Entrevista a Patricia Imbarus: Conferências de sustentabilidade “são muitas vezes apoiadas por grandes poluidores”



Dois dias intensos de partilha de conhecimento, debate de ideias e difusão de soluções. Essas são as promessas da Ethical Assembly, o movimento de justiça climática e social estabelecido pela empreendedora ativista Patricia Imbarus, para a cimeira de 2024  e que falou com a Green Savers sobre o objetivo e como é que surgiram estas conferências.

Segundo a fundadora, o movimento nasceu da constatação de que “não estamos apenas a enfrentar uma crise climática – é uma policrise, em que tudo está interligado. Desde as alterações climáticas e a perda de biodiversidade até à pobreza, aos conflitos armados e à erosão democrática, os desafios são vastos”.

Patricia Imbarus vai mais longe e revela que a Ethical Assembly foi criada “como resposta à crescente desilusão com as conferências de sustentabilidade, que são muitas vezes apoiadas por grandes poluidores e dominadas por narrativas unilaterais. Sendo uma organização independente, criada por cidadãos, evitamos qualquer tipo de greenwashing e mantemo-nos empenhados na integridade e na inclusão”.

Assim, a Ethical Assembly, surge em 2019 com a ideia de “democratizar o acesso a conversas centradas no clima e de catalisar soluções com impacto”

– Como é que surge este movimento?

Em 2019, fundei a Ethical Assembly com a ideia de democratizar o acesso a conversas centradas no clima e de catalisar soluções com impacto. Focados no pensamento sistémico e na intersecionalidade das questões climáticas e de justiça social, pretendemos ir além da sustentabilidade e abraçar a regeneração. Idealizei uma plataforma que não se limitasse a discutir problemas, mas que celebrasse perspetivas diversas e promovesse uma verdadeira construção de comunidade. No coração da Ethical Assembly está um compromisso com a inclusão e a bondade, assegurando que todos – cientistas, ativistas, inovadores e cidadãos – têm uma voz.

O nosso objetivo é criar uma plataforma para grupos tradicionalmente sub-representados, assegurando que a conversa é tão rica e variada como as soluções que procuramos. Juntos, estamos a criar um espaço diversificado e inclusivo onde a verdadeira mudança pode acontecer e onde todos têm a capacidade de contribuir para um futuro justo, resiliente e sustentável.

– Diz que criou a Ethical Assembly em 2019 com o intuito de “contribuir para o combate da crise mais urgente do nosso tempo, através de um evento interseccional, colaborativo e focado em soluções”. Que soluções são essas?

A Ethical Assembly nasceu da constatação de que não estamos apenas a enfrentar uma crise climática – é uma policrise, em que tudo está interligado. Desde as alterações climáticas e a perda de biodiversidade até à pobreza, aos conflitos armados e à erosão democrática, os desafios são vastos. Não existe uma solução única, mas sim a necessidade de uma ação colaborativa e urgente em várias frentes. Estamos aqui para mostrar que todos têm um papel a desempenhar na construção de um futuro justo e resiliente, e que existe uma dinâmica incrível para resolver estas questões prementes.

  • Inovação: Estamos a destacar start-ups como a Werewool (EUA), com as suas fibras proteicas de última geração que poderão revolucionar o fabrico de têxteis, a Poseidona (Espanha), focada na remoção de algas invasoras e na sua transformação em alimentos, ou a Plastic Fisher (Alemanha), que está a limpar os rios mais poluídos do mundo com plástico.
  • Investimento de impacto: Estamos a concentrar-nos em capital com propósito, que apoie empreendimentos escaláveis e com impacto, e estamos muito satisfeitos por ter connosco organizações pioneiras como a Satgana (Luxemburgo), uma empresa de capital de risco centrada na tecnologia climática, a Impact Shakers (Bélgica), uma empresa de capital de risco centrada no investimento inclusivo, a MAZE (Portugal), centrada no apoio a empreendimentos de impacto em fase inicial, ou a GoParity (Portugal), que fornece financiamento de crowd equity.
  • Mudança de políticas: Estamos a analisar esta questão tanto da base para o topo como do topo para a base, e estamos felizes por poder destacar iniciativas como a MyPolis (Portugal), que está a impulsionar a democracia digital e a promover o envolvimento cívico, crucial para uma mudança sistémica a longo prazo; enquanto atores como a FORMO Bio (Alemanha) estão a fazer lobby ao nível europeu para a implementação de sistemas alimentares preparados para o futuro!
  • Produção responsável: Vamos ouvir falar pioneiros da moda, como a Zazi Vintage (Países Baixos), que se concentram na salvaguarda do artesanato tradicional e na defesa da igualdade de género; ou de pioneiros da indústria da beleza, como a AcZvist Beauty (EUA/Singapura), que se concentram no comércio justo, nos ingredientes orgânicos, na inovação de materiais e na construção de melhores cadeias de produção.
  • Jornalismo e media: Com parceiros como o Pulitzer Center e a Fair Planet, estamos a realçar o papel fundamental dos meios de comunicação social na educação do público e na promoção da ação cívica.
  • Entretenimento e educação: Através da nossa parceria com a Waterbear, estamos a combinar projeções de documentários com ações diretas, inspirando as comunidades a envolverem-se.
  • Ativismo e movimentos de cidadãos: Joana Guerra Tadeu (ativista climática), Carolina Salgueira Pereira (clima e justiça social, a par de questões de género, raciais e de direitos humanos), Climáximo (uma das principais organizações de cidadãos na Europa que desenvolve ações diretas), Andreas Noe ou The Trash Traveler (centrado na poluição e na salvaguarda da saúde dos nossos oceanos).
  • Liderança juvenil: Com parceiros como a Force of Nature, Youth Climate Leaders ou Circular Economy Talent, pretendemos apoiar jovens líderes através de palestras, workshops e sessões de mentoria de carreira, reconhecendo o papel fundamental que os jovens desempenham na promoção da mudança. Ao celebrar uma diversidade de soluções e promover a colaboração, a Ethical Assembly está a ajudar a catalisar um progresso real e significativo em direção a um futuro justo, resiliente e regenerativo.

Ao contrário da maioria dos grandes eventos da indústria que operam num modelo “pay-to-play” – em que tudo, desde oradores até às coffee breaks, é monetizado – não aceitamos (e recusamos frequentemente!) patrocínios ou pagamentos para se ser orador, particularmente de empresas responsáveis por injustiças climáticas e sociais significativas

– Disse ainda que estava desiludida com as conferências de sustentabilidade “apoiadas por enormes poluidores e dominadas por narrativas unilaterais”. De que forma é que este evento se diferencia e o que é que se pode fazer para que as futuras conferências se afastem desse paradigma?

Exatamente, a Ethical Assembly foi criada como resposta à crescente desilusão com as conferências de sustentabilidade, que são muitas vezes apoiadas por grandes poluidores e dominadas por narrativas unilaterais. Sendo uma organização independente, criada por cidadãos, evitamos qualquer tipo de greenwashing e mantemo-nos empenhados na integridade e na inclusão. Ao contrário da maioria dos grandes eventos da indústria que operam num modelo “pay-to-play” – em que tudo, desde oradores até às coffee breaks, é monetizado – não aceitamos (e recusamos frequentemente!) patrocínios ou pagamentos para se ser orador, particularmente de empresas responsáveis por injustiças climáticas e sociais significativas.

A nossa abordagem consiste em investigar e selecionar rigorosamente todos os aspetos da conferência, assegurando que as vozes que apresentamos representam verdadeiramente a diversidade e a urgência das questões em causa. Trata-se de criar um espaço onde os valores humanos reais, as provas científicas e a colaboração genuína ocupam um lugar central. É um desafio construir um evento de alta qualidade com um modelo de negócio tão distinto, mas estou a correr este risco financeiro porque acredito que reunir as pessoas certas pode desencadear uma mudança poderosa. Contamos com a venda de bilhetes e com o incrível apoio de uma comunidade dedicada para que isto aconteça, testando e aprendendo constantemente à medida que avançamos.

Para nos afastarmos do paradigma tradicional das conferências, temos de perceber quem está por detrás destes eventos. A maioria das conferências sobre o clima ou sustentabilidade é produzida por grandes empresas especializadas na organização de uma vasta gama de eventos, muitas vezes com uma abordagem one-size-fits-all. Para estas, trata-se apenas de mais uma oportunidade de negócio. Em contrapartida, estamos a organizar a Ethical Assembly porque acreditamos que é uma conferência necessária, não porque seja lucrativa ou esteja na moda. Para que as futuras conferências sirvam verdadeiramente o movimento climático, os organizadores devem perguntar-se: Porque é que estamos a organizar este evento? Para quem é que é? Que valores nos estão a guiar? Só respondendo honestamente a estas perguntas é que podemos criar eventos que contribuam significativamente para a luta por um futuro justo e sustentável.

A verdadeira sustentabilidade significa criar sistemas que não só satisfaçam as necessidades do presente, mas também alimentem e regenerem o ambiente, as comunidades e as economias para as gerações futuras. Trata-se de pensar de forma holística e reconhecer a profunda interligação de toda a vida na Terra.

– O que é que significa para si a verdadeira sustentabilidade?

Para mim, a verdadeira sustentabilidade significa criar sistemas que não só satisfaçam as necessidades do presente, mas também alimentem e regenerem o ambiente, as comunidades e as economias para as gerações futuras. Trata-se de pensar de forma holística e reconhecer a profunda interligação de toda a vida na Terra.

A verdadeira sustentabilidade vai além da simples redução de impactos negativos – trata-se de contribuir ativamente para o bem-estar do planeta e dos seus habitantes. Também significa equidade e justiça. É assegurar que os benefícios de um futuro sustentável são partilhados por todos, especialmente por aqueles que têm sido historicamente marginalizados ou desproporcionadamente afetados pela degradação ambiental e injustiças sociais.

Em suma, trata-se de criar um mundo onde vivemos em harmonia com a natureza e uns com os outros, onde cada escolha que fazemos é guiada pelo respeito, compaixão e um compromisso de deixar o mundo melhor do que o encontrámos. É uma viagem contínua, que exige que todos nós sejamos intencionais, ponderados e corajosos na nossa procura por um futuro justo e regenerador.

– Esta cimeira internacional quer juntar mais de mil pessoas para debater justiça climática e social em Lisboa. Como é que define este conceito?

A justiça climática refere-se à ideia de que os impactos das alterações climáticas e os esforços para as enfrentar devem ser distribuídos de forma justa e equitativa. O conceito reconhece que as alterações climáticas afetam de forma desproporcionada as comunidades marginalizadas e vulneráveis – como os grupos com baixos rendimentos, os povos indígenas e as comunidades de cor – que são frequentemente os menos responsáveis pelas emissões de gases com efeito de estufa. Defende políticas e ações que não só abordem os impactos ambientais das alterações climáticas, mas também retifiquem as desigualdades sociais e garantam que todos, especialmente os mais afetados, tenham voz nos processos de tomada

de decisão.

A justiça social, de uma forma mais ampla, é a procura por uma sociedade justa e equitativa onde todos têm igual acesso a recursos, oportunidades e direitos. Envolve a abordagem e o desmantelamento das desigualdades sistémicas relacionadas com etnia, género, classe social e outros fatores. A justiça social sublinha a necessidade de abordar as desvantagens históricas e estruturais, bem como de garantir que todos têm a capacidade de participar plenamente na sociedade e de viver com dignidade e respeito. Não podemos ter uma sem a outra!

– Alguns casos de injustiça climática relacionam-se com os efeitos de processos de desertificação, eventos climáticos extremos (chuvas intensas, ondas de calor etc.), aumento do nível do mar, entre outros. O discurso da justiça climática já foi incorporado de forma consistente pelos governos? O que falta fazer?

Registaram-se avanços significativos na justiça climática nos últimos anos, mas a sua incorporação nas políticas e práticas governamentais varia muito consoante a região e o país.

De um modo geral, houve progressos, nomeadamente através de acordos internacionais como o Acordo de Paris e de algumas políticas nacionais que abordam tanto os impactos climáticos como a equidade social, mas ainda estamos longe de alcançar o que é necessário.

Países como a Costa Rica ou a Nova Zelândia integraram princípios de justiça climática nas suas políticas e há um reconhecimento crescente do conhecimento indígena e local nas estratégias climáticas em todo o mundo, mas muitas vezes ainda é superficial e não é suficientemente robusto. Há muitos desafios a enfrentar, incluindo a integração inconsistente das políticas, o financiamento inadequado das comunidades vulneráveis e a necessidade de resolver injustiças históricas.

Para promover a justiça climática, os governos devem assegurar uma participação significativa dos grupos marginalizados, melhorar a atribuição de recursos e alinhar a ação climática com objetivos sociais e económicos mais amplos. A monitorização eficaz, a responsabilização e a cooperação global são essenciais para responder às necessidades das comunidades afetadas e cumprir os compromissos de apoio à resiliência e adaptação equitativas ao clima.

Será difícil alcançar a justiça climática sem justiça de género, porque os impactos das alterações climáticas e as respostas às mesmas estão profundamente interligados com as desigualdades de género.

– Acha que enquanto não houver justiça de género, não haverá justiça climática?

Obrigada por esta pergunta tão ponderada e incrivelmente importante. Será difícil alcançar a justiça climática sem justiça de género, porque os impactos das alterações climáticas e as respostas às mesmas estão profundamente interligados com as desigualdades de género. As mulheres e as minorias de género enfrentam frequentemente riscos e obstáculos desproporcionados no contexto das alterações climáticas devido às disparidades sociais, económicas e políticas existentes. Por exemplo, em muitas regiões, as mulheres são as principais responsáveis pela gestão dos recursos domésticos, como a água e os alimentos, o que as torna mais vulneráveis às perturbações induzidas pelo clima. Além disso, as normas de género podem limitar o acesso das mulheres aos processos de tomada de decisão e aos recursos que são cruciais para a adaptação e a resiliência às alterações climáticas.

Em geral, a justiça climática não pode ser plenamente concretizada sem abordar as desigualdades de género, uma vez que a justiça de género é fundamental para criar soluções climáticas equitativas e eficazes.

Neste contexto, gostaria de destacar o incrível trabalho realizado pelos nossos parceiros SHE Changes Climate, que estão na vanguarda da integração da justiça de género na ação climática. A sua missão é aumentar a representação das mulheres na política climática e na tomada de decisões, defendendo soluções climáticas sensíveis ao género e salientando a importância da liderança das mulheres na abordagem dos desafios climáticos.





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