Doclisboa: “Queremos ter filmes que observem o mundo, que questionem o mundo, que não sejam encerrados em si”, Joana Sousa
O Doclisboa está de regresso à capital, entre os dias 21 e 31 de outubro, para a sua 19ª edição. Em entrevista à Green Savers, Joana Sousa, co-diretora do Festival Internacional de Cinema, abordou a importância da temática ambiental no cinema e deu a conhecer algumas das obras que estarão expostas no decorrer do evento, que estão alinhadas com este tópico e aspiram à reflexão e ação do público.
Este ano, o festival vai ser em formato presencial ou híbrido?
A parte de exibição de filmes vai ser presencial, vamos estar nas salas habituais, de 21 a 31 de outubro. Vamos estar na Culturgest, no Cinema de São Jorge, na Cinemateca, no Cinema Ideal, e também no Cinema City no Campo Pequeno, e no Museu do Oriente. A parte híbrida é a parte da indústria, em que aí sim, vamos ter atividades online e atividades presenciais.
A consciencialização para a temática ambiental é muito importante nos dias que correm. De que forma isso se reflete no Doclisboa 2021?
Isso é uma preocupação do festival há já bastante tempo. Nós tentamos sempre ter uma programação que seja consciente sobre essa temática, que seja atenta ao que se está a passar hoje em dia, e engajada na medida em que nessa atenção de expor questões e se expor problemáticas relacionadas não só com filmes que sejam obviamente sobre questões ambientais, mas filmes que também tragam, através de outras lutas ou através de outras questões, que se cruzem com isso. A luta ecológica é uma luta política e social também, portanto nós não conseguimos separar as coisas, e para nós é importante que também não só mostrar os filmes, mas também construir uma discussão em torno deles. Tentamos sempre na medida do possível trazer os realizadores ou as equipas dos filmes para discuti-los também, e quando não é possível, como por exemplo no ano passado por causa da pandemia, organizámos conversas por videoconferência.
Que documentários destacam no vosso programa, a nível nacional e internacional, ligados a esta temática?
São vários em grande parte das secções, sendo que a secção que de certa maneira é um bocadinho mais aberta a isso é a “Da Terra à Lua”. É uma secção que tenta exatamente trabalhar grandes questões que afetam a sociedade hoje em dia, e nós temos um filme que é muito importante pelo Kazuo Hara, que é um realizador japonês, que é o Minamata Mandala, que são 6 horas. É todo uma epopeia de filme, mas é uma epopeia também pela questão que trata, que é uma luta que nesta região de Minamata em que havia uma série de instalações fabris cujo processamento provocou um envenenamento por mercúrio tanto do habitat do mar e das terras envolventes, mas depois das populações que subsistiam desse mar. Tem também a ver com organizações comunitárias porque são também pessoas que há conta disto tiveram que se politizar, tiveram que pensar como é que coletivamente conseguimos fazer frente a este mamute, que é esta estrutura industrial que é corroborada pelo governo (…). O Kazuo Hara começou a gravar em 2001 e acompanhou a luta destas pessoas até 2015-2016. Então o filme acompanha esse processo todo, e é um filme tão longo exatamente porque o processo foi longo, e extenuante e cansativo. Estas pessoas foram afetas de maneira tão profunda, que tiveram de dedicar a sua vida a resistir. E também porque esta luta não é só encerrada neles, não é só encerrada nas suas vidas pessoais, na solução dos seus problemas, mas também estas pessoas têm consciência que se estas empresas e fábricas não forem trazidas a um julgamento público, (…) elas vão continuar a proceder da mesma maneira, a envenenar aqueles habitats continuamente, e nunca vai haver uma solução.
Depois temos também na “Da Terra à Lua” o filme “From the Wild Sea” da Robin Petré, que é uma realizadora que já apresentou filmes connosco na secção “Verdes Anos”, porque ela já nessa altura fazia um trabalho relacionado com esta questão da relação entre os animais e os humanos, nesta questão de pensar o Antropoceno. E ela agora neste filme dá um salto grande porque, de repente, faz mesmo um filme que é filmado, não só tematicamente, mas também pensou como é que os animais experienciam viver neste mundo. Como é que tendo em conta que a humanidade afetou o seu ambiente de tal maneira, como é que essas violências são percecionadas através dos animais. Por exemplo, há uma entrevista muito interessante que ela deu sobre o filme em que ela estava ao pé do mar e mostra como é que o mar está tão calmo, mas na verdade, nós temos esta perceção que está tudo bem, mas de baixo da superfície todas aquelas vivências desses animais estão a ser altamente afetadas, altamente violentadas. O filme acompanha uma equipa de salvamento de animais marinhos que são afetados não só pelas atividades diretas humanas, mas por exemplo, tempestades ou outros grandes eventos ambientais, que têm muita consequência de alterações climáticas. Grande parte destas atividades são feitas na Europa, que recentemente começou a ver muito mais tempestades, ciclones e outros eventos meteorológicos que não eram tão comuns, e que passaram a tornar-se mais comuns, e que não somos só nós os humanos que estamos surpreendidos com isso mas as próprias espécies animais não têm ferramentas para lidar com essas alterações, porque foram evoluindo para se adaptar a um certo tipo de condições meteorológicas, e estas novas condições meteorológicas que aparecem repentinamente fazem com que essas espécies sejam afetadas, e então estas equipas trabalham maioritariamente com espécies que dão à costa, sejam baleias, focas e ou pássaros, e ela vai acompanhando essas equipas.
Nós temos uma ligação com o mar que é também complexa porque para grande parte da população o mar é visto como um lugar de recreio, e não propriamente um lugar que está em crise, porque vamos à praia e parece que está tudo bem, é tudo muito bonito e o pôr do sol é incrível, mas na verdade há uma parte importante da população que trabalha com essas questões seja em laboratório seja no terreno, e que está muito mais atenta a que as coisas não estão assim tão calmas. (…) É um filme que, de certa maneira, também nos questiona porque é que isto está a acontecer, ou seja eu enquanto pessoa que não estou envolvida nestas atividades em específico, eu pergunto-me porque é que o oceano está a sofrer desta maneira, porque é que estas espécies estão a sofrer continuamente, ou seja, é mesmo um trabalho de denúncia muito grande.
Depois temos o “The Spark”, que é também na “Da Terra à Lua”. Neste filme ela começa o filme exatamente a falar sobre como é que nós somos capazes de imaginar um futuro diferente, um futuro não só para a minha vida mas um futuro para a nossa vida, e como é que um indivíduo pode e deve estar atento ao outro. Uma reação em cadeia que possivelmente poderá melhorar não só a minha vida, a vida da minha comunidade, mas a vida também de comunidades maiores e eventualmente das espécies. Não ser só uma vivência egotística, de pensar só “como é que eu consigo melhorar a minha vida?”, mas “como é que eu consigo melhorar a minha vida em relação ao outro” – sendo esse outro animal, pessoa, mineral, tudo.
Vamos ter também o filme novo do Isael Maxakali e da Sueli Maxakali, que é realizado também com a Carolina Canguçu e o Roberto Romero, “Nūhū Yãg Mū Yõg Hãm: Essa Terra é Nossa!”, que é um filme que trata questões que nós já trouxemos várias vezes ao Doclisboa, em relação a cinema indígena. O a cinema indígena hoje em dia, e desde sempre, está constantemente premiado pela própria ideia de resistência, de resistência ao apagamento, porque grande parte das comunidades indígenas, seja no Brail, seja noutros países, ao longo de vários vários séculos foi sujeito a um apagamento muito grande. Este filme “Essa Terra é Nossa!” também passa por isso de uma maneira mais direta, em que trata exatamente da questão de restituição de terras que foram expropriadas comunidades indígenas ao longo do tempo, e como estas comunidades estão a tentar lutar para que essas terras sejam novamente designadas como, não como reservas indígenas, mas como espaços em que estas terras sejam ditas que pertencem a estas comunidades, que podem ser geridas pelas próprias comunidades, e que devem ser apoiadas pelo Estado. No contexto do Brasil, hoje em dia, estas comunidades estão a ser expostas a uma violência extrema, seja não só pela expropriação de terras, mas também pela ameaça direta de ataques por parte da indústria agropecuária. A pressão política que está a acontecer é mesmo uma pressão violenta e visceral, que o Estado no Brasil corrobora e apoia, e portanto a “Essa Terra é Nossa!” fala um bocado sobre essa luta. Nos últimos anos houveram pequenas vitórias, mas recentemente até essas pequenas vitórias foram voltadas atrás, portanto é um filme também de como é que uma luta não é sempre linear, e não pode ser considerada linear pelas pessoas que a apoiam, fora dessas comunidades. É sempre preciso estar atento continuamente, porque quando a atenção internacional esquece determinados assuntos, não quer dizer que esses assuntos estejam já sólidos e resolvidos.
Já na Heart Beat, temos o Becoming Cousteau, que é sobre Jacques Cousteau – como o nome indica- e é um filme extremamente interessante porque é baseado em arquivos da Dundação Cousteau, arquivos não só dos próprios filmes que ele realizou, mas também de todas as ações que o Jacques Cousteau foi fazendo ao longo da sua vida. É uma vida bastante complexa em relação a estas questões ambientais porque ele não começou como uma pessoa defensora, não começou como ambientalista, aliás pelo contrário, ele usava dinheiro de trabalhos que fazia para a indústria do petróleo para financiar as expedições, mas é interessante pensar como é que uma pessoa que estava de um lado tão contrário a essas questões, pela proximidade que tinha desses habitats e dessas vivências, apercebeu-se que “ok, espera, eu tenho que ir para o outro lado”. É também interessante tendo em conta também esta ideia de personalidades, e de como é que há personalidades que surgem que depois se tornam uma cara de determinadas questões. Por exemplo, tens agora a Greta Thunberg – não estou a compará-la ao Cousteau, de todo – mas nessa ideia de às vezes ser necessário haver uma pessoa que personifique e que dê uma cara a questões que muitas vezes parecem de certa maneira abstratas para a população em geral. O Cousteau serviu ao longo dos anos 70 e 80 muito para isso, um bocado como a Greta está agora, de tentar mobilizar camadas da sociedade que muitas vezes poderiam não estar atentas a este tipo de questões (…) então é de certa maneira tornar esta luta não tão anónima e mais acessível a uma comunidade em geral que pode não estar tão atenta a isso.
Depois temos um filme na competição, “O Lugar Mais Seguro do Mundo”, que é um filme extremamente importante e que tem também várias ligações com todos estes filmes, porque tem uma personagem principal que é um rapaz, e este título é anónimo porque ele chama ‘o lugar mais seguro do mundo’ ao lugar onde existia a sua vila no Brasil, que foi completamente subterrada por lamas de uma mina. Infelizmente têm havido vários casos no Brasil, em que estas minas a céu aberto que têm depois as lamas armazenadas em muito más condições, são espécies de barragens que não são sustentáveis e nem sequer são pensadas para ser sustentáveis a longo prazo ou para proteger as comunidades que supostamente estão a proteger. O filme acompanha esses processos ao longo dos vários anos, e é um filme bastante urgente nessa medida em que trata questões muito sensíveis a nível político do Brasil hoje em dia, não só ambientais, mas da maneira como há várias promiscuidades de poder entre empresas e governo e indústrias. A população é constantemente vista como um ‘side effect’, é vista como um efeito secundário, não como uma preocupação nesses interesses políticos e económicos que há nessas regiões.
Isto são alguns dos filmes que são assim mais próximos destas questões, mas por exemplo; vamos apresentar uma programação feita em conjunto com a Cinemateca portuguesa, dentro de um projeto maior, um projeto internacional, que é o “FILMar”, e que não é diretamente relacionado sobre questões ambientais, mas é um projeto que vai desenvolvido nos próximos anos de recuperação de filmes sobre o mar – ou que, de certa maneira, representam o mar.
E para nós é interessante pensar também nestas ligações que acontecem na programação. Pensar como é que essas representações, que naquele tempo inclusivamente eram feitas pelas próprias empresas e pelas próprias indústrias, ou então como propaganda – em Portugal também acontecia isso, haver muito cinema feito que representava o mar e servia propósitos de propaganda política – como é que nós ao vermos esses filmes agora conseguimos também pensar o que é que o mar significa para nós, ainda por cima tendo em conta que Portugal é um país com uma costa tão grande e que o seu território no mar ainda é várias vezes maior que o território interno, e como é que nós podemos, ao ter consciência dessa história e dessa relação, responsabilizar-nos e ter também uma consciência muito mais atenta. Tendo em conta que há uma indústria pesqueira tão importante para Portugal, como é que essa indústria pesqueira se pode tornar sustentável, não só por causa de questões ecológicas mas também para a própria indústria pesqueira ser autossustentável. Obviamente que as questões ambientais não surgiram agora, é um problema que já existe há muito tempo, e embora esses filmes não sejam propriamente de denúncia de problema nenhum, porque muitas vezes esse problema não se sabia que existia, são dados importantes para vermos e para estarmos conscientes da evolução das coisas, e de como é que as coisas existiam antes, e agora.
Estes filmes estão a ser recuperados, mas nós vamos já mostrar um dos filmes – “Nazaré – Praia de Pescadores”, que foi um filme feito sobre a comunidade piscatória da Nazaré, e é um filme mudo que vai ser apresentado com uma partitura original do compositor Filipe Raposo e ele vai apresentar com acompanhamento de piano. É uma sessão que compõe esse questionamento, e que também pensa como é que os arquivos, que são construídos e que não são propriamente relacionados a pesquisa científica, podem também contribuir para um mapa dos habitats, das ações humanas nessas habitats, uma ideia de como é que nós nos relacionamos com a natureza, seja do ponto de vista de uma indústria, seja do ponto de vista população, seja do ponto de vista de uma comunidade que vive tão intrinsecamente próxima com o habitat desse género.
Nas edições anteriores do festival já tinha existido a preocupação de integrar este género de documentários?
Nós já mostramos vários filmes relacionados com esta temática, inclusivamente fizemos uma sessão que foi feita em conjunto com a associação ZERO, o filme “Al Gore”, em 2016. Trabalhamos muito também com os filmes que nos chegam, e temos reparado que ao longo dos anos tem havido também um crescimento de produção de filmes que sejam conscientes ou atentos a isso, ou que trabalhem essas questões. Mas tentamos sempre construir uma programação de filmes que não seja só encerrada nisso, mas que seja aberta e que trate várias questões ao mesmo tempo. Sendo que o festival é construído exatamente nas várias secções sempre em atenção ao que se passa no mundo e na sociedade, é natural que o festival também reflita essa crescente preocupação.
Na edição passada nós tivemos uma programação em conjunto com o Goethe-Institut, em que apresentámos vários filmes que estas questões em relação das comunidades com o ambiente atravessavam os filmes, seja duma maneira mais direta ou indireta. Depois organizámos uma conversa que pensava não só questões ambientais de fora, mas também como é que a própria produção de filmes pode trabalhar atento a isso. O cinema trabalha com grandes equipas, trabalha com deslocações, trabalha com materiais, e como é que as próprias equipas e as próprias produtoras, podem pensar a sustentabilidade na sua própria prática. Tentar pensar isso não só do ponto de vista de ver, de observar, mas também de pensar a própria profissão e o próprio contexto.
Qual é o vosso principal objetivo, ao integrarem o tema ambiental nas suas variadas vertentes, no Doclisboa?
Nós queremos ter filmes que observem o mundo, que questionem o mundo, que não sejam encerrados em si, mas que abram espaços para discussão e abram espaços de partilha. Não é só esta questão em específico da luta ecológica, mas também outras lutas, então são sempre lutas que criam relações; são filmes abertos, são filmes atentos, filmes engajados, mas sem nunca descorar também a maneira de como é que eles o fazem. São filmes que também têm uma carga artística bastante grande e portanto são filmes de “como é que o cinema pode trabalhar essas questões”.
Para saber onde pode assistir aos filmes mencionados e comprar os respetivos bilhetes, consulte as seguintes páginas:
Secção Da Terra à Lua – The Spark, From the Wild Sea, Minamata Mandala e Nūhū Yãg Mū Yõg Hãm: Essa Terra É Nossa!
Secção Heart Beat –Becoming Costeau
Competição Internacional – O Lugar Mais Seguro do Mundo