A Culpa é da Cegonha



No dia 28 de abril de 2025, uma cegonha teve mais impacto na estabilidade elétrica ibérica do que qualquer despacho técnico ou plano de contingência. O que parecia um simples pouso de uma ave numa linha de muito alta tensão em Espanha resultou num apagão que afetou milhões de consumidores em Portugal e em Espanha. Foi o tipo de evento que, não fosse pela sua gravidade, pareceria saído de um sketch satírico. Mas foi real — e altamente revelador.

A versão oficial ainda está em apuramento, mas os factos preliminares são claros: uma perturbação numa linha crítica desencadeou uma reação em cadeia, levando à perda súbita de produção e à desconexão de várias infraestruturas fundamentais. O sistema elétrico ibérico, integrado e interdependente, revelou-se vulnerável a um incidente singular e inesperado.

Não é a primeira vez que fenómenos naturais ou pequenos incidentes causam grandes disrupções. Mas é precisamente por isso que um sistema moderno deve estar desenhado para resistir — ou, pelo menos, para se recompor com rapidez. O que este episódio evidenciou é que a redundância do sistema, a capacidade de isolar falhas e a preparação para “black starts” continuam a ser mais uma intenção estratégica do que uma realidade operacional.

Redundância, no setor elétrico, não é luxo — é necessidade. Significa ter caminhos alternativos, fontes de reserva, mecanismos de isolamento e recuperação. Um sistema maduro deve conseguir perder uma linha sem perder o controlo. Deve saber reagir sem entrar em colapso.

Neste apagão, o colapso foi rápido e extenso. Portugal, que não foi o ponto de origem da falha, acabou por sofrer as consequências quase imediatas, o que denuncia uma preocupante fragilidade na capacidade de contenção. A lição é clara: é preciso rever os critérios técnicos de segurança, reforçar as interligações e apostar seriamente na inteligência da rede — não apenas na sua extensão.

Felizmente, a recuperação do sistema português foi possível graças à Central da Tapada do Outeiro, equipada com capacidade de “black start” — ou seja, a capacidade de arrancar sem apoio da rede elétrica. Esta funcionalidade, pouco valorizada em tempos normais, mostrou-se absolutamente essencial para reerguer a operação do sistema nacional.

É legítimo perguntar: quantas centrais em Portugal têm esta capacidade? E se a Tapada estivesse indisponível? Teríamos esperado horas, talvez mais, pela reposição da energia. A resiliência de um sistema mede-se precisamente nestes momentos — e é evidente que temos margem para melhorar.

Portugal orgulha-se, e com razão, da elevada penetração de energias renováveis. Em 2024, mais de 70% da eletricidade consumida teve origem em fontes limpas, como a eólica, hídrica e solar. Mas a intermitência destas fontes — dependentes do vento, da chuva e do sol — obriga à manutenção de centrais de base, estáveis e controláveis, que garantam a resposta em situações de emergência.

As centrais térmicas, muitas vezes vistas como um mal necessário, continuam a ser essenciais para a segurança do sistema. E as hídricas, sobretudo as reversíveis com capacidade de bombagem, desempenham um papel crítico como “bateria natural” do país. Apostar no 100% renovável sem garantir a estabilidade e capacidade de reação do sistema é, no mínimo, imprudente.

Dizer que a culpa é da cegonha é cómodo. Mas é também uma forma de desresponsabilização. A verdadeira culpa está num sistema que não se preparou devidamente, numa arquitetura que não previu o imprevisto, e numa gestão que talvez se tenha deixado embalar pela confiança num futuro renovável sem garantir as bases da resiliência.

Este apagão deve ser um ponto de viragem — não para demonizar a cegonha, mas para reconhecer que o setor elétrico precisa de mais do que boas intenções: precisa de estratégia, investimento e preparação técnica. Porque da próxima vez, pode não ser uma ave. E o impacto pode ser muito mais grave.

 






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