Direitos humanos: comparado com a Europa, Portugal está a meio da tabela



A Aministia Internacional luta pelos direitos humanos desde 1961. A propósito dos 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, estivemos à conversa com Pedro Neto, Diretor Executivo da Amnistia Internacional Portugal, onde exerce este cargo desde Maio de 2016.

 

Os portugueses têm noção dos seus direitos humanos? Ou a Declaração Universal dos Direitos Humanos é ainda algo desconhecido entre a população em geral?
Eu creio que os portugueses têm uma ideia daquilo que são os direitos humanos e daquilo que é a Declaração. Não a sabem de cor, mas creio que perceberão aquilo que são os direitos civis e políticos, e os direitos económicos, sociais e culturais. Mas depois temos aquelas pessoas que veem os seus direitos violados, e que muitas vezes pertencem a grupos vulneráveis e já são alvo também de discriminação. E apesar de saberem os seus direitos têm dificuldades em lutar por eles porque, no contexto social onde estão inseridos, têm dificuldade em terem uma voz. Portanto, no meio da sua luta diária e permanente para terem condições de vida e para providenciarem aquilo que é o essencial à sua família, estas pessoas veem-se depois com dificuldades em lutarem pelos seus direitos humanos.

Isto é também um desafio das organizações da sociedade civil, como a Amnistia e todas as outras ONGs e IPSS em Portugal: dar voz a estas pessoas. Ou melhor, elas já têm voz. Precisamos é de as ouvir para que elas próprias nos digam que direitos estão a ser violados, mais do que aquilo que observamos. Os grupos mais vulneráveis são aqueles que precisam de condições para falar dos seus direitos e dos direitos humanos a que não têm acesso.

 

Pegando nessa sua ideia, como estamos de direitos humanos em Portugal?
Se olharmos para estes 70 anos, a evolução foi muito positiva. Portugal era um país muito pobre na altura, muito também por culpa dos anos de ditadura em que vivemos. Nós nem subscrevemos a Declaração dos Direitos Humanos quando foi assinada, e estamos agora a celebrar os 40 anos da nossa adesão ao Conselho da Europa e à Declaração Universal dos Direitos Humanos. Desde essa altura até hoje houve muitos avanços. Se nos puséssemos num ranking, creio que seria difícil [a avaliação]. Em alguns pontos estamos muito bem, noutros não estamos tão bem. Se olharmos para o mundo todo, Portugal pode quase ser um oásis de direitos humanos. Se nos comparamos com outros países da Europa, estaríamos a meio da tabela. No entanto, há problemas que nós temos e que são sistémicos e aí estaríamos nos últimos lugares.

 

estamos agora a celebrar os 40 anos da nossa adesão ao Conselho da Europa e à Declaração Universal dos Direitos Humanos

 

Que tipo de problemas sistémicos são esses?
Por exemplo, questões relacionadas com o acesso à justiça. Diria até que há uma certa discriminação que afeta mais os grupos mais vulneráveis. Por exemplo, em termos de legislação para questões LGBTI temos uma das legislações mais avançadas do mundo, no entanto continua a notar-se na cultura e nos costumes que há discriminação a estas pessoas. Depois, diria que todas as pessoas que pertencem a grupos mais vulneráveis ou que são de origens étnicas diferentes da caucasiana, por exemplo, ou as mulheres ou as pessoas mais pobres, têm dificuldades em ter acesso à justiça, aos bens fundamentais como a saúde, como uma educação igual. Eu diria até que são vítimas de múltiplas discriminações. Por serem de origem étnica ou de grupos económicos e sociais diferentes ou mais baixos, há uma série de direitos económicos e sociais que lhes são vedados ou que lhes são muito difíceis de atingir por serem discriminados precisamente por serem diferentes.

Depois também há a questão da discriminação institucional, ou seja, há agentes estatais que fazem profilingo que, no nosso entender, é indevido. Ainda recentemente houve uma rusga a um bairro de pessoas de etnia cigana em Estremoz, em que o bairro foi cercado e nem as crianças puderam sair para ir à escola. Ou seja, há aqui uma rusga do corpo de intervenção da polícia que impede até as crianças do acesso normal à educação. A intervenção e o uso excessivo da força da polícia muitas vezes é [dirigido] para pessoas negras, para pessoas ciganas. Há aqui um profilingque não é o correto e que assenta em critérios que não são aceitáveis e que são discriminatórios do ponto de vista dos direitos humanos.

 

A intervenção e o uso excessivo da força da polícia muitas vezes é [dirigido] para pessoas negras, para pessoas ciganas. Há aqui um profiling que não é o correto

 

Acha que o ressurgimento do populismo um pouco por todo o mundo se deve à falha das instituições em defender direitos fundamentais?
Eu creio que tudo contribui um pouco. O que diria na questão das forças extremadas que estão a ganhar relevo é que há uma narrativa baseada na mentira e em perceções que muitas vezes são apenas isso mesmo, que está a ser construída com sucesso. Por exemplo, a narrativa sobre os refugiados como estando a invadir a Europa ou que vêm para nos fazer mal, e que são todos terroristas ou criminosos. Há pessoas em Portugal que já comungam desta opinião, mas são raras as pessoas que conhecem, de facto, um refugiado que esteja em Portugal. Porque de facto são poucos os refugiados em Portugal, e quase nem se notam na sociedade portuguesa. E portanto, esse discurso de ódio e divisivo, que é assente na mentira e em perceções, consegue ganhar tração se as pessoas não estiverem informadas e se se confundirem opiniões com factos. Portanto, esse, creio, é o verdadeiro desafio.

Claro que hoje em dia as redes sociais também contribuem para este alastrar das mentiras muito facilmente. Também temos a crise que vemos na imprensa, em que os órgãos de comunicação social estão a passar por dificuldades económicas. E a viabilidade económica é muito importante para que os jornalistas possam fazer um trabalho correto e ético, em que a sua preocupação seja falar a verdade e não produzir conteúdos “ao metro” para que possam receber um vencimento ao fim do mês.

A falha das instituições também contribui para este fenómeno. Mas lá está. A democracia funciona com um sistema de checks and balances: há a verificação e a contra verificação; há o poder e a oposição; há a imprensa, que é um importante contribuidor para a saúde da democracia, uma vez que é responsável por moderar e comunicar a verdade às pessoas. Tudo isto são fatores que as forças de extrema têm cavalgado muito bem à custa das mentiras que vão semeando nas pessoas que estão descontentes. E, de facto, em democracia, ou seja em que regime for, há sempre pessoas descontentes, e é fácil cavalgar as opiniões nessas pessoas.

A forma de combater isto é nunca desistir da verdade e nunca desistir de apelar à pessoas para que se informem convenientemente, e que nunca se deixem enganar por mentiras. Há aqui um papel muito importante das ONGs, órgãos de comunicação social e também dos partidos políticos moderados para que façam a verdade vencer e não deixem que a mentira sirva para semear e fazer germinar o ódio, a divisão e a discriminação.

 

há uma narrativa baseada na mentira (…) A forma de combater isto é nunca desistir da verdade e nunca desistir de apelar à pessoas para que se informem convenientemente

 

A Declaração Universal dos Direitos Humanos tem algum ponto que precise de ser melhorado? Falta acrescentar alguma coisa no texto?
Creio que a Declaração é um documento muito bem conseguido. Creio que é abrangente e combina muito bem aquilo que são os direitos humanos universais para todas as pessoas e culturas que temos no mundo. Não creio que seja precisa uma revisão ao texto por causa desta abertura e desta abrangência. É uma declaração que é também fruto de anos de história. Os valores que lá estão plasmados já eram discutidos na antiguidade clássica, na filosofia grega, e passaram para nós também através dos valores das religiões, na Europa, de uma forma muito especial até, pelos valores da Revolução Francesa e pela Bill of Rights, quer a Inglesa, quer depois a dos Estados Unidos. Portanto, há todo um percurso histórico e o que temos é esse documento final que é lindíssimo. O que eu acho é que as pessoas têm de a interpretar à luz dos novos desafios da história e à luz também dos novos desafios que o dia a dia nos vai colocando. Hoje, por exemplo, falamos muito do direito à privacidade, do direito à proteção de dados individuais, e isso já está, de facto, na Declaração Universal, na parte da identidade cultural e na identidade individual das pessoas. Mas, claro, agora de uma nova forma. Portanto, temos de estar à altura de viver o nosso tempo e de nos guiarmos também com aquele documento, com os tratados que o ratificaram, sem esquecer também a Constituição da República Portuguesa que é também ele um documento lindíssimo que fala de direitos e que transcreve uma realidade ideal do nosso país. Nunca podemos desistirmos de tentar fazer cumprir todos estes documentos que nos norteiam.

 

E para os próximos 70 anos? Como vê o futuro?
Eu queria um futuro em que, de facto, os direitos civis e políticos, que parece que estão a regredir como falávamos há pouco, possam voltar ao seu caminho. Que os líderes políticos e as oposições sejam promotoras e respeitadoras de todos os direitos humanos, e da voz das pessoas; que trabalhem afincadamente para um mundo melhor e mais próspero. Depois, no campo dos direitos económicos, sociais e culturais, gostava que o mundo fosse de facto moral, que houvesse uma comunidade global que se soubesse respeitar a si própria, quer em termos de economia quer nesta forma demarcada em que vivemos, que tem de ter regras e que tem de ser eticamente responsável. A economia precisa de estar ao serviço das pessoas, e não o contrário. E depois, que toda a gente tivesse direito à sua identidade, quer cultural, quer individual; que fosse respeitada naquilo que é, e que víssemos a diversidade cultural, de género, a diversidade ética, a diversidade deste mundo em mobilidade, toda esta diversidade como uma riqueza para nos enriquecermos uns aos outros; que o mundo não fosse de fronteiras, fechado, dividido, onde temos medo dos outros só porque não os conhecemos.

 

Pedro A. Neto, é Diretor Executivo da Amnistia Internacional – Portugal. Tem um Ms.C. em Gestão e Administração Pública tendo desenvolvido estudos na área de Governação e Direitos Humanos, pela Universidade de Aveiro. Prosseguiu estudos na mesma universidade como doutorando em Políticas Públicas, dedicado à investigação em liderança comunitária e direitos humanos.
Foi um dos fundadores e presidente executivo da ONGD ORBIS – Cooperação e Desenvolvimento, em Aveiro, onde levou a efeito projetos de desenvolvimento nos PALOP e Brasil. Foi diretor-adjunto do CUFC – Centro Universitário Fé e Cultura, na Diocese e Universidade de Aveiro. Foi também docente no Instituto Superior de Ciências Religiosas de Aveiro e docente do ensino secundário público.
Desenvolveu várias missões de voluntariado, desde 2004: ao interior de Angola, onde trabalhou num campo de refugiados do ACNUR, e, depois, em Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, na Amazónia e em Marrocos com projetos de capacitação e desenvolvimento comunitário.
Exerce as funções de diretor executivo da Amnistia Internacional em Portugal desde Maio de 2016.




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