Documentário português quer mostrar que é possível criar espaço para os polinizadores nas cidades com “dedicação e uma boa equipa”



“Silvestres” é o título do primeiro grande filme da produtora portuguesa Lengalenga, que dá-nos a conhecer um projeto de restauro ecológico na Quinta de Recreio do Marquês de Pombal, em Oeiras.

Já com vários outros trabalhos realizados, esta obra é também uma estreia, pois é o primeiro em que Carolina Castro Almeida e Miguel Cortes Costa assinam, em conjunto, a realização e a produção.

Em entrevista à Green Savers, contam como tudo começou, o que aprenderam e a mensagem que querem transmitir ao público: de que, com vontade e empenho, é possível recuperar a Natureza. E tem como protagonistas muitos animais, humanos e não-humanos.

Mais do que um documentário sobre a vida selvagem, o “Silvestres” entrelaça a narrativa ecológica com a histórica, desvendando uma faceta pouco conhecida de uma das personagens mais marcantes da História do país.

O filme tem estreia marcada para este domingo, dia 31 de agosto, na SIC, pelas 12h00. A obra que será exibida em televisão é um pouco diferente daquela criada por Miguel e Carolina. A duração foi reduzida dos 54 minutos originais para perto dos 40 minutos e a narração inicial feita pela bióloga Sara César foi substituída pela voz de Augusto Seabra.

 

Como e quando surgiu a ideia para criar o “Silvestres”?

Miguel: Durante a pandemia recebemos o convite para fazer um vídeo. A Câmara Municipal de Oeiras estava a preparar uma candidatura para financiar o restauro de quatro hectares de prado, destinados a combater o declínio dos polinizadores. Entre as propostas do projeto estava a produção de um mini-vídeo sobre este processo — não estava planeado ser um documentário com uma duração tão grande nem com uma dimensão criativa tão aprofundada.

Miguel Cortes Costa / Lengalenga Filmes.

Já tínhamos colaborado com a câmara de Oeiras através de trabalhos de fotografia, e biólogos do Departamento de Ambiente, nomeadamente a Sara Almeida, já conheciam o nosso documentário “Malcata – Conto de uma Serra Solitária”, e por isso lançaram-nos esse desafio. A ideia de fazer o Silvestres não partiu de nós, mas sim de um trabalho encomendado que acabou por crescer muito mais do que o previsto. À medida que nos entusiasmámos com o tema, o projeto ganhou outra dimensão e acabou por ser um processo muito mais longo: desde o contacto inicial em 2020, em plena pandemia, até ao fecho do documentário passaram-se quase quatro anos.

Que mensagem pretendem transmitir ao público com este filme?

Carolina: A mensagem que queremos transmitir é que é possível transformar um espaço urbano num espaço biodiverso e favorável aos polinizadores, desde que haja dedicação e uma boa equipa. Queremos transmitir para o espectador como um projeto destes pode servir como exemplo para outras boas práticas, e como deve haver uma mudança de mentalidade na forma de ver espaços verdes em meio urbano.

Também quisemos mostrar a diversidade de polinizadores em Portugal, em especial das abelhas silvestres, e como cada espécie tem comportamentos tão distintos.

Carolina Castro Almeida / Lengalenga Filmes.

Outra parte importante foi partilhar o que aprendemos do contexto histórico do Marquês de Pombal, enquanto agricultor. As preocupações que esta personagem tinha com a adaptação da produção agrícola ao clima, sem descuidar os espaços simbólicos e a beleza das construções, continuam totalmente atuais: três séculos depois! E este mesmo espaço que representa a estética e adaptação pode voltar a ser palco para novos projetos de sustentabilidade.

Consideram que os polinizadores têm merecido a devida atenção em Portugal no que diz respeito à conservação da Natureza e da biodiversidade?

Miguel: É difícil responder, porque o nosso interesse por polinizadores cresceu muito durante o documentário. No início não éramos minimamente experientes no tema e, até para quem trabalha com vida selvagem, não é um grupo que atraia assim tanta atenção. Mas à medida que fomos aprofundando, abriu-se um mundo de curiosidades e de novo conhecimento.

As abelhas silvestres, por exemplo, foram uma descoberta total. Muitas vezes criamos barreiras mentais que nos fazem ignorar o que está à nossa volta. Quando começámos a prestar atenção, o tema começou a surgir em todo o lado — na experiência diária, nas redes sociais, nas notícias. A título de exemplo, muitos fenómenos que ocorriam no quintal da casa dos meus pais, na minha terra natal, e que eu não conseguia explicar, passaram a ter uma justificação – passei a ver quatro espécies de abelhas silvestres (que sempre estiveram lá!) com hábitos diferentes que deixavam estes vestígios que eu via desde criança.

Ainda assim, não sabemos se é porque o assunto ganhou mais destaque ou porque nós próprios passámos a “ver”.

O que sentimos é que, para perceber se os polinizadores estão mesmo a ter a atenção que merecem, tem de chegar às conversas do dia a dia de pessoas que normalmente não ligam à conservação nem à vida selvagem. Quando alguém que não tem ligação nenhuma à biologia ou à natureza falar de polinizadores num café, aí sim sentiremos que o tema entrou no quotidiano.

Gostaríamos que quem normalmente não procura este tipo de informação, passasse a ter esse acesso e curiosidade. Em Portugal ainda não sentimos isso de forma clara.

A vossa obra retrata a renaturalização de uma área em contexto urbano, para trazer de volta a vida selvagem a esse espaço. É preciso mais esforços para recuperar a Natureza nas cidades? Pensam que isso é importante?

Carolina: Hoje em dia é quase impossível trazer um espaço totalmente selvagem para dentro da cidade. O importante é recriá-lo com outra perspetiva: que seja útil não só para insetos e plantas, mas também para as pessoas. A natureza deve ser acessível a todos, seja em meio rural, seja em meio urbano.

Achamos fundamental manter espaços verdes com uma área considerável, mas também pequenos espaços que funcionem como corredores, para que os animais não fiquem isolados. É preciso reestruturar a ideia do que é um espaço natural em meio urbano. Nunca será totalmente selvagem, mas serão sempre beneficiais. O esforço tem de existir para termos melhor qualidade de vida e para os animais recuperarem algum espaço que lhes foi tirado.

Consideram que é possível realmente harmonizar o urbanismo, a expansão das cidades, com o mundo natural e não-humano?

Miguel: Sim, achamos que é possível harmonizar o urbanismo com o mundo natural, até porque não temos outra opção.

Em conversa com alguns biólogos percebemos que há ideias de que o futuro passará por manchas de agricultura intensiva, espaços urbanos com áreas verdes e zonas naturais mais fragmentadas. A população continua a crescer e os espaços dedicados à agricultura irão a par e passo – por isso os animais vão perdendo território. Nesse contexto, os espaços urbanos acabam por desempenhar um papel fundamental: não são ideais, não são prístinos, mas concentram mais espécies do que meios rurais onde encontramos monoculturas.

Um jardim em Oeiras ou Lisboa vai ter mais espécies de abelhas do que uma plantação de eucaliptos ou olivais. Nas cidades, apesar dos riscos do contacto humano, os animais encontram estruturas para abrigo e alimento, quantas espécies de plantas podemos encontrar entre jardins, quintais e varandas? Mais do que numa monocultura de certeza. Para aves de rapina, por exemplo, há abundância de pombos e ratos que proliferam em meio urbano. Já em muitas áreas rurais o que vão enfrentar a falta de alimento, que na base, começa pela falta de insetos pelo uso de inseticidas.

É possível e necessário harmonizar o urbanismo com a natureza, mas vamos atrasados e ainda com alguns vícios errados no que toca a espaços verdes. Talvez começar com projetos como o que deu origem ao documentário – que favorecem a flora silvestre e não aqueles relevados típicos dos ordenamentos de território mais urbanos, com plantas que necessitam de muita água e que não trazem biodiversidade nenhuma.

Os animais não-humanos não são os únicos protagonistas do documentário. Acreditam que as histórias dos vários intervenientes humanos que fazem parte do filme ajudam a reforçar uma ideia de que os humanos não existem isolados do mundo natural? Entendem que esse é um fator distintivo de outros docs de Natureza, que tendem a focar somente o lado dos animais não-humanos?

Carolina: Muito antes de começarmos a ideia do documentário, e até antes da própria Câmara de Oeiras lançar o projeto “Mais Polinizadores Mais Biodiversidade”, já o Marquês de Pombal, no século XVIII, era exemplo de alguém que sabia que o ser humano não está isolado do mundo natural. Ele construiu a Quinta de forma equilibrada: recreativa, produtiva, mas também com espaços mais assilvestrados, onde a natureza seguia o seu rumo. Podemos ver esta atitude bem representada na fonte das 4 estações, bem no centro da metade Sul da Quinta.

Em 2020, temos um grupo de biólogos, maioritariamente jovens, com essa mesma vontade de mudar o espaço urbano, com noção do que é preciso fazer e com o privilégio de terem quatro hectares disponíveis para experimentar.

“No documentário, os protagonistas não são só insetos, flores ou plantas. São também as pessoas que escolhemos acompanhar — cada uma por razões diferentes, mas todas com grande sensibilidade para o tema” / Lengalenga Filmes

No documentário, os protagonistas não são só insetos, flores ou plantas. São também as pessoas que escolhemos acompanhar — cada uma por razões diferentes, mas todas com grande sensibilidade para o tema. Isso distingue este projeto de outros documentários de natureza. Está longe de ser um documentário de vida selvagem: temos uma vila à volta do prado, temos um palácio, temos um contexto histórico, ainda vamos ao Porto, vamos às Caldas da Rainha…é um projeto que acaba por ser bastante diferente dos documentários naturais que estamos acostumados a ver.

O doc conta também como a revitalização da quinta não apenas cria as condições para o regresso de polinizadores, mas também de outros animais selvagens. Era vosso intento mostrar que a recuperação de uma área natural permite efeitos em cadeia que se repercutem ao longe dos vários níveis das teias tróficas? Que quando fazemos algo para ajudar espécies ou grupos chave, como os insetos polinizadores, abrem-se portas para a recuperação e regresso de muitas outras formas de vida?

Miguel: No documentário não é totalmente evidente, não é dito de caras, e isso até foi uma das coisas com que nos debatemos na edição – tínhamos essa informação connosco, mas não queríamos que o filme se tornasse numa aula de ciências naturais. Mas ao permitir que as plantas silvestres e polinizadores prosperem, há naturalmente repercussões na cadeia trófica. Os insetos e plantas estão na base dos ecossistemas terrestres, e o próprio ser humano não teria existido se não houvesse polinizadores – não haveria fruta e não haveria o macaco.

Ao promover um prado silvestre que atrai insetos e pequenos mamíferos, vemos depois espécies maiores a aparecer como coelhos, raposas e, especialmente, uma coruja que vive no Pombal do Marquês. Essa coruja usa esta construção antiga para se alimentar e, perto do fim do documentário, percebemos através dos estudos dos biólogos que está a aproveitar o prado para caçar. A partir daí percebemos, a cadeia torna-se evidente.

A coruja acompanha-nos ao longo do filme, simbolizando a ligação entre o espaço histórico, a recuperação do habitat e o regresso de outras formas de vida. Se queremos trazer vida para as cidades, temos que começar onde começa qualquer ecossistema terrestre: nas plantas, nos insetos, e na sua relação (parafraseando o filme).

Além da vertente mais “vida selvagem”, este doc tem também uma dimensão histórica, a da Quinta de Recreio do Marquês de Pombal, figura icónica e controversa. Aprenderam algo de desconheciam sobre ele e sobre este lugar? Foi desafiante entrelaçar as narrativas histórica e ecológica?

Miguel: Aprendemos muito sobre este lugar, principalmente porque não o conhecíamos. Nunca tínhamos ouvido falar da Quinta do Marquês de Pombal nem da sua vertente agrícola. Quem fala do Marquês associa-o imediatamente ao homem de punho de ferro: há quem o adore, há quem o odeie. O que é certo é que ainda se continua a falar do Marquês Pombal quase como se ainda estivesse vivo. Foi uma personagem particularmente controversa. E já toda a gente sabe do julgamento dos Távora e do Malagrida, e que levantou Lisboa das ruínas depois do terramoto.

Mas pouca gente sabe o que é que aconteceu até aos seus 39 anos. Que foi um período sombrio também na sua vida, mas onde ele aprendeu a ser diplomata. Onde começou a sua carreira, por assim dizer, até chegar a ministro. E onde, acima de tudo, esta é a parte que nos interessa, aprendeu a ser agricultor. E é daí que ele, anos mais tarde, na Quinta quer traduzir o que achava que Portugal devia ser – autossuficiente e adaptada às condições climáticas do país.

Quinta de Recreio do Marquês de Pombal, em Oeiras / Lengalenga Filmes.

Criar o paralelo com o projeto do prado foi inevitável. O documentário funciona quase como uma série: começamos com cenas desconexas em diferentes momentos, incluindo a leitura de uma carta do Marquês ao filho antes de deixar a Quinta, e seguimos passo a passo a implementação do Prado em 2022-2023. Assim deixamos que o espectador que esteja mais interessado na história de Oeiras fique com vontade de retomar esse momento e até lá vai criando uma relação com os espaços naturais e vice-versa. As próprias estações que acompanham o filme refletem-se no passado e no presente, por exemplo: no momento em que chega a chuva ao prado, chega também o inverno que ensombrou os últimos dias do Marquês de Pombal na Quinta.

A primeira vez que fomos à Quinta foi de noite – acompanhados por dois biólogos, nem estava aberto ao público. Foi uma surpresa. Vimos pirilampos com um longo mural de azulejos, vimos ruínas de cascatas que serviam os tanques para lazer e para a rega dos pomares, aquedutos no meio da floresta de zambujeiros…uma série de coisas que não estávamos à espera. Percebemos que, apesar da proximidade a Lisboa, aquele espaço se manteve intacto, em parte graças à história da Quinta.

Sem querer estragar as surpresas que o doc reserva, este prado renascido conseguiu alcançar os propósitos que se esperava?

Carolina: O documentário retrata o esforço de uma equipa para transformar um prado de quatro hectares. Sendo uma área considerável, a maior preocupação era se as flores silvestres se adaptariam rapidamente ao solo e se esse timing batia com as primeiras chuvas. Como sempre, a natureza dá-nos sempre mais do que estamos a contar e o prado conseguiu vingar no primeiro ano. Mas o mais importante é se corre bem no próximo, e no seguinte, por aí fora…

Sendo um prado silvestre a ideia é ser autónomo – sem precisar de rega nem de manutenção: as plantas fazem o seu ciclo anual, são polinizadas e, ano após ano, lançam as suas sementes. É um projeto com continuidade e, com sorte, poderá durar para sempre.

No filme, mostramos o trabalho feito, mas para avaliar o verdadeiro sucesso será preciso acompanhar o prado nos próximos anos e perceber se mantém os ciclos naturalmente, sem intervenção.

Este é o primeiro filme da Lengalenga. Com o trabalho feito e prestes a chegar a telespectadores em todo o país, como se sentem? É um sentimento de missão cumprida ou sentem que é apenas o começo?

Carolina: A nível individual, eu e o Miguel já temos vários projetos de que nos sentimos orgulhosos e com sensação de missão cumprida. Já tínhamos feito um documentário sobre a Serra da Malcata, realizado pelo Miguel e co-realizado pelo Ricardo Guerreiro. Eu participei na produção do filme, que também teve estreia televisiva e distribuição internacional pelo Instituto Camões.

Mas Silvestres é o primeiro filme da LengaLenga em que ambos assinamos realização e produção. Fizemos tudo juntos, claro que trabalhamos com outras pessoas que escreveram o guião, compuseram a música, fizeram as misturas, que deram voz ao filme… Mas no fundo, este é o nosso grande projeto enquanto dupla.

Miguel Cortes Costa e Carolina Castro Almeida / Lengalenga Filmes.

Vai ser muito entusiasmante vê-lo na televisão, partilhar o filme com os que nos são próximos, mas também com várias pessoas que não nos conhecem, não conhecem amigos ou família nossa. Essa parte é sempre curiosa: saber o que um espectador comum pensa ou sente ao ver o filme e o que retira dele.

Já tivemos a sorte de ver o filme com muitas pessoas em salas de cinema, quer pela estreia em festivais quer pela organização de sessões especiais, e é uma sensação muito recompensadora.

O documentário é um meio importante no que toca à conservação do mundo natural? Entendem que pode ser peça chave para estimular a consciência do público para com os desafios que a Natureza enfrenta atualmente? O documentário pode, realmente, “mover mundos”?

Miguel: Acreditamos que os documentários são uma peça essencial para tocar no coração das pessoas. Temos, como humanos, a tendência de proteger aquilo que para nós é bonito – conservação e estética estão de mãos dadas – e sentimos que a área cinematográfica e audiovisual permite criar essa relação da forma mais completa.

Um filme pode viver de silêncios, de tempos pausados ou ritmados, de música, de depoimentos, de voz-off, de chuva ou sol brilhante, arquivo a preto e branco ou imagens em movimento repletas de cores vivas. Ao longo de 50 minutos, conseguimos moldar a experiência do espectador de maneiras que uma fotografia, um panfleto, uma conferência ou uma palestra dificilmente conseguiriam.

É por isso que acreditamos nesta área — se não acreditássemos, não estaríamos nela. Sabemos que estamos ainda longe de atingir todas as mudanças possíveis, mas consideramos que o cinema é um meio importante, especialmente para sensibilização e conservação.

Um documentário permite dignificar projetos de forma que outra experiência não consegue. Alguém pode visitar o prado no verão, ver um espaço seco e um cartaz a indicar o projeto, mas não é a mesma coisa que sentir o entusiasmo dos biólogos, acompanhar a vida e o dia-a-dia de animais que são difíceis de observar sem atenção direta.

Olhando para trás, quais foram os momentos que mais vos marcaram e quais as dificuldades que mais fortemente sentiram?

Carolina: Conhecer a Quinta de Recreio do Marquês de Pombal, uma área enorme com um património lindo, foi um deles. Saber que Portugal tem 700 espécies de abelhas e conhecer as suas rotinas. O momento da sementeira com todas as equipas envolvidas. Conhecer empresas como a Sementes de Portugal, que têm a ambição de manter e difundir as espécies autóctones a nível nacional, não só em zonas naturais, mas também em áreas urbanas.

“A mensagem que queremos transmitir é que é possível transformar um espaço urbano num espaço biodiverso e favorável aos polinizadores, desde que haja dedicação e uma boa equipa” / Lengalenga Filmes.

Durante as filmagens houve momentos mais complicados, como por exemplo a captura da coruja para a colocação de um GPS. Foram várias tentativas em noites de inverno, com quatro a cinco horas de espera, e era frustrante chegar a casa sem esse momento filmado. Por outro lado, todas as noites que filmamos foram essenciais. Se a coruja fosse capturada, era um momento crucial para o filme, se não, nem sabemos como seria o resultado final, mas teríamos um sério problema de narrativa. A verdade é que o verdadeiro desafio do filme foi a composição da narrativa: montar o puzzle.

E a colaboração com os cientistas? Foi fácil? Presumo que por vezes possa ter sido desafiante lidar com pessoas que estão habituadas a falar com uma linguagem específica, enquanto vocês tentam manter a coisa simples, ainda que cientificamente precisa, para tentarem alcançar o máximo de pessoas possível.

Miguel: A colaboração com os cientistas foi fácil, claro que sim. Há sempre um entusiasmo e uma vontade de partilhar o conhecimento. As pessoas não são todas iguais, mas é um sentimento geral que temos com os biólogos. Isso não quer dizer que seja fácil depois o processo de os filmar – e isso também é causado pelo nosso próprio amadorismo. Na altura, nunca tínhamos conduzido entrevistas para um documentário enquanto Lengalenga, e sim apenas noutras produções em que não éramos os realizadores.

Ainda falta bastante contacto com a comunicação científica em Portugal. Os biólogos não têm formação para comunicar com o público em geral, e isso é uma lacuna grande no país. Eu próprio formei-me em Biologia e senti que havia uma dedicação à investigação e às disciplinas fundamentais negligenciando na totalidade a comunicação da ciência. A própria língua portuguesa também tende a complicar a comunicação.

Imagem do documentário “Silvestres” / Lengalenga Filmes.

Apesar dessas dificuldades, o facto de termos podido estender o projeto por tanto tempo permitiu-nos conhecer melhor as pessoas, muitas das quais se tornaram nossas amigas. Mesmo pessoas que apareceram mais tarde, fora das expectativas, tornaram-se essenciais para a narrativa. O documentário foi-nos guiando, pedindo-nos para que esta ou outra pessoa entrassem e o que podiam acrescentar. Ter tempo para filmar e editar em simultâneo enquanto o projeto avançava foi fundamental para perceber quem realmente fazia sentido incluir.

Entendem que o documentarismo de Natureza em Portugal está hoje mais maturo do que era há uns anos? Vemos já surgirem vários documentários de vida selvagem sobre Portugal e em português. Estamos finalmente a acordar para a força do documentário de Natureza no país?

Carolina: Estão a surgir cada vez mais documentários de vida selvagem em Portugal feitos por portugueses. Há muitas pessoas talentosas na nossa área, e parece que tudo se encaminha para mostrarmos mais o que temos em Portugal, que é muito.

Temas como alterações climáticas, conservação da natureza e proteção dos solos estão cada vez mais presentes e isso também incentiva mais pessoas a querer mostrar e comunicar a natureza que temos.

Felizmente temos muito para explorar neste campo e, sejam projetos nossos ou com outras produções, esperamos ver novos documentários nos próximos anos.

Enquanto realizadores de docs de Natureza, sentem que a área precisa de mais apoios? Por exemplo, ao nível de financiamento público, de maior estabilidade e menor precariedade da profissão, de cursos específicos nas universidades?

Carolina: Definitivamente, toda a área de cinema em Portugal, sejam séries, ficção, curtas, longas, documentários, é bastante precária, sem grandes fontes de financiamento. A única fonte relevante é o ICA [Instituto do Cinema e do Audiovisual, I.P.], mas não há espaço para todos os projetos, de todos os tipos. Não é fácil.

Por vezes, pode ser mais praticável apostar em iniciativas locais, lideradas por pessoas que conhecem e valorizam os lugares. Mas aí geralmente encontramos um financiamento muito reduzido.

Também acreditamos que a academia poderia melhorar. Por exemplo, tanto em cinema como em biologia a área de audiovisual e comunicação científica deveria ser mais explorada em mentes jovens e criativas, mostrando também outra forma de levar a cabo um percurso profissional.

Têm já outros planos em mente? O que se segue para a Lengalenga?

Miguel: Como os financiamentos são limitados, e nós vivemos apenas da nossa área, não podemos pegar em todos os projetos institucionais e transformá-los em documentários. Por isso, neste momento, estamos numa pausa. Temos vontade de fazer algo mais nosso, mas não nos podemos dar a esse luxo tão cedo.

Mas continuamos com projetos muito interessantes. Estamos cada vez mais ligados à história e filosofia das ciências, com temas sobre o Antropoceno ou RUTTER, que explora roteiros de navegação dos séculos XVI e XVII. Temos também projetos ligados à agricultura, como o GrowLIFE, e trabalhos museológicos, como uma peça audiovisual sobre a o início dos plásticos no calçado Português em Guimarães.

Um projeto que nos ocupa bastante tempo é um projeto LIFE do PowerLines 4Birds, acompanhando biólogos de instituições como SPEA, Quercus e LPN a monitorizar linhas elétricas e o seu impacto sobre aves. Este projeto permitiu-nos filmar animais que nunca tínhamos procurado antes, como o Rolieiro, a Abetarda, o Sisão e a Águia Imperial Ibérica. Vemos como empresas como a E-Redes corrigem essas linhas para reduzir colisões e eletrocussões, protegendo espécies prioritárias.

Para nós, este equilíbrio é o futuro. Já não existe a natureza totalmente intocada, e a solução está em encontrar formas de coexistência entre os dois mundos – dois mundos que queremos unir através do audiovisual.






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