LxAquila: O projeto português que está a ajudar a proteger a águia-de-bonelli na Grande Lisboa



A águia-de-bonelli (Aquila fasciata), também conhecida como águia-perdigueira, é a mais pequena das três maiores espécies de águia que ocorrem em Portugal, a par da águia-real e da águia-imperial-ibérica, e as fêmeas, maiores do que os machos, podem ter uma envergadura de até 1,80 metros.

Embora a nível mundial esteja classificada com o estatuto de ‘Pouco Preocupante’, em Portugal está ‘Em Perigo’, fruto, sobretudo da expansão humana, que transforma os seus habitats naturais e locais de nidificação em zonas agrícolas e urbanas, mas também por causa da redução das populações de espécies-presa, como o coelho-bravo e a perdiz.

Na área da Grande Lisboa, estima-se que esteja localizada uma porção significativa da população nacional, cerca de 10% dos indivíduos maduros, pelo que constitui um foco de grande valor para a conservação da espécie no país. Contudo, sendo a águia-de-bonelli bastante vulnerável à perturbação causada pelas atividades humanas, podendo resultar em várias épocas de reprodução falhadas, viverem numa região bastante urbanizada e densamente povoada (perto de três milhões de habitantes) é um desafio complexo, pelo que atenuar os efeitos negativos da população humana sobre esta espécie é fundamental.

Foi precisamente para ajudar a harmonizar a presença humana e a preservação das águias-de-bonelli na área metropolitana lisboeta que nasceu o projeto LIFE LxAquila. Iniciada em 2020, e com fim previsto para 2025, a iniciativa é liderada pela Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA), e, segundo o coordenador Joaquim Teodósio procura “compatibilizar, o melhor possível, as atividades humanas com a população de águia-de-bonelli”.

Entre as principais ações, estão a proteção de 29 ninhos da espécie na Grande Lisboa, a integração de medidas de conservação nos instrumentos de planeamento e gestão territorial e a correção de 100 postes elétricos perigosos em redor dos ninhos, para evitar que as aves sejam eletrocutadas, entre muitas outras. Do plano faz também parte a criação de uma rede de custódia do território, composta por proprietários e gestores de terrenos privados e públicos, para ajudar a conservar os núcleos de águias-de-bonelli que vivam nessas áreas.

O Espaço de Visitação e Observação de Aves (EVOA) é gerido pela Companhia das Lezírias.
Foto: Filipe Pimentel Rações

Em entrevista à ‘Green Savers’, durante o Festival LxAquila, que se realizou no passado fim-de-semana no Espaço de Visitação e Observação de Aves (EVOA), na Companhia das Lezírias, Joaquim Teodósio explicou que, apesar da sensibilidade à presença humana, a população de águias da Grande Lisboa apresenta “uma maior tolerância” do que outras, o que, num país, e também num mundo, cada vez mais ‘humanizado’, “se houver alguns indivíduos que são mais tolerantes [aos humanos] isso será bom em termos da conservação da espécie”.

“Das três grandes espécies de águia, é a única que ocorre assim tão perto das pessoas, e, na verdade, acaba por estar sujeita a uma série de situações, umas com maior impacto do que outras, que podem condicionar a ocupação dos territórios e a nidificação”, salientou o especialista, acrescentando que a águia-de-bonelli, devido ao seu tamanho, precisa de árvores de grande porte para construir os seus ninhos, que podem estar a vários metros do solo e ter dois metros de altura, escondidos por entre os ramos, e alguns, os mais antigos, podem mesmo pesar centenas de quilos.

Uma rede de custódia composta por ‘guardiões’ da águia-de-bonelli

Essa rede de custódia “é mais outra ferramenta de conservação” da espécie, que permitirá desenhar soluções “à medida”, descreveu Joaquim Teodósio.

Numa área fortemente urbanizada, como a Grande Lisboa, em que densidade arbórea é reduzida e tenderá a diminuir e em que a presença humana, ao contrário, tenderá a aumentar, proteger os poucos locais que restam adequados à fixação e sobrevivência dessas aves é fundamental para a sobrevivência da espécie na região.

Além disso, algumas águias podem fazer ninhos em áreas florestais fora de áreas protegidas, o que, segundo Teodósio, “vem acrescentar mais um nível de complexidade”, uma vez que não é tarefa fácil “minimizar os problemas para esta espécie em zonas onde não há legislação que proteja a área, apesar de a legislação que protege os animais selvagens que lhe conferir alguma proteção em qualquer lugar onde ocorra”.

Águia-de-bonelli.
Foto: Mike Prince / Wikimedia Commons (licença CC BY 2.0)

Por isso, a rede de custódia é chave. Criar um ecossistema de ‘guardiões’ da águia-de-bonelli, constituído por proprietários privados, gestores públicos e privados, como gestores florestais ou gestores de zonas de caça, e por órgãos de poder local, como câmaras municipais e juntas de freguesia, permitirá sentar à mesma mesa todas as partes interessadas, procurando equilibrar os interesses humanos com a preservação da espécie, com ganhos para ambos os lados da equação ecológica.

Assim, com essa medida, o projeto pretende “encontrar uma forma de trabalho conjunto que permita criar um acordo de longo-prazo em que, por um lado, se consegue ter uma série de boas práticas que reduzem a perturbação e que garantem a manutenção das condições para as águias, e, por outro, se encontre formas de que isso também seja benéfico para quem faz a gestão do território”, contou-nos Joaquim Teodósio, da SPEA.

E destacou o papel importante que as autoridades autárquicas têm a desempenhar nessa rede de custódia, devido à sua atuação local. “Conhecem melhor o território, têm meios e instrumentos que podem ser úteis em termos deste encontro de vontades”, explicou, recordando que o projeto tem como parceiros as câmaras municipais de Alenquer, de Loures, de Mafra, de Sintra, de Torres Vedras e de Vila Franca de Xira.

Quanto à ameaça da eletrocussão, uma das principais causas de mortalidade das águias-de-bonelli, o coordenador do projeto disse-nos que estão a trabalhar com a E-redes, que está “a corrigir” uma centena de postes de eletricidade ao redor dos ninhos “para serem menos perigosos para a aves”.

No que toca ao crime ambiental, como a caça ilegal e a colocação de venenos, a iniciativa conta com a participação da Guarda Nacional Republicana (GNR) e do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), afirmando que “continua a haver perseguição” e situações de uso de veneno que podem, muitas vezes, deitar por terra todo o esforço da parceria, sendo também um risco para as pessoas e para os animais domésticos.

Durante o Festival LxAquila, membros do Grupo de Intervenção Cinotécnica da GNR, que colaboram com o projeto, demonstraram como os cães detetam cadáveres de animais mortos por envenenamento, uma das ameaças para as aves selvagens e outras espécies de animais. Nesta imagem, o pastor-alemão de dez anos, com o seu tutor, o Cabo Almeida. O animal, perante o público, detetou no meio de ervas altas um cadáver de bufo-real, neste caso uma ave que morreu por electrocussão e é utilizada agora para estas ações de treino.
Foto: Filipe Pimentel Rações

As águias-de-bonelli, como predadores de topo, não se alimentam de carne morta, mas veneno que seja colocado em iscos pode, ainda assim, afetar essas aves, ao alimentarem-se de outras espécies que tenham contactado com essa substância tóxica ou que a tenham ingerido.

Outras entidades que gerem áreas importantes para a nidificação das águias-de-bonelli são também importantes parceiros do projeto, razão pela qual a Companhia das Lezírias, a Parques Sintra e a Tapada Nacional de Mafra também a ele estão associadas.

“É esta sinergia, esta junção de capacidades, valências e trocas de experiências que nos permite acreditar que esta rede de custódia, que depois vai aumentando e incluindo mais entidades, proprietários e gestores, será central para a conservação da espécie neste contexto”, referiu Teodósio.

Embora este projeto se foque na área metropolitana de Lisboa, o especialista está confiante de que o modelo poderá ser replicado noutras regiões, até dentro de áreas protegidas, e mesmo ser ampliado e replicado a outras espécies.

A capacidade que a rede de custódia tem para se adaptar às especificidades dos contextos locais é um dos traços mais notórios desta abordagem. “Uma das dificuldades que temos, por exemplo, é que muitas das leis [de conservação] são de âmbito nacional, são uma solução de tamanho único”, afirmou, apontando que tal poderá resultar na promoção ou aprofundamento de desigualdades locais e redundar no fracasso das medidas.

As perceções sociais

O LIFE LxAquila contou também com um estudo sobre as perceções sociais que são formadas sobre a águia-de-bonelli. Elaborado por especialistas do Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA), o trabalho mostrou que “a maioria dos entrevistados considera que é possível para a águia-de-Bonelli viver na Área Metropolitana de Lisboa, mas com certas condições tais como providenciar mais presas para esta espécie”, pode ler-se no resumo não técnico.

Com um total de 67 entrevistas realizadas, a auscultação social procurou avaliar a tolerância dos atores-chave locais, como a proprietários de terrenos, gestores cinegéticos, representantes do poder local, promotores de atividades de natureza e criadores de pombos inseridos na comunidade local, à presença da águia na região periurbana da Grande Lisboa.

No entanto, apesar da tolerância condicionada demostrada por alguns interlocutores, “a maioria dos atores chave não conhecem bem esta espécie nem reconhecem muitas vantagens ou desvantagens na sua presença”, escrevem os especialistas, que salientam a importância de “uma comunicação mais positiva sobre a águia-de-Bonelli, o seu papel de controle de outros pequenos predadores, os seus cuidados parentais e sensibilidade à perturbação humana”.

“Todos os territórios atualmente ocupados por casais mostraram tolerância social, em especial nas áreas protegidas, não obstante existirem atitudes negativas face à possibilidade de causarem prejuízos”, explicam no relatório.

A predadora de predadores

A águia-de-bonelli é uma espécie ‘Em Perigo’ em Portugal e é considerada prioritária em termos de conservação, porque “teve uma grande regressão nas últimas décadas”, sobretudo nos anos de 1980, estimando-se que existam cerca de 150 casais em todo o país.

Estando no topo da cadeia alimentar, não tem predadores naturais, especializando-se na caça de coelhos, perdizes, pombos, répteis, roedores, gaivotas, corvídeos e até outras águias mais pequenas, também elas predadoras, como a águia-de-asa-redonda.

Esta é uma das espécies de águias que mais cedo começa a fazer ninhos, por volta de dezembro, sendo a época mais crítica entre dezembro e junho. Entre fevereiro e abril são postos os ovos e em junho as crias estarão prontas para se aventuraram fora dos ninhos.

Ainda assim, as jovens águias-de-bonelli tendem a permanecer junto dos progenitores até setembro, aprendendo técnicas de voo, de caça e de sobrevivência.

Depois, os juvenis partem no que se poderia chamar de ‘voos de emancipação’, percorrendo, por vezes, grandes distâncias, mas, por norma, acabam por regressar aos locais onde nasceram e onde farão os seus próprios ninhos, em territórios que lhes são familiares.

Três ninhos na Companhia das Lezírias

Nos terrenos da Companhia das Lezírias foram identificados três ninhos de águias-de-bonelli. Embora na área do EVOA, por não haver arvoredo suficiente, não haja presença de ninhos, essa área não deixa de ser um importante local de alimentação para essas aves de rapina.

É “um restaurante”, como nos disse Sandra Paiva Silva, coordenadora do EVOA. Nesse espaço, concentra-se um grande número de aves, de várias espécies, que se refugiam da maré alta, “e a águia-de-bonelli aproveita isso”, podendo esses predadores vir de áreas distantes para caçarem.

A responsável recordou que, no inverno, quando as marrequinhas se congregam aos milhares nas lagoas do EVOA, é um “festim” para as águias-de-bonelli, que já foram avistadas a capturar estes patos em pleno voo.

Na lagoa principal do EVOA, é um verdadeiro rebuliço das aves. Nesta imagem, colhereiros, íbis-pretas, garças e patos-reais descansam ao sol, limpam as penas ou procuram alimento. É destes ajuntamentos que as águias-de-bonelli tiram proveito.
Foto: Filipe Pimentel Rações

Além disso, essa área é também usada como terreno de aprendizagem, no qual os progenitores ensinam às crias, que já saíram dos ninhos, como e o que caçar. Como tal, o EVOA representa “um território importante” para essa espécie.

Mas na Charneca do Infantado, com uma maior densidade arbórea, as condições para a nidificação são mais adequadas, e é precisamente aí que se encontram alguns ninhos desta espécie ameaçada de extinção, uns em uso e outros que foram abandonados.

Nessa área, e com o objetivo de aumentar a disponibilidade de alimento para as águias, a Companhia das Lezírias criou, em 2021, um programa de reprodução de coelhos-bravos. Com 80 pontos de alimentação e de água por toda a propriedade, bem como com um cercado, de cerca de meio hectare, fechado com rede, é feita a monitorização da população desses leporídeos, para evitar a transmissão de doenças e assegurar, assim, a saúde desses animais, que, de tempos a tempos, são libertados na Charneca do Infantado para aumentar a população selvagem local.

Sandra Paiva Silva considera que a sensibilização para a conservação, seja de crianças ou de público mais velho, é fundamental para mudar perceções e comportamentos e para fazer ver que, mesmo no mundo das aves de rapina, não há vilões e que todos os animais têm um lugar importante das teias ecológicas que sustentam a vida na Terra.

“É educar para proteger”, salientou a coordenadora do EVOA, daí o trabalho afincado que tem sido desenvolvido pelo projeto e pelos seus parceiros no campo da educação ambiental, que já abrangeu centenas de alunos de escolas da Grande Lisboa, bem como públicos de outras idades. Além disso, o LxAquila lançou também uma campanha que desafia todos a tornarem-se ‘embaixadores das águias‘, destacando o papel indispensável que a sociedade tem na conservação destas aves ameaçadas.





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