Direitos Humanos: até o termo LGBT é preconceituoso e limitador
Por Camel Toe
@dragcameltoe
O preconceito em Portugal é sentido em expressões do dia a dia como “trabalhei como um preto” ou “não sejas tão menina”, “porta-te como um homem”, “conduzes como uma mulher”.
Como sente o preconceito hoje em Portugal?
Portugal é um país exemplar em termos legais. Isso eu posso afirmar. No entanto, o que a lei “manda” não é o que se vive no dia a dia. O preconceito é sentido no íntimo das relações. E está presente em todos nós, eu inclusive. Quanto mais converso sobre estas temáticas mais me apercebo como o preconceito é estrutural e está em imensas ações diárias, que nos foram passadas com uma naturalidade e justificação de serem “culturais”. Esta desconstrução é essencial e deve começar a ser mais pensada e falada para assim se conseguir desconstruir preconceitos.
O preconceito em Portugal é sentido em expressões como “trabalhei como um preto” ou “não sejas tão menina”, “porta-te como um homem”, “conduzes como uma mulher”. São tantas que podia estar aqui a escrever um livro somente sobre o preconceito nos ditos do dia a dia e as suas consequências na construção da identidade individual. O preconceito está dentro de cada um de nós e não somente no outro. Neste momento, estou numa introspeção sobre os preconceitos que me foram passados e como os vivo como verdades sem me aperceber. Como comunidade LGBT – deixo aqui um reparo, porque até este termo é preconceituoso e limitador, e por isso prefiro a palavra “queer”, que é muito mais inclusiva e não preconceituosa – melhor ainda, como comunidade queer, temos que começar a desconstruir os preconceitos normativos que ainda arrastamos para a nossa cultura, e que continuamos, assim, a alimentar e a vivê-los como se fossem a única forma de existência.
Que tipo de preconceito já sofreu direta ou indiretamente?
Na minha vida como ativista queer apercebi-me que o preconceito mais permanente e destrutivo é o odio ao feminino. Importa destacar aqui que o feminino não é só referente às mulheres; o feminino é uma energia que se tem e está em todos nós. Todos somos femininos e masculinos, mas vivemos numa cultura de ódio ao feminino tão estrutural que estamos numa toxicidade mortal. Todos os dias assistimos ao femicídio com uma naturalidade horrível. Toda a minha vida vi os seres femininos a serem humilhados, rejeitados e assassinados. Eu próprio fui vítima constante de ataques por ser mais feminino do que seria aceitável. Ser Drag Queen permitiu-me apaixonar-me pelo meu lado feminino e dar-lhe o empoderamento que merece e tem direito de ter. O espaço dos seres femininos foi roubado e deve ser reocupado, e isto é urgente. Vivemos uma sociedade com uma masculinidade tóxica, onde a violência é glorificada e o amor é visto como fraqueza, e por isso descartado como desnecessário. Desafio quem esteja a ler que fique mais atento a certas expressões e atitudes que tem para consigo mesmo. Não se foquem no outro. Vejam-se ao espelho e pensem como rejeitaram o feminino que existe em vocês, ao ponto de o apagarem da possibilidade de existir. É urgente sermos mais femininos.
Tem alguma lembrança antiga de um hábito social que era pior e hoje vemos um avanço, graças ao que tem sido conquistado em termos de direitos LGBT?
O principal avanço que estamos a fazer como comunidade é abrir conversas. Cada vez mais conversamos sobre estas temáticas e damos voz a quem esteve em silêncio durante tantos séculos. Aliás, foram silenciados, mas nunca estiveram calados. Eu quero ver cada vez mais diferentes narrativas vindas de diferentes pessoas. Não podemos ter sempre as mesmas pessoas a falar sobre estas temáticas. Eu quero ver pessoas trans a falar das suas experiências, pessoas lésbias, pessoas não-binárias, e tantas outras que são mantidas no backstage e nunca falam na primeira pessoa sobre a sua experiência.
Não podemos continuar a ver as minhas imagens a falar sobre estes temas e outros quaisquer temas. Eu quero ver um homens trans a conversar sobre banalidades do dia-a-dia no programa da tarde, não só sobre como é ser uma homem trans. E isto que se repita por todas as orientações sexuais e identidade de género possíveis, que são infinitas. Enquanto as pessoas queersó forem incluídas nas conversas para falarem do porquê de serem queervai sempre passar a ideia de que não somos mais nada. E nós somos a ida ao mercado para comprar fruta, a ida ao médico porque temos uma gripe, o ir buscar o filho ao colégio, a pessoa que não consegue arranjar casa pelos preços elevados, a pessoa que faz música, a pessoa que tem um cargo numa empresa. Somos todas as coisas possíveis a qualquer pessoa heterossexual e cisgénera.
Em relação às gerações mais novas, que têm acesso a um universo mais alargado de informações, acha que o que está a ser veiculado está a ajudar no que diz respeito ao preconceito e direitos LGBT?
Vivemos sem dúvida a era da informação. Somos todos os dias bombardeados com informação e é cada vez mais fácil procurarmos informação e acedermos a ela. As gerações mais novas refletem isso e felizmente já estão no processo de desconstrução destas definições a que somos submetidos pela nossa cultura. Já estão mais conscientes das possibilidades de existência e já as experienciam cada vez mais cedo. Certos preconceitos já não fazem parte do vocabulário e já os rejeitam com uma naturalidade encorajadora.
Neste momento, é essencial conseguirmos educar esta gerações a saberem procurar a informação e a saber filtrar as informações que lhes chegam por quaisquer meios de comunicação existentes. Isto sim é muito importante, porque de momento existe muita informação deturpada que pode conduzir por caminhos destrutivos.
Como vê as gerações LGBT mais velhas no que toca ao preconceito relativamente à própria comunidade?
As gerações mais velhas são o total reflexo da vida que tiveram e isto não é certo ou errado. Temos que respeitar e reconhecer que, tal como nós, eles fizeram o melhor que conseguiram e fazem o que acham mais correto. As gerações mais velhas, com algumas exceções, viveram muito mais de perto os preconceitos e por consequência acreditam mais neles e aplicam-nos no seu dia a dia. Podemos aprender muito com eles e eles connosco. Para isso, temos de criar mentes mais abertas a ideias diferentes e criar discursos mais construtivos. Eu cada vez mais pratico o discurso construtivo mesmo em situações de total discordância. É um exercício muito necessário, principalmente em nós, comunidade queer.
A internet foi algo que veio para ajudar a dar voz às pessoas LGBT ou a espelhar mais preconceitos?
A internet é um espaço bastante livre, e como em qualquer situação de liberdade as possibilidades são imensas. Sendo assim, os preconceitos tanto podem ser desconstruídos como podem ser reconstruídos e espalhados com maior facilidade. O essencial aqui não é o que é feito com a internet, mas sim focar a necessidade de educar as pessoas para o perigo que pode ser a internet e como se devem proteger.
Como imagina, ou espera, que sejam os próximos 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos?
Já é um feito incrível termos uma Declaração Dos Direitos Humanos e haver cada vez mais pessoas atentas e alertadas para esta necessidade. Gostava de deixar uma conclusão mais positiva. Vivemos uma situação muito negativa no momento, mas sinceramente quando foi a última vez que ouviram alguém dizer que estava tudo bem? Quando tivemos boas notícias? Quem não ouviu a vida toda “este mundo é de loucas! Está toda gente louca! O mundo vai acabar!”?
Eu gostava que nos focássemos na incrível evolução que temos vindo a ter e na aprendizagem que temos tido como ser humanos com os erros que já foram cometidos. Na minha opinião, nunca estivemos tão conscientes para o respeito da vida e focados no amor. Ainda não é suficiente? Não. Mas já foi muito menos e se formas a pensar nos últimos 70 anos, conseguimos perceber com facilidade o que crescemos. E é assim que eu espero que sejam os próximos 70 anos da Declaração dos Direitos Humanos. Que daqui a 70 anos tenhamos mais consciência e amor. Acredito tanto nisto que tenho lágrimas nos olhos enquanto termino escrever.