Fóssil acrescenta peça vital ao puzzle da evolução dos morcegos
De todos os mamíferos, os morcegos têm um dos registos fósseis mais pobres, com os paleontólogos a estimarem que cerca de 80% do seu espólio está em falta.
Este facto dificultou a identificação exata do momento em que começaram a voar, a empoleirar-se em cavernas ou a desenvolver a sua forma única de “ver” o que os rodeia no escuro utilizando o som – a chamada ecolocalização.
Mas um crânio de morcego, quase perfeitamente preservado, descoberto por paleontólogos franceses numa caverna com cerca de 50 milhões de anos, veio lançar uma nova luz sobre o que pensávamos saber sobre esta criatura antiga e hipotética.
A Professora Emérita Sue Hand, da Escola de Ciências Biológicas da Terra e do Ambiente da UNSW Sydney, é uma paleontóloga de renome, especializada na evolução dos morcegos. Liderou uma análise do crânio, publicada hoje na revista Current Biology, que envolveu o Jacob Maugoust e a Professora Maeva Orliac da Universidade de Montpellier, em França, e o Professor Robin Beck da Universidade de Salford, no Reino Unido.
Hand afirma que, antes da descoberta deste crânio – que se encontrava entre 23 indivíduos fossilizados distintos encontrados na gruta, pertencentes à espécie extinta Vielasia sigei – apenas existiam no registo fóssil fragmentos ou esqueletos completamente achatados dos primeiros morcegos.
“Não sabemos muito sobre os primórdios dos morcegos porque não temos os elos em falta como temos, por exemplo, entre os dinossauros e as aves modernas”, afirma.
“O fóssil de morcego mais antigo tem cerca de 57 milhões de anos e é um único dente de um sítio em Portugal – é tudo o que sabemos sobre ele. Os primeiros morcegos só são conhecidos através de fósseis fragmentários, na sua maioria dentes. Quando os morcegos aparecem no registo fóssil um pouco mais tarde, há cerca de 52 milhões de anos, alguns são morcegos maravilhosamente completos, mas são achatados”, acrescenta.
Embora estes espécimes achatados estejam, nas palavras do Prof. Hand, “maravilhosamente preservados”, o facto de terem sido achatados por camadas de rocha depositadas ao longo de milhões de anos torna difícil decidir com convicção o posicionamento exato dos ossos na sua anatomia tridimensional. E quando se trata de determinar se um fóssil é de uma espécie de morcego que já usa a ecolocalização, a anatomia detalhada e precisa do crânio é crucial.
“Nos morcegos modernos, entre a caixa vocal e o ouvido, existem alguns ossos chamados ossos hióides. Em todos os morcegos modernos que ecolocalizam, um destes ossos contacta diretamente com os ossos do ouvido médio e parece estar envolvido na transmissão do som de alta frequência”, explica o professor, acrescentando que, “mas nos fósseis achatados, embora possamos ver estes vários ossos, há uma dúvida sobre as suas relações exatas entre si. Isto levou a um grande debate entre os cientistas sobre se uma espécie usava ou não a ecolocalização”.
Crânio não esmagado
Mas no caso do Vielasia sigei, não só o crânio está quase totalmente intacto, como foi preservado em calcário na sua forma tridimensional original, que os cientistas descrevem como “não esmagado”.
“Neste morcego em particular, podemos ver mais diretamente o que se passa mais profundamente, no ouvido interno”, diz o Prof. Hand. “Fizemos medições finas desse osso do ouvido interno e comparámo-lo com o dos morcegos que hoje ecolocalizam e com o dos que não ecolocalizam, e ele situa-se no meio dos que ecolocalizam”, acrescenta.
Hand explica que nem todos os morcegos ecolocalizam. As raposas voadoras que se veem regularmente no céu noturno de Sidney, à volta dos Jardins Botânicos, do Centennial Park e do Royal National Park, baseiam-se na sua excelente visão para navegar e encontrar frutos, sem ecolocalização. Entretanto, os micro-morcegos de Sidney são bem conhecidos por navegarem e apanharem insetos utilizando o feedback do som de alta frequência que emitem.
Hand não chega a concluir que a Vielasia sigei utilizava a ecolocalização com 100% de certeza, mas afirma que as novas provas são convincentes.
“É muito convincente que o tipo de ecolocalização que alguns destes primeiros morcegos usavam era indistinguível do que muitos morcegos ecolocalizadores usam atualmente e, há 50 milhões de anos, isto é muito anterior ao desenvolvimento desta capacidade pelas baleias. Antes desta descoberta, só tínhamos a certeza de que a ecolocalização se tinha desenvolvido nas famílias modernas de morcegos”, diz.
Regresso à gruta dos morcegos
Ao todo, foram 400 os ossos e dentes fósseis descobertos pela equipa francesa na gruta do sudoeste de França, que representavam 23 indivíduos. O Vielasia – que não é um antepassado direto dos morcegos atuais, mas pode ter estado intimamente relacionado com eles – era apenas um pequeno morcego, com o crânio não esmagado a medir apenas 1,8 cm de comprimento.
“Havia 23 destes pequenos morcegos maravilhosos a viver numa caverna, o que também faz dele o morcego cavernícola mais antigo do mundo que conhecemos”, diz o Professor
“Não pensávamos que estes primeiros morcegos vivessem efetivamente em grutas. A informação que tínhamos era que viviam em árvores à volta de lagos e em florestas que se estendiam até aos dois polos, porque a Terra estava muito quente nessa altura”, explica.
Mas quando estas condições de efeito de estufa começaram a deteriorar-se mais tarde, no início do período Eocénico – há cerca de 50 milhões de anos e mais ou menos na mesma altura em que este morcego vivia -, as variações de temperatura eram muito mais acentuadas.
“Por isso, pode ser que este morcego tenha vivido numa caverna porque este é um ambiente muito mais estável”, revela.
Passando o testemunho
Quer a análise do crânio não esmagado de Vielasia tenha ou não resolvido o debate sobre a ecolocalização dos primeiros morcegos, o Prof. Hand espera que inspire uma maior exploração do registo fóssil.
“Pensamos que algumas das características deste morcego também teriam caracterizado o último antepassado comum dos morcegos modernos. Por isso, é empolgante e vai ser um espécime importante, do qual as pessoas vão obter muita informação e utilizar nas suas próprias análises”, conclui