007, o CNRLI, sob a gestão do ICNF e com 16 cercados, começou a ser construído e equipado pelas Águas do Algarve, tendo sido inaugurado em maio de 2009. Cinco meses depois, o centro recebia a sua primeira fêmea de lince-ibérico, a Azahar, vinda da Andaluzia, em Espanha, fruto de protocolo assinado entre os governos português e espanhol, no qual o segundo se comprometia a enviar 14 linces para Portugal, recordou João Alves, embora não tenham chegado a ser enviados todos.
Ainda assim, o técnico do ICNF afirmou que isso não foi um problema, pois “vieram os que foram necessários e aqueles que o CNRLI também tinha capacidade para acolher”.
Até ao final de 2009, outros linces foram enviados de Espanha, juntando-se a Azahar, e foi por isso também nesse ano que o centro arrancou. E logo na primeira época de reprodução (o período de cio dos linces, tal como de outros felídeos, ocorre em janeiro, com um período de gestação de cerca de dois meses) nasceram crias de lince em solo português.
João Alves explicou que não é algo que costume acontecer, pois a fêmea, inserida num contexto que lhe é estranho, tende a ficar mais ansiosa e isso, por norma, dificulta a reprodução. No entanto, a Azahar mostrou ser a exceção à regra. Infelizmente, as duas crias acabaram por não sobreviver, menos de um mês após o parto.
Os linces costumam ter, em média, entre uma e três crias, embora haja registos de várias ninhadas de cinco crias no CNRLI e mesmo em plena liberdade no Vale do Guadiana, e de uma ninhada de seis crias nascidas na natureza em Espanha. Um dos fatores que mais influenciam esse número é o estado nutricional da fêmea – se a progenitora estiver bem alimentada, conseguirá gerar mais crias.
Visto que a população de linces que existe na Península Ibérica é composta, com maior ou menor proximidade, por parentes de apenas 100 indivíduos, a constituição de casais reprodutores no CNRLI é feita consoante o seu perfil genético. Para evitar consanguinidade e para maximizar a sua diversidade genética, a prioridade é juntar machos e fêmeas que sejam geneticamente o mais “diversos” possível.
Esse trabalho só consegue ser feito graças à sequenciação genética feita pelo Professor José António Godoy, que lidera o programa para os ‘bilhetes de identidade’ de todos os linces capturados, entre os quais aqueles de que tenha sido possível recolher e analisar amostras biológicas – fluídos, pelos ou até mesmo dejetos (que contêm ADN do indivíduo que os produziu) – e dos que nascem em cativeiro.
Apesar de ser o único em Portugal, o CNRLI é somente um de quatro centros de reprodução em cativeiro exclusivamente dedicados ao lince que existem na Península Ibérica, estando os restantes três localizados em Doñana, em La Olivilla (Andaluzia) e em Zarza de Granadilla (Cáceres). Existe um jardim zoológico em Jerez de la Frontera, gerido por privados, que desde o início do programa de conservação espanhol também faz reprodução de linces-ibéricos, mas tem capacidade para apenas reproduzir um casal por ano, pelo que a sua expressão quantitativa no trabalho de conservação da espécie é menor, embora, nestas circunstâncias, todos os esforços sejam positivos.
No verão de 2018, o CNRLI enfrentou um dos momentos mais duros da sua existência. O incêndio que deflagrou em Monchique atingiu as suas instalações. Embora todos os 29 animais tenham sido retirados em segurança, no dia anterior, para os centros em Espanha, as chamas, e o calor intenso por elas gerado, destruíram vários equipamentos. A sua substituição foi feita com recurso a aproximadamente um milhão de euros, dos quais metade foi oriundo do Fundo Ambiental.
Além de ter sido renovada toda a parte elétrica e eletrónica do CNRLI, foram também instaladas medidas de prevenção contra incêndios, como aspersores, para proteger o centro, bem como os animais e pessoas que nele vivem e trabalham, de futuras ameaças desse tipo.
No entanto, isso não é uma ‘solução mágica’, pois em 2022 voltou a registar-se risco de incêndio e o CNRLI começou logo a preparar a retirada. “Se o incêndio chega, por vezes é com tamanha intensidade e rapidez que, mesmo com a estrutura toda molhada”, o risco continua a ser demasiado grande para ameaçar a segurança dos animais, salientou João Alves.
Depois do fogo de 2018, os animais regressaram em dezembro desse ano, mas não todos. Um dos machos, que sofria de epilepsia, acabaria por morrer no centro de El Acebuche, em Espanha, depois de uma crise. Não regressaram também linces juvenis que, como seriam libertados em fevereiro, acabaram por permanecer em Espanha para serem libertados do lado de lá da fronteira.
A reintrodução dos linces
O CNRLI, até agora, já produziu 174 linces, dos quais sobreviveram 119, o que representa uma taxa de sobrevivência de cerca de 75%, “o que é muito bom”, segundo o técnico. Desse total de sobrevivos, 94 foram reintroduzidos na natureza e os que sobram foram integrados em programas de reprodução dos centros ibéricos. Desses 94, 19 foram libertados em Portugal, desde que as reintroduções começaram em 2014.
As libertações são determinadas por uma comissão internacional, liderada por José António Godoy, pelo que, por exemplo, pode haver anos em que todos os linces nascidos em cativeiro em território português sejam reintroduzidos em Espanha. Isto porque nenhum dos centros reproduz linces apenas para o país onde está instalado.
“O mais frequente é haver uma troca. Alguns dos que nascem no CNRLI são libertados em Portugal e os restantes vão para Espanha”, vindo paralelamente sempre para Portugal exemplares nascidos nos três centros em Espanha, detalhou João Alves.
Atualmente, o centro tem oito linces em condições de serem libertados, o que deverá acontecer já em 2023. Contudo, deverão ser reintroduzidos em Espanha, “mas para o ano provavelmente voltaremos a fazer libertações”, acrescentou.
Está em curso a preparação de uma terceira versão do Plano de Ação para a Conservação do Lince-Ibérico em Portugal (PACLIP), cuja versão imediatamente anterior foi criada para o horizonte 2015-2020. O plano tem como objetivo “viabilizar a conservação da espécie em território nacional, invertendo o processo de declínio continuado das suas populações, e recuperar os núcleos históricos da espécie” e implementar “um modelo estratégico de atuação que promove a ação coordenada das entidades relevantes para o processo de desenvolvimento das regiões” onde essa conservação acontece. Até haver uma nova versão, o PACLIP 2015-2020 continuará em vigor.
Em Portugal, o Vale do Guadiana foi a zona escolhida para fazer a reintrodução em Portugal, devido a uma abundância de coelho-bravo, a um “habitat natural adequado e com extensão considerável” e à existência de poucas estradas com um grande fluxo de automóveis, detalhou João Alves.
O censo de 2021 indicava que, a nível da Península Ibérica, estão 1.365 linces em liberdade. A contagem mais recente, revelada em maio deste ano, dá conta de que em 2022 existiam 1.668 indivíduos na região: 1.407 em Espanha e 261 em Portugal. Por cá, há registo de um núcleo populacional reprodutor de lince-ibérico, no Vale do Guadiana, composto por três subnúcleos (Mértola e Serpa no Alentejo, e o de Alcoutim no Algarve), nos quais residem atualmente em liberdade 49 fêmeas reprodutoras, que geraram 86 crias durante a temporada de 2022.
No país vizinho estão localizados os restantes 14 que se conhecem na Península Ibérica.
“A perspetiva é que, daqui a um ano ou dois, se as coisas continuarem a este ritmo” o lince-ibérico, hoje avaliado globalmente como estando ‘em perigo’, passe ao estatuto de ‘vulnerável’, adiantou o especialista, sendo que o objetivo a médio-prazo é que a espécie deixe de ter qualquer estatuto de ameaça, altura em que sairá da Lista Vermelha da UICN.
Para quando será isso? João Alves apontou que “dependerá do ritmo de reprodução em cativeiro e da mortalidade”, mas, de acordo com o consenso científico, se for alcançado, a nível ibérico, o número de entre 750 e 800 fêmeas reprodutoras em liberdade e que estejam territorialmente estabelecidas, “a espécie deixará de estar ameaçada”. E esse número poderá ser atingido até 2040, ou mesmo antes, acredita o técnico.
Distribuição em Portugal
Por cá, a reintrodução do lince-ibérico começou no Vale do Guadiana e um dos principais núcleos da espécie em Portugal reside em Mértola. Contudo, alguns linces começaram a migrar para Norte, para Serpa, no distrito de Beja, também para ocidente, para Almodôvar e Castro Verde, e para sul, no Algarve, em Alcoutim.
João Alves, do ICNF, informou que, desde 2019, se tem observado uma dispersão mais significativa para Sul. “Atravessaram facilmente a ribeira do Vascão”, um afluente do Guadiana que marca a ‘fronteira’ entre Alentejo e Algarve, pois o lince “nada perfeitamente”, acrescentou.
Por isso, está a ser formado outro núcleo “importante” no concelho de Alcoutim, mais especificamente nas localidades de Giões e Pereiro.
Na análise da distribuição de linces em Portugal é preciso ter em conta que os animais se deslocam através da fronteira luso-espanhola, pelo que, quer em Mértola, quer em Alcoutim, já foram identificados indivíduos que “vieram espontaneamente de Doñana”, referiu João Alves. E o inverso também acontece: linces que foram libertados no Vale do Guadiana e que acabaram por ser detetados em Espanha.
“É bom que exista esta dispersão, que acontece naturalmente”, explicou, mas “é importante que o animal que se dispersa se fixe depois num outro núcleo já existente. Porque se ficar isolado, é um animal que se perde, que não se reproduz”.
Estão também a ser estudados outros locais de libertação, pois os atuais começam a estar já sobrelotados, e o projeto Lynxconnect prevê que seja identificada em Portugal uma nova área de reintrodução, até 2025. Por isso, além do Vale do Guadiana, onde começou o programa de libertação português, estão a ser estudados locais, como a Serra da Malcata ou a Serra de São Mamede, ‘onde eles já vão surgindo espontaneamente’, embora, frisou João Alves, não estejam tomadas quaisquer decisões.
Conflitos entre linces e pessoas
Em 2014, foi construído um cercado em São João dos Caldeireiros, no concelho de Mértola, usado para fazer a chamada ‘solta branda’, método através do qual os animais são reintroduzidos na natureza, permanecendo primeiro algum tempo (cerca de um mês) num cercado grande onde se podem ambientar e marcar território, antes de passarem para o exterior. Contudo, atualmente está a servir de base para uma fêmea de lince que causou grande rebuliço em Corte Sines, ao norte de Mértola.
De nome Paprica, esse lince, depois de libertado, escolheu a zona onde se situa essa aldeia como o seu território. No entanto, provavelmente devido à pouca disponibilidade de coelhos, começou a invadir galinheiros e a alimentar-se das aves aí guardadas.
O ICNF começou por ajudar na melhoria dos galinheiros, para tentar torná-los ‘à prova de lince’, mas, apesar dos esforços, a Paprica continuava a alimentar-se das galinhas quando essas eram soltas durante o dia.
Por isso, o animal foi recapturado e colocado nesse cercado de solta branda, de onde, ainda assim, conseguiu evadir-se menos de 24 horas depois. O cercado foi reforçado e a Paprica, devido ao seu “gosto” por galinhas e aos conflitos que daí podiam resultar com a população humana, foi novamente colocada nesse cercado, juntamente com um macho, na esperança de que acasalem e possam ter uma ninhada.
Os técnicos esperam que o instinto maternal da Paprica possa sobrepor-se ao seu apetite pelas galinhas, focando-se no cuidado das crias e permanecendo junto delas e, assim, não regressar a Corte Sines. Caso essa estratégia não resulte, deverá ser integrada num programa de reprodução, pois a sua libertação acarretará demasiados riscos.
Os conflitos com humanos podem também criar obstáculos à recuperação dos linces, além de todos os danos que possam infligir às populações, aos seus bens materiais e aos animais que tenham à sua guarda.
Para que não sejam criados ‘anticorpos’ aos linces que são libertados, João Alves avançou que está a tentar criar-se “alguma legislação de suporte que permita fazer indemnizações, tal como existe para o lobo”, mas reconhece que “é difícil”.
Outra forma é, através da Política Agrícola Comum, “criar mecanismos de compensação indiretos”. Isto é, “quem tiver terrenos em que garantidamente ocorram linces, recebe uma majoração de X euros por hectare”, seja para compensar a morte de algum animal causada por linces, seja por “fazer uma gestão adequada da sua propriedade que seja favorável aos linces”, por exemplo, através de uma boa gestão do coberto vegetal, que contribua para a promoção das populações de coelho-bravo. Além disso, se for necessário, poderão também estabelecer-se acordos com os gestores cinegéticos sobre algumas limitações nas jornadas de caça, durante o período em que as fêmeas normalmente dão à luz.
E os serviços prestados pelo lince às populações humanas são muitos, variados e importantes. Alguns deles são a promoção de populações de espécies-presa mais saudáveis, pois os felídeos alimentam-se principalmente de animais velhos ou doentes (pois são mais fáceis de caçar). Além disso, mantêm outros predadores, com um regime alimentar mais generalista, à distância, como as raposas, os saca-rabos e as ginetas. O fundamental é que as pessoas sejam chamadas à linha da frente da proteção das espécies, neste caso do lince-ibérico, e que se tornem agentes ativos da conservação.
A “aceitação social” é um fator também de grande relevância nos projetos de conservação de qualquer espécie, especialmente quando inclui a reintrodução.
“Se da abordagem a autarcas, presidentes de Câmara e de Junta, a associações locais de agricultores, de produtores florestais, de gestores cinegéticos, e aos residentes, se perceber que as pessoas não querem lá linces de volta, não vale a pena estar a reintroduzi-los nessas zonas”, explicou João Alves. Em Espanha, há registos de experiências de reintrodução negativas, em que os linces começaram a ser abatidos a tiro pela população local ou a ser vítimas de envenenamento, “e por isso tiveram de desistir, porque não valia a pena estar a libertar linces para as pessoas os matarem”.
Para o Vale do Guadiana, “essa análise foi feita, esse diálogo foi feito”, afiançou o técnico do ICNF, um trabalho desenvolvido por uma equipa coordenada pela bióloga e antropóloga Margarida Lopes Fernandes, que culminou numa exposição, na sede do PNVG em Mértola, que apresenta os resultados desses mesmos contactos. E as pessoas foram convidadas a estarem presentes nas primeiras libertações de 2014.
Por isso, o envolvimento das populações residentes ou que exerçam atividades económicas nas zonas de reintrodução, antes mesmo do início do processo de reintrodução, é crucial, falando com os residentes e responsáveis locais, informando-os e sensibilizando-os para a importância do lince-ibérico e para as melhores formas de lidarem com esses animais depois de libertados.
Atropelamento é a principal causa de morte
Além da fragmentação e degradação do seu habitat natural e da escassez do coelho-bravo, o lince-ibérico enfrenta outra grande ameaça: morte por atropelamento. Esse fator de pressão sobre as populações de linces está intimamente relacionado com a pulverização do seu habitat, pelo que é fundamental criar medidas que permitam reconectar de forma segura os núcleos isolados.
Uma das soluções para esse problema poderá passar pela criação de ‘corredores ecológicos’, canais físicos de comunicação que quebram o isolamento das populações e promovem a exogamia, pois mesmo a reprodução na natureza pode levar novamente à endogamia em certos locais e a uma elevada taxa de consanguinidade, com todos os riscos para a sobrevivência das espécies que daí advêm (uma reduzida diversidade genética que degrada a capacidade de resiliência das populações a fatores de pressão, como doenças ou as alterações climáticas).
Ainda assim, João Alves, do ICNF, acredita que as outras causas de morte destes animais podem estar subestimadas, uma vez que os atropelamentos são facilmente conhecidos, seja porque os condutores alertam para isso, seja porque os gestores das autoestradas e vias rápidas “têm de fazer monitorização dos animais atropelados, quer em Portugal, quer em Espanha”.
Se o lince morrer no meio da floresta, no topo de uma serra ou escondido numa toca, acaba por não ser possível confirmar a sua morte. O ICNF mantém uma lista, que felizmente não é longa, de desaparecidos, cuja morte não está confirmada.
Desde que as libertações arrancaram, há cerca de sete anos, foram confirmadas 30 mortes, a maioria devido a atropelamento, mas algumas também por afogamento, especialmente em represas ou tanques de água para rega.
No caso das charcas para uso agrícola, “se tiverem telas de impermeabilização colocadas no fundo e nos taludes, [os linces] escorregam e não conseguem sair. Se for um tanque estilo piscina, então aí não conseguem sair mesmo”, disse o técnico, assinalando que o ICNF, para tentar reduzir o número de mortes por afogamento, tem vindo a identificar essas charcas e a colocar escadas ou troncos de árvores no talude para que os linces possam subir e sair. Quanto aos tanques, aconselham os proprietários a cobri-los com uma rede.
As alterações climáticas, como não podia deixar de ser, são também uma ameaça à conservação do lince-ibérico, “pois tendencialmente podem levar a alterações do coberto vegetal, períodos de seca em que a vegetação não se desenvolva”, e isso afetará as populações de coelho-bravo e, consequentemente, do lince.
“No imediato, as alterações climáticas não vão interferir com o lince, porque tem capacidade de se deslocar e de procurar outros locais, mas interferem garantidamente com as espécies-presa, com o seu alimento, e por isso podem ser um fator de perturbação a médio, longo prazo”, explicou o técnico do ICNF.
O futuro
O futuro parece positivo, mas traz alguma incerteza. O programa europeu LIFE, o instrumento da UE para financiar a proteção do ambiente e a ação climática, não deverá atribuir mais fundos ao lince-ibérico a partir de 2025, ano em que termina o Lynxconnect, “porque a União Europeia já investiu muito dinheiro no lince”, avisou João Alves, do ICNF. Por isso, os governos de Portugal e Espanha terão, através dos orçamentos nacionais ou de outras linhas comunitárias, de assegurar por outras vias a continuidade dos esforços de recuperação dessa espécie icónica da Península Ibérica. Isto “porque, mesmo quando o lince passar ao estado de ‘vulnerável’, não estará ainda numa situação de sustentabilidade”, assinalou.
O especialista considerou também que deveria haver maior envolvimento da Academia na conservação do lince-ibérico, salientando que seria importante a criação de linhas de financiamento, por exemplo, da Fundação para a Ciência e Tecnologia, “para a investigação temática sobre o lince e sobre a espécie-presa”, o coelho-bravo.
Além disso, disse que “temos de começar a pensar substituir a equipa técnica do ICNF”, para rejuvenescer o quadro de pessoal, uma vez que muitos estão já perto da idade da reforma.
“Temos de colocar novos técnicos, integrá-los nesta equipa, para poderem dar seguimento ao trabalho”, porque “antes de 2035 não vamos ter o lince num estado de conservação favorável”, reiterou.
O acordo de comodato, estabelecido em 2009, entre as Águas do Algarve e o ICNF, que prevê que este último assegure administrativa, técnica e financeiramente as operações do CNRLI, terminará em 2025. Depois disso, “temos de negociar com as Águas do Algarve”, disse João Alves, apontando que, “na perspetiva do ICNF, em princípio, será para continuar”.
*Artigo publicado originalmente em março de 2023, na revista física da Green Savers, com atualização dos dados relativos ao censo populacional de 2022.