Apagão: O que é que precisa de mudar para que não volte a acontecer?

Um corte de energia maciço na Península Ibérica deixou milhões de pessoas sem eletricidade. Especialistas ouvidos pelo Science Media Centre, Marcial González de Armas, engenheiro eletrotécnico no sector e Álvaro De La Puente Gil, professor no Departamento de Engenharia Eléctrica da Faculdade de Engenharia de Minas da Universidade de León, explicam porque é que aconteceu, se poderá voltar a ocorrer e o que fazer para que não volte a acontecer.
– Como é que se explica que tenha acontecido uma coisa destas?
Marcial González de Armas – É uma combinação de incidentes na rede elétrica. Uma sucessão de fatores em cascata ou conjuntos que provocaram o colapso das tensões na rede. Ainda é muito cedo para conhecer as causas e teremos de aguardar a informação oficial da Red Eléctrica de España. Este tipo de combinação de fatores é altamente improvável numa rede tão forte, tão robusta e tão fiável como a rede elétrica espanhola e europeia, apesar de, paradoxalmente, hoje termos tido esta falha”.
Álvaro De La Puente Gil – Um “zero absoluto” é uma situação extremamente grave em que a rede elétrica perde completamente a tensão, ou seja, todo o sistema se desliga. É como se fosse acionado um interrutor que desliga subitamente todo o fornecimento de eletricidade. Este apagão generalizado na Península Ibérica ocorreu porque, em apenas cinco segundos, mais de metade da capacidade de produção de eletricidade foi perdida. O sistema, incapaz de equilibrar uma queda tão acentuada entre a produção e a procura, protegeu-se desligando-se automaticamente, tanto internamente como do resto da rede europeia. Trata-se de uma medida de auto-proteção que, paradoxalmente, implica um corte total”.
– Era improvável que acontecesse?
Marcial González de Armas – O sistema elétrico europeu e o espanhol são extremamente robustos e uma falha como a que ocorreu hoje é extremamente improvável. O sistema funciona estando sempre preparado para a pior falha possível, pelo que um evento como o de hoje deve ser multifatorial, algo causado por muitos eventos críticos em conjunto. Apesar disso, o sistema sabe o que fazer nestes casos e o restabelecimento do sistema está a decorrer como previsto”.
Álvaro De La Puente Gil – Sim, este tipo de acontecimento é considerado altamente improvável. A rede elétrica espanhola dispõe de múltiplos mecanismos e protocolos de segurança que atuam automaticamente para evitar precisamente este tipo de colapso. No entanto, a velocidade e a magnitude da perda de produção que ocorreu hoje excederam as margens de manobra habituais. Até mesmo especialistas do próprio operador do sistema (Red Eléctrica) já haviam descartado no passado a possibilidade de um “zero absoluto” na península. Isto demonstra que, embora o sistema esteja preparado para muitas contingências, não é infalível”.
-Porque é que isto aconteceu em Espanha continental e é uma região mais vulnerável da Europa?
Marcial González de Armas – A Espanha (ou melhor, o sistema elétrico peninsular Espanha-Portugal), devido à sua baixa capacidade de interconexão com o resto da Europa (apenas uma pequena interconexão com a França), é considerada em muitos casos um sistema energético isolado. Este facto torna-o mais vulnerável a uma combinação de eventos como o que vivemos hoje, apesar de um zero energético ser altamente improvável.
Álvaro De La Puente Gil – A Península Ibérica tem uma posição peculiar no sistema elétrico europeu porque está mal ligada ao resto do continente. As suas interconexões elétricas são limitadas, pelo que, na prática, funciona quase como uma ilha energética. Este facto torna-o mais vulnerável a perturbações internas: se ocorrer uma falha grave no sistema peninsular, este não pode receber apoio externo suficiente para se estabilizar. Além disso, nos últimos anos, registou-se um grande aumento da presença de energias renováveis, como a solar e a eólica, que são variáveis e dependem das condições meteorológicas. Este facto pode tornar o sistema mais difícil de controlar em tempo real, sem uma reserva ou armazenamento suficientes”.
-Poderá voltar a acontecer nos próximos dias e a médio prazo?
Marcial González de Armas – A curto, médio e longo prazo, é muito improvável que este tipo de acontecimento se repita, devido aos fatores acima referidos. O facto de o sistema estar a ser devidamente restabelecido significa que o sistema está sob controlo e que podemos continuar a confiar nos padrões de qualidade muito elevados da rede elétrica”.
Álvaro De La Puente Gil – Nos próximos dias é pouco provável que se repita uma falha da mesma magnitude, tanto mais que o sistema estará agora em alerta máximo. A curto prazo, o operador adotará medidas de prevenção muito rigorosas. No entanto, a médio prazo, se as causas exatas não forem bem compreendidas e as eventuais falhas estruturais não forem corrigidas, o risco não desaparece completamente. É essencial investigar exaustivamente o que causou uma perda de produção tão rápida, a fim de evitar que se repita”.
-O que é que precisa de mudar para que não volte a acontecer?
Marcial González de Armas – Sem dúvida que a análise das causas deste acontecimento ajudar-nos-á a evitar que se repita no futuro. Para isso, temos de aguardar o relatório oficial do operador do sistema (Red Eléctrica de España). Pelo que estamos a ver hoje no reabastecimento do sistema, apostar mais nas energias renováveis e estabelecer novos protocolos e procedimentos de operação da rede que incluam mais as energias renováveis na participação ativa da gestão da rede é crucial para continuar a construir uma das redes mais fiáveis e robustas do mundo, como já estamos a fazer”.
Álvaro De La Puente Gil – O mais importante é aumentar as interconexões elétricas com a França e outros países europeus, para que a península deixe de estar tão isolada”. É também necessário melhorar a flexibilidade do sistema elétrico, incorporando mais armazenamento (como baterias ou sistemas de bombagem hidráulica) que possam compensar a variabilidade das energias renováveis. Além disso, os sistemas de controlo e previsão devem ser reforçados e devem ser realizadas simulações mais exigentes para contemplar cenários extremos como o que vivemos hoje. Tudo isto exige investimento, planeamento e uma estratégia clara para uma transição energética segura”.