“A falta de higiene urbana desmobiliza as pessoas”
“Junta-te ao Gervásio” é o apelo que a Sociedade Ponto Verde (SPV) relança aos portugueses para que se mobilizem em torno da reciclagem de embalagens, contribuam para a transformação dos resíduos em novas matérias-primas e despertem para os impactos positivos dessa ação na economia nacional, na sua saúde e na longevidade do planeta.
Depois de em 2023 ter recebido 173 propostas e premiado as melhores práticas sustentáveis relacionadas com a reciclagem e a promoção de uma economia circular, a SPV retoma a iniciativa na expectativa de ampliar o seu campo de ação e envolver ainda mais cidadãos, juntas de freguesia, entidades e associações, agentes ativos na melhoria e diferenciação das suas comunidades e os principais destinatários do projeto.
Para celebrar a segunda edição do programa “Junta-te ao Gervásio” reuniram, no dia 29 de outubro nas Cavalariças do Hotel Pestana Palace, em Lisboa, várias personalidades, entre membros do governo, stakeholders e especialistas para uma conversa que não só reforçou a “call to action” subjacente à criação do prémio e ao desígnio comum de um futuro mais verde e sustentável, como marcou a data de início das candidaturas, abertas ao público até 25 de janeiro de 2025.
Mais um passo no compromisso para com o ambiente
João Rui Ferreira, secretário de Estado da Economia começou por enaltecer o trabalho das juntas de freguesia, pela relação de proximidade e responsabilidade que têm para com os fregueses, colocando a tónica na reciclagem como tema crucial nos desafios da transição de uma economia linear para um modelo circular, em que as matérias-primas extraídas, transformadas e utilizadas geram novos produtos que são reintroduzidos na cadeia de valor. Um processo inegavelmente relevante do ponto de vista ambiental e do planeta e decisivo também em determinados setores da economia que, sem essa capacidade de reinvenção, arriscam a progressão da sua cadeia de valor.
João Rui Ferreira apontou a responsabilidade acrescida que os órgãos de governação têm na avaliação dos modelos de gestão ambiental e alocação dos incentivos, promovendo reajustes sempre que necessário, relembrando que: “uma parte crucial está nas mãos das pessoas, o cidadão é um elemento integrante do processo”.
E se o civismo ambiental é um dado adquirido nas gerações mais novas, como refere “a reciclagem, enquanto conceito que acompanha a educação das crianças desde cedo, não é um extra ou um add-on, já faz parte da sua formação cívica”, é preciso não descurar a sensibilização das restantes faixas etárias, sendo que ainda são as crianças da família que, muitas vezes, dão o alerta para os erros de reciclagem.
Para o responsável pela secretaria de Estado da Economia, iniciativas como a do “Junta-te ao Gervásio”, representam mais um passo no compromisso para com o ambiente e fortalecem a noção de mobilização global: “reconhecer os que fazem melhor é reconhecer o mérito e a cultura de excelência em vez de uma visão penalizadora. Reconhecer o trabalho de alguém impulsiona outros a fazer melhor também”, conclui.
Premiação traduz o ADN da Sociedade Ponto Verde
Ana Trigo Morais, CEO da Sociedade Ponto Verde, destaca o prémio como exemplo do que é fundamental fazer para atingirmos as metas de reciclagem do país, sempre com uma atitude colaborativa: “esta premiação traduz o ADN da Sociedade Ponto Verde ao demonstrar a proximidade às comunidades, é uma iniciativa que veio para ficar. Em 2025 seremos obrigados a reciclar pelo menos 65% das embalagens colocadas no mercado. Os dados dizem que estamos aquém desta meta, precisamos do compromisso de todos para a cumprir, é uma missão pública que exige empenho, imaginação, criatividade e inovação”.
Na sua perspetiva, os destinatários do programa são pivots essenciais nesta missão conjunta: “as juntas de freguesia que, pelas suas competências vivem o dia a dia no terreno, as empresas e demais entidades corporativas pelo seu papel ao longo da cadeia, e os cidadãos por terem o último gesto de separação e deposição dos resíduos no ecoponto”.
Numa era de transições em áreas que vão da economia à energia, passando pela digitalização e automação, “entramos numa etapa na vida do planeta que exige novas abordagens e atitudes, mais inovação tecnológica, mais criatividade para envolver os cidadãos e que obriga as pessoas e as empresas a gerirem melhor os recursos naturais”, sendo por isso tão importante procurar “soluções que melhorem os serviços em conveniência e qualidade, que facilitem o processo, desde a recolha dos resíduos aos centros de tratamento dos mesmos”, assinala.
Além do programa “Junta-te ao Gervásio”, protagonizado por um macaco feito de diversas embalagens que sabe reciclar e ensina como fazê-lo, a Sociedade Ponto Verde lançou a Academia Ponto Verde, uma plataforma pedagógica que, ao longo do ano, irá percorrer cerca de 300 escolas num road-show de norte a sul do país e ilhas envolvendo mais de 13 mil alunos nos temas da reciclagem.
Ricardo Sacoto Lagoa, coordenador de marketing e comunicação da SPV não tem dúvidas de que Portugal é um país comprometido com a valorização dos materiais e recursos e que projetos como este contribuem para o desenvolvimento e solidificação de boas práticas na reciclagem, “queremos escalar o prémio e inspirar outros, criando um círculo virtuoso em torno destas temáticas.
Para que tal se concretize, “a proximidade com parceiros, com os sistemas de gestão de resíduos e entidades responsáveis é fundamental. É através dos parceiros que conseguimos chegar aos cidadãos, à rua, ecoponto a ecoponto”.
70% dos portugueses faz a separação de resíduos
Um estudo académico recente indica que 70% dos portugueses faz a separação de resíduos. Para Ricardo Sacoto Lagoa, “é um número robusto e interessante, mas do outro lado há 30% que ainda não faz. Embora de 70 a 100 seja um caminho mais curto, estamos na última milha, a mais trabalhosa”. Os motivos para haver quem ainda não recicle são vários: “pessoas que residem em zonas do país com ecopontos mais longínquos, populações com idades mais avançada, a existência de limitações físicas, não terem informação disponível ou não acreditarem no sistema”.
Outro inquérito revelou quem os cidadãos consideram ser o principal responsável pela reciclagem das embalagens. No topo da lista está o poder local, com 55% de respostas, e no fim o governo, com 30%. Cerca de 31% dos cidadãos consideram que a responsabilidade recai nos seus pares. O coordenador de marketing corrobora: “as pessoas contam com o poder local. É com este que esperam resolver os problemas do quotidiano, aqueles que se passam na sua rua.
Esta posição enquadra projetos como o ‘Junta-te ao Gervásio’, que tem grande foco na proximidade”. O prémio da segunda edição vai permitir replicar a mensagem do projeto em escolas, associações, empresas, serviços municipais: “o kit tecnológico do Gervásio é composto por uma televisão, um conjunto de tablets e um computador portátil com conteúdos – explicações em vídeo, jogos, etc. – de como funciona o sistema, como é que se separam as embalagens e o porquê de ser preciso reciclar”.
Em complemento, haverá 3 prémios monetários atribuídos a entidades de proximidade e cidadania social e 2 menções honrosas. As expectativas para este ano são altas “queremos ter pelo menos 200 projetos a concurso e que sejam propostas que ajudem a inovar, inspirar, reciclar, que criem impacto”.
Mas será que o conceito de reciclagem está enraizado na sociedade portuguesa? Ana Trigo Morais considera que sim, embora aponte a necessidade de melhores resultados “nota-se um salto qualitativo, mas falta melhorar o serviço ao cidadão, torna-lo mais conveniente. Reciclar tem de ser um gesto natural, não uma dor de cabeça, e para que os cidadãos respondam positivamente temos de criar níveis diferenciados de serviço. Não é igual reciclar em Trás-os-Montes ou no Algarve nas épocas de pico do turismo”.
O resíduo não é lixo
Outro ponto-chave é mostrar ao cidadão que o resíduo não é lixo: “as embalagens correspondem a pouco mais de 20% dos resíduos, no entanto, fica o alerta, estamos a crescer na quantidade de resíduos que vão para aterro. Temos de impactar o comportamento dos cidadãos para que percebam que os resíduos têm um valor económico e ambiental e que os seus gestos têm reflexos na sua carteira”.
Luís Newton, do Conselho Diretivo da ANAFRE, explica que até 2017/2018 se observou uma rápida evolução dos valores associados à reciclagem, verificando-se, entretanto, uma estagnação desse crescimento.
Para o vogal da Associação, que é também presidente da Junta de Freguesia da Estrela, em Lisboa, o desafio está na operação: “temos de mostrar às pessoas que é tão fácil depositar embalagens como resíduos orgânicos. Não podemos permitir que os ecopontos existentes estejam repletos. Quando isso acontece, os resíduos colocados ao lado são considerados contaminados e não entram no circuito, há uma descontinuidade do modelo operacional e defrauda-se o cumprimento do exercício de cidadania”.
A seu ver “falta investir na educação dos decisores, dar ferramentas para garantir a eficiência e a eficácia das operações, além, claro, de ações de sensibilização contínua dos cidadãos”.
Pedro Morais Soares, presidente da União das Freguesias de Cascais e Estoril, realça que “muita gente desconhece os efeitos das suas ações no ambiente” sugerindo, a par da educação ambiental, a implementação de iniciativas-piloto que premeiem as boas práticas de reciclagem através de incentivos como descontos nas tarifas de estacionamento ou na fatura da água.
Processo de renovação é finito
Com o objetivo de que a reciclagem se torne processo residual a prazo, Pedro Morais Soares adverte para o facto de as embalagens poderem ser recicladas, em média, entre 3 a 5 vezes antes de lhes ser decretado o fim de vida: “o processo de renovação é finito, acabam sempre por se tornar resíduos”.
Uma forma de fintar o problema, ou prolongar a vida do produto, é apostar no eco design, colocando no mercado embalagens mais duradouras: “deve haver mais investimento nesta área da indústria e pensarmos mais à frente”.
Luísa Schmidt observa um “défice social enorme, de conhecimento, de importância do que está em causa a nível económico e ambiental”. A especialista aponta a viragem dos anos 90 para os 2000 como o grande salto qualitativo, pelo “investimento a vários níveis, o envolvimento das famílias e das escolas, a formação de professores e funcionários”.
Desde então, nota um arrefecimento que só se contraria com “mais proximidade, diversidade dos agentes de mudança, campanhas diferenciadas. Acopladas a estas abordagens, as pessoas têm de perceber que há vantagens económicas associadas, como a criação de emprego, de empresas, de poupança, a redução da poluição ambiental e dos seus efeitos nocivos na saúde. Têm de compreender que há valor acrescido no ato simples de reciclar O elo mais fraco continua a ser as pessoas”, destaca.
Uma via complementar para reaquecer a importância destes temas é tentar transformar as escolas em laboratórios de sustentabilidade a vários níveis, “os alunos serem ativos nesta transição e beneficiarem com isso, até nas suas classificações. Estas são as matérias que os alunos mais valorizam. Acresce o facto de as crianças serem correntes de transmissão fortíssima, são meios de mudança de comportamento dentro das famílias”.
Há falta de literacia
A investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa destaca ainda a mediação como outro vetor significativo: “as pessoas em Portugal precisam de interação direta, somos uma sociedade coloquial e há falta de literacia, é preciso mediadores que levem o conhecimento à diversidade, ao interior, ao litoral, aos centros urbanos onde há idosos”, sugere.
Mas até que ponto esta geração está disposta a investir para garantir melhor qualidade de vida às gerações seguintes? Na opinião de Ana Trigo Morais é preciso desenvolver novos modelos para servir o consumidor. Empresas que escolhem embalagens mais amigas do ambiente, mais compatíveis com o sistema de reciclagem e com melhor uso de recursos, estarão mais adaptadas. As que não respeitem o design for recycling têm de pagar mais porque o custo ambiental é maior: “as empresas estão a preparar-se para o que aí vem”.
A CEO da SPV assinala ainda o crescente empoderamento do consumidor que é cada vez mais conhecedor, interessado, exige mais transparência e compliance ambiental “o passaporte digital do produto vai responder a algumas destas questões”.
Certo é que o tema da reciclagem não se esgota no consumidor “há a realidade pós-consumo, a recolha e o tratamento para se circularizar a economia. Temos de chamar a inovação e a tecnologia porque é isso que vai unir todas as partes: quem produz, coloca no mercado, utiliza, descarta, recicla, trata e recoloca no circuito”.
Ana Trigo Morais acredita que todas as empresas querem ser sustentáveis e o mais verde possível, só que não só o conhecimento para isso nem sempre está lá como há uma parte que depende das políticas públicas: “as medidas têm existido, o timing às vezes não ajuda… e pode acontecer um delay entre a definição de uma política a nível de Bruxelas, o trazê-la para Portugal, legislá-la e criar suporte para a fazer chegar às empresas. A cooperação é importante, podemos não concordar sempre mas estamos todos empenhados em fazer melhor”.
Há perdas de economia e dinheiro quando não se recicla
Para terminar, Luísa Schmidt referiu como potencialmente desincentivador do ato de separação de resíduos o facto de alguns ecopontos estarem, por vezes, transformados em micro lixeiras: “a falta de higiene urbana desmobiliza as pessoas”.
Na sua perspetiva, é preciso não só cuidar do espaço urbano como credibilizar a imagem do sistema e criar nas pessoas a ideia de ciclo, “há perdas de economia e dinheiro quando não se recicla, criamos poluição e comprometemos o futuro das próximas gerações. O lixo é um recurso”.
A palavra final coube ao secretário de Estado do Ambiente, Emídio Sousa, que, através de um depoimento em vídeo, se referiu ao tratamento dos resíduos como um dos maiores desafios que temos enquanto sociedade, reforçando o papel do esforço coletivo no cumprimento dos objetivos de desenvolvimento sustentável perante os atuais indicadores pouco favoráveis a que tal aconteça nos prazos estipulados.
O prémio “Junta-te ao Gervásio” é “mais um movimento importante na diminuição da nossa pegada e na reutilização dos materiais. Todas as iniciativas de consciencialização são bem-vindas”. O responsável por secretariar um tópico tão decisivo na agenda nacional e internacional congratulou a SPV pelos 27 anos de “empenho permanente na busca de melhores soluções, seja sob a forma de recolha e tratamento de resíduos seja sob a forma de educação ambiental”, deixando o alerta de que “o nosso modo de vida tem de ser compatível com a vida do planeta. Esta é a base do desenvolvimento sustentável”.
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