Ana Mineiro: “O milagre das pontes vivas da Índia”
“AS PONTES VIVAS E O FACTO DE DETER o recorde de chuva são as duas características únicas do estado de Meghalaya, um ilustre desconhecido no imenso território da Índia. O maciço montanhoso coberto de floresta tropical que se levanta junto à planície do Bangladesh já fez parte do estado do Assam. O ponto mais alto, com 1.372 metros, retém as nuvens de chuva que fazem com que Cherrapunjee, a maior povoação da zona, detenha o recorde mundial de chuva: mais de 24 metros em 1974.
Durante a monção a paisagem transforma-se, com os rios e cascatas dos montes khasi a transbordarem, isolando vales e formando ilhas na floresta. Os habitantes locais, as tribos khasi, criaram uma solução arquitetónica e ecológica única no mundo: uma rede de pontes de madeira e escadarias que atravessam o seu território, e que são literalmente à prova de água. O que estas pontes têm de especial é que estão vivas, continuam a crescer e a fortalecer-se durante séculos.
A Ficus elastica, árvore-da-borracha indiana, é muito comum nesta floresta tropical. Cresce sobretudo na margem dos rios, envolvendo rochedos e chão numa rede de raízes aéreas que procuram solo estável em todas as direções, de maneira a sustentar a árvore.
Os khasi aproveitam o potencial destas raízes, dirigindo-as para a outra margem, sustentando-as com uma estrutura de troncos ocos da árvore de bétel, tecendo-as e reforçando-as até a árvore crescer e formar uma ponte com força e tamanho para poder ser atravessada. Ao mesmo tempo, é preciso alimentar as raízes, colocando folhas e casca de árvores nos troncos que as guiam, até conseguirem atingir o solo, do outro lado do rio, e começarem a alimentar-se por si próprias. O processo demora quarenta a cinquenta anos até se conseguir uma ponte grande e sólida, verdadeira obra de amor dedicada às gerações seguintes.
Quanto mais antiga é a árvore, mais forte é a ponte. E cada ano fica mais robusta. Enraizada no chão, aguenta a violência dos rios que descem as montanhas, arrastando pedregulhos do tamanho de casas e invadindo as margens durante semanas – coisas que as vulgares pontes de cimento, ou feitas de árvores mortas, não aguentariam por muito tempo. A estrutura mostra que estas pontes juntam a beleza de uma árvore com a de uma tapeçaria: raízes da grossura de um vime entrelaçam-se com raízes da grossura de um braço, numa complexa teia de texturas e idades; de um lado e do outro do rio, os “pilares” são troncos gigantescos com uma coroa de folhas que não deixa ver o céu.
A ponte é da comunidade
É um costume khasi que cada pessoa que atravessa uma ponte lhe dê mais um nó, ou corrija a direcção das jovens raízes; a ponte pertence à comunidade e aos seus filhos, que aprendem naturalmente a continuar o trabalho. As aldeias parecem perdidas na floresta, já que a tribo não faz grandes clareiras à volta das suas casas que, por tradição, também não são grandes.
Quando vemos a paisagem do alto, poucos telhados se avistam, e quando entramos na floresta encontramos algumas hortas, muitos degraus e pequenos cemitérios silenciosos.
Descobrimos muitas destas pontes vivas nas proximidades de Cherrapunjee. Algumas estão indicadas, e após uma caminhada de três horas, descendo e subindo cerca de três mil degraus, encontramos na aldeia de Nongriat o seu ex libris: Umshiang, uma ponte de dois tabuleiros com cerca de duzentos anos, que quem se dá ao trabalho de vir aqui não resiste a atravessar.
Por baixo passa um rio dividido em poças, por ser a época seca. Apesar da proximidade das casas, só se ouve a água a passar pelos rochedos do leito do rio, e muitos pássaros. As pontes estão ali, como as outras que vi pelo caminho. Presenças sólidas e silenciosas, onde poisam pássaros e borboletas como em qualquer árvore, mesmo que esta tenha a forma de ponte.
É uma construção natural e ao mesmo tempo irreal – uma obra digna de fadas inspiradas, numa numa noite de magia. Mas é isso que acontece quando se constrói a pensar no futuro: em vez de cortar árvores para fazer pontes, os khasi transformaram-nas em pontes. Magia pura – e uma ideia profundamente ecológica, com resultados extraordinários.”
Ana Mineiro é leitora do Green Savers e viajante. Apaixonada por tuaregues, ela é autora do site Comedores de Paisagem. Quer publicar o seu artigo no nosso agregador? Envie-nos o seu texto para info@greensavers.sapo.pt ou cmartinho@gci.pt. Estamos à procura da sua inspiração ou desabafo.
Foto: rajkumar1220 / Creative Commons