Água na Agricultura: Entre o Custo da Abundância e o Preço da Escassez

Por José Rafael Marques da Silva, Professor Catedrático da Universidade de Évora, investigador do MED e do CHANGE, CTO da Agroinsider
Aqueles que têm acesso regular e abundante à água afirmam frequentemente que o seu custo é elevado. Por outro lado, quem dela não dispõe afirma que estaria disposto a pagar qualquer valor para a poder utilizar. Este paradoxo sintetiza o desafio central da água na agricultura contemporânea: à medida que os recursos hídricos se tornam mais escassos, os seus utilizadores são chamados a repensar a forma como atribuem valor a um recurso essencial e, muitas vezes, subvalorizado.
Num contexto de alterações climáticas, aumento da frequência de secas e pressão crescente sobre os sistemas alimentares, a água deixou de ser apenas um fator de produção agrícola, tornou-se num ativo estratégico e num critério de viabilidade produtiva. Este artigo propõe uma reflexão sobre o valor da água, as suas dimensões económica, ecológica e social, e os caminhos para a sua gestão eficiente e justa.
A água tem um valor multifacetado. Em termos económicos, representa um custo efetivo para os agricultores: captação, armazenamento, distribuição e energia estão entre os principais fatores de despesa. No entanto, esse custo raramente reflete o verdadeiro valor do recurso, particularmente em regiões onde os sistemas de regadio são subvencionados ou os direitos de utilização são historicamente atribuídos.
Do ponto de vista ecológico, a água sustenta os ecossistemas agrícolas e naturais. A sobreexploração de lençóis freáticos, a contaminação por fertilizantes e pesticidas, e o desvio de caudais afetam negativamente a biodiversidade e os serviços ecossistémicos.
Culturalmente, a água está no centro de saberes e práticas tradicionais. Em várias regiões do Mediterrâneo, sistemas como as levadas, as noras ou os poços comunitários ilustram uma relação ancestral com a água baseada na cooperação e na eficiência.
A transição para uma agricultura resiliente à escassez hídrica exige a adoção de tecnologias que permitam aumentar a eficiência da utilização da água. A agricultura de precisão oferece soluções como sensores de humidade, sistemas de rega gota-a-gota e plataformas digitais de apoio à decisão baseadas em dados meteorológicos e imagens de satélite.
Drones e sensores multiespectrais são cada vez mais usados para monitorizar o estado hídrico das culturas, permitindo ajustar a rega com maior critério e diferenciação. Em muitas regiões, estas tecnologias já demonstraram reduções significativas no consumo de água e no custo por unidade produzida.
A água é também uma questão de equidade. As diferenças no acesso a fontes hídricas entre pequenas explorações familiares e grandes agroindústrias têm vindo a acentuar desigualdades socioeconómicas. O planeamento hídrico raramente integra mecanismos de justiça distributiva, e os direitos de utilização nem sempre refletem a realidade atual dos territórios.
Além disso, os conflitos entre usos agrícolas, urbanos e turísticos intensificam-se, especialmente em regiões costeiras ou em bacias hidrográficas sobrecarregadas. Políticas de justiça hídrica devem promover uma gestão inclusiva e participada, assegurando que todos os intervenientes tenham voz e que o bem comum prevaleça.
A reforma dos sistemas de rega e a adoção de tecnologias eficientes requerem enquadramento institucional e financiamento adequado. Planos Estratégicos da PAC, programas nacionais e fundos europeus têm um papel decisivo na modernização da agricultura e na adaptação inteligente à escassez hídrica.
A criação de instrumentos económicos, como tarifas inversamente proporcionais à produtividade da água (m3 por serviço produzido), créditos hídricos e seguros baseados em dados remotos, pode incentivar a eficiência e penalizar o desperdício. Mas é essencial garantir que estas medidas são acompanhadas de apoio técnico altamente qualificado e de uma visão de longo prazo baseada na resiliência climática.
A sustentabilidade hídrica depende, em última instância, de uma relação mais harmónica com os ciclos naturais. Soluções baseadas na natureza, como zonas de retenção natural, recarga de aquíferos e restauração de zonas ribeirinhas, podem aumentar a resiliência às alterações climáticas.
As paisagens em mosaico, que integram agricultura, floresta e áreas de conservação, revelam-se particularmente eficazes na retenção de água e na prevenção da degradação do solo. A combinação entre conhecimento tradicional e ciência moderna pode ser a chave para regenerar os sistemas agrícolas e restaurar o equilíbrio hídrico, bem como, a criação de instrumentos financeiros (créditos hídricos) proporcionais à maior retenção de água e à menor degradação do solo.
A água na agricultura é mais do que uma questão técnica ou económica. É uma questão de soberania, de sustentabilidade e de justiça social.
A transição para uma agricultura resiliente requer uma nova cultura da água: baseada na eficiência, na cooperação, na inovação e no respeito pelos ciclos naturais.
Essa cultura não se impõe, constrói-se. Gota a gota.