Alguns monstros mitológicos da literatura antiga podem, afinal, ser baleias a caçar peixes
As mitologias antigas de várias culturas estão repletas de criaturas grotescas que rumam os oceanos, que afundam navios e devoram marinheiros. No entanto, muitas das descrições de alguns desses seres fantásticos feitas pelos navegadores podem, no final de contas, ser descrições de um comportamento das baleias que só foi descoberto pelos cientistas há pouco mais de uma década.
Em 2011, ao largo da costa nordeste de Vancouver Island, no Canadá, os investigadores observaram baleias-de-bossa (Megaptera novaeangliae) a flutuarem na superfície da água, praticamente imóveis, com as suas grandes bocas escancaradas, com a mandíbula superior a erguer-se no ar como o pescoço de alguma criatura marinha aterradora e a mandíbula inferior escondida sob a água.
Conhecida como ‘alimentação por armadilhagem’ (ou trap feeding, em inglês), esta técnica, creem os cientistas, permite às baleias levar as presas, como peixes e lulas, a pensarem que a boca aberta se trata, afinal, de um abrigo onde se podem proteger dos predadores. Uma vez lá dentro, as baleias fecham a boca e engolem as presas. Desde então, esta tática foi também identificada em 14 outras espécies de baleia.
No entanto, uma equipa de cientistas sociais da Flinders University, na Austrália, acredita que este comportamento, apesar de novo para a Ciência moderna, já tinha sido observado na Antiguidade e pode ter estado na origem dos mitos de criaturas monstruosas, como a Hafgufa, o peixe do tamanho de uma ilha da mitologia nórdica, ou a tartaruga gigante da mitologia grega conhecida como Aspidochelone.
Assim, os investigadores consideram que os primeiros registos dessa técnica de caça das baleias foram, afinal, feitos há 1800 anos.
“Quando me apercebi de que a descrição nórdica da Hafgufa era muito semelhante ao comportamento de alimentação por armadilhagem das baleias, pensei que era apenas uma coincidência interessante”, explica John McCarthy, principal autor do artigo publicado na revista ‘Marine Mammal Science’.
No entanto, depois de debater o assunto com colegas especializados em literatura medieval, o investigador percebeu que “as versões mais antigas deste mitos não descrevem quaisquer monstros marinhos, mas são explícitos na descrição de um tipo de baleia”.
Debruçando-se sobre um conjunto de textos mitológicos nórdicos do século XIII, conhecido como ‘King’s Mirror’, que terá sido criado para o rei norueguês Hákon Hákonarson, os cientistas sociais perceberem que esses textos contém descrições de até 26 animais reais.
Nesses texto, a Hafgufa é descrita como um monstro que se alimenta ao abrir a sua enorme boca para atrair peixes, aprisionando-os e engolindo-os de um só trago, um comportamento muito semelhante ao que foi observado há apenas uma década nas baleias-de-bossa.
Depois dessa descoberta, os investigadores decidiram recuar ainda mais no tempo, até à Grécia Antiga. Na obra latina ‘Physiologus’, são compilados textos que descrevem várias criaturas lendárias, entre elas a Aspidochelone, sobre a qual é escrito que, quando está com fome, abre a boca e emana um odor semelhante a comida que atrai peixes. Com a boca cheia de presas, a criatura fecha-a num abrir e fechar de olhos, engolindo os peixes.
Apesar de os relatos antigos não permitirem identificar a espécie de animal descrita nem onde foi observada, estes académicos acreditam que são descrições precisas da técnica de captura de presas usada por algumas espécies de baleias nos dias de hoje.
Então, se se trata de um comportamento tão antigo, por que razão só em 2011 foi descrito pelos cientistas? Os autores deste artigo sugerem que a recuperação das populações de baleias, depois de séculos de caça intensiva, permitiu redescobrir esse comportamento. No entanto, não afastam a possibilidade de as baleias, no passado, terem abandonado essa técnica e de só agora a terem recuperado.
“Pode apenas ter sido observado mais recentemente, porque existem mais baleias agora do que nas últimas décadas”, explica John McCarthy”, ou porque está a ser mais frequentemente usado pelas baleias”. O cientista social considera ainda que, por haver mais baleias, há também maior competição por alimento, o que pode levar a que os cetáceos adotem novas técnicas de captura de presas.