Entrevista. “É preciso uma nova visão para a água”, afirma presidente da AEPSA
Para Eduardo Marques, presidente da Associação das Empresas Portuguesas para o Sector do Ambiente (AEPSA), a conjuntura adversa que estamos a viver impõe de forma ainda mais premente a redefinição dos modelos de governação vigentes.
O novo Plano nacional estratégico (PENSAARP 2030), em fase final de elaboração, define os objetivos e as medidas principais imprescindíveis nesta década para a melhoria sustentada do setor. Em entrevista à Green Savers, Eduardo Marques alerta para a necessidade da água se tornar uma área geradora de riqueza económica.
Qual a principal missão da AEPSA?
A AEPSA tem como objetivo principal a representação e a defesa dos interesses coletivos das empresas privadas de direito português com intervenção no setor do ambiente, nas áreas de: abastecimento de águas e saneamento de águas residuais; resíduos; aproveitamento e produção de energia; materiais e produtos reutilizáveis e/ou recicláveis; novas tecnologias e inovação; solos contaminados, bem como daquelas empresas cujo objeto seja a recuperação de produtos suscetíveis de reutilização ou reciclagem, designada, mas não exclusivamente a transformação e preparação de materiais ferrosos, não ferrosos, papel, cartão, VFV (veículos em fim de vida), e todos os materiais complementares, similares e afins passíveis de tratamento, no contexto da Economia Circular e no cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.
A associação também promove a investigação, o desenvolvimento e a inovação, potenciando e incentivando a cooperação entre as diversas entidades, públicas e privadas, nacionais e internacionais, que intervêm tanto no mercado nacional como a nível global. Portugal tem recorrentemente problemas no setor do ambiente, o que tem dificultado o desenvolvimento e o crescimento das empresas de forma sustentada e num ambiente de sã concorrência, pois dispomos de uma administração pouco ágil, licenciamentos morosos e complexos, uma inspeção pouco ágil, um sistema financeiro frágil, dificuldades ou impossibilidade em aceder aos recursos financeiros públicos, tais como os fundos comunitários, as constantes mudanças legislativas que não conferem estabilidade e previsibilidade ao mercado, dificultando o investimento e a assunção do risco.
Apesar deste adverso contexto, agravado pela situação de pandemia que vivemos, a AEPSA continua a dar respostas adequadas na atual conjuntura, com forte envolvimento dos seus associados, tendo sempre presente que o setor do ambiente é um pilar da economia nacional, cria valor acrescentado, riqueza, emprego duradouro e inovação.
Quais os principais desafios que se colocam ao setor da água?
A conjuntura adversa que estamos a viver, que muito ainda se pode agravar e que inevitavelmente impactará o setor da água, impõe de forma ainda mais premente a redefinição dos modelos de governação vigentes, como condição fundamental para o crescimento e sustentabilidade do setor e respeito pelos recursos naturais que são finitos e cada vez mais ameaçados, tendo em consideração as alterações climáticas que já vivemos de forma exponencialmente preocupante. É prioritária a redefinição da organização institucional do setor, que deverá ser mais direcionada para a eficiência operacional, financeira e ambiental, capaz de reconhecer e promover, de forma transversal, a adoção das práticas mais adequadas e a promoção da inovação, alicerçada nas novas tecnologias, permitindo que o setor da água, normalmente um setor consumidor de recursos e subsídio-dependente- se torne um setor gerador de riqueza económica, ao serviço dos cidadãos e que respeite integralmente a sustentabilidade ambiental, tendo em conta a imperatividade de implementação de modelos para a circularidade dos recursos e da economia.
É preciso consubstanciar uma nova visão para a água, não política e alicerçada muitas vezes em condicionamentos demagogicamente insustentáveis, para que este setor ganhe escala e aumente a sua contribuição em termos de valor para o País, enquanto mantém a sua capacidade de resiliência para superar os desafios mais exigentes, como o que vivemos.
Como é que as empresas privadas podem dar um maior contributo para o futuro?
Analisando os indicadores constantes nos relatórios de acompanhamento do plano estratégico nacional (PENSAAR 2020), verifica-se uma preocupante estagnação da maioria dos indicadores de desempenho, considerando a globalidade das entidades gestoras em baixa. No entanto, comparando-se o desempenho por tipo de modelos de gestão, verifica-se que o setor privado, que serve cerca de 20% da população, tem em geral melhores indicadores e é o que tem contribuído para aumentar a média nacional desses indicadores. Tendo em conta a reconhecida capacidade de atuação e o desempenho das concessionárias privadas, inequivocamente demonstrado pelos indicadores publicados pelo regulador anualmente no RASARP, reforçados ainda pelos prémios atribuídos pela ERSAR maioritariamente a entidades concessionárias privadas, estou certo de que o melhor para os portugueses é que sejam criadas condições, nomeadamente legislativas, que potenciem a participação do setor privado no mercado da água.
Não se pretendem situações de privilégio, antes pelo contrário, o que se pretende é que o mercado seja livre e concorrencial, sem barreiras ao setor privado como existem atualmente, que consideramos serem contrárias ao direito europeu, razão pela qual a AEPSA recentemente apresentou uma Denúncia à Comissão Europeia. Como exemplo, refere-se que a AEPSA, a pedido do governo, apresentou as suas propostas de adequação do DL 194 de 2009, há mais de dois anos, mas ainda sem consequências práticas. Estamos convictos que as alterações propostas vão no sentido da equidade entre entidades públicas e privadas, salvaguardam o interesse público e potenciam a participação do setor privado. As empresas privadas têm ainda grande capacidade de alocarem ao setor os financiamentos imprescindíveis aos investimentos tão necessários, nomeadamente na reabilitação das infraestruturas.
Em conclusão, as entidades privadas estão preparadas, disponíveis e têm os meios e o conhecimento para poder dar um forte contributo ao setor, praticando ainda tarifas mais competitivas que as entidades gestoras públicas comparáveis, em regime de sustentabilidade, se houver efetiva vontade política para envolver o setor privado, acabando com as barreiras artificiais atualmente existentes.
Quais as principais prioridades para a próxima década?
O novo Plano nacional estratégico (PENSAARP 2030), em fase final de elaboração, define os objetivos e as medidas principais imprescindíveis nesta década para a melhoria sustentada do setor. Na nossa opinião, estes são alguns dos aspetos que consideramos determinantes:
· Atingir-se a sustentabilidade económica das entidades gestoras A falta de sustentabilidade económica da maioria das entidades gestoras em baixo é uma evidência recorrente há muitos anos. O abastecimento de água em baixa apresenta prejuízos anuais de mais de 90 milhões de euros em cerca de metade dos municípios. Num universo de 256 entidades só em 77, onde se incluem as concessões privadas, as receitas cobrem os custos do serviço.
Verifica-se, em muitas entidades públicas, uma gravíssima situação de falta de sustentabilidade económica, apesar de subsidiarem fortemente a tarifa, através de impostos e dos orçamentos municipais, agravando insustentavelmente as finanças públicas e não cumprindo, assim, o princípio obrigatório do utilizador-pagador. É imprescindível promover mecanismos que garantam a sustentabilidade a prazo das entidades gestoras, através de trajetórias tarifárias que num regime de eficiência garantam a cobertura dos custos. A subsidiação, que é uma competência municipal, deve ser criteriosa, por exemplo via tarifa social, e não universal.
· Melhorar a capacidade de gestão e alterar o tipo de “governance” Verifica-se um forte déficit de gestão em muitas entidades gestoras, quer por falta de meios como por falta de conhecimento especializado. A auditoria contratada pelo governo português ao Banco Mundial, para monitorização do PENSAAR 2020, terminada no final de 2019, concluiu ser determinante melhorar os níveis de gestão o que só será conseguido através da empresarialização das entidades.
Efetivamente, entendemos que para se atingirem os necessários objetivos de melhoria do setor, para se aumentar o nível de desempenho e a qualidade de serviço aos utilizadores, que em média tem estado estagnado, o que é mais importante é a boa gestão, que só é conseguida em modelos de gestão empresarial, com incentivos e responsabilização dos resultados, baseados em indicadores de desempenho e com Incentivos ao mérito. A conjuntura adversa que estamos a viver (e que muito se pode agravar), impõe de forma ainda mais premente a redefinição dos modelos de governança, como condição fundamental para o crescimento e sustentabilidade do setor, e a obrigatória melhoria dos indicadores de desempenho nacionais.
· Incentivar um maior envolvimento do setor privado No nosso entendimento, é imprescindível proceder a alteração da legislação em vigor de forma a eliminar as barreiras existentes à participação do setor privado e igualar as condições de participação setorial. Tenho de acreditar, pese embora os muitos sinais em contrário, que o futuro do setor da água passa pela criação de condições para uma maior competitividade, com um maior envolvimento do setor privado para promover uma maior aposta na eficiência e na inovação, tornando o setor mais atrativo para o financiamento de que vai precisar.
· Incorporação equitativa no setor dos extraordinários fundos europeus (PRR e plano plurianual) Como é sabido, ainda há verbas significativas do Portugal 2020 por executar, situação recorrente como nos anteriores planos, isto é o setor público não tem sido capaz de atempadamente aproveitar na íntegra os fundos europeus disponibilizados. Os investimentos ainda por concretizar correspondem a candidaturas já aprovadas, maioritariamente da responsabilidade de entidades públicas, que são as únicas que nos últimos anos têm tido acesso a subsídios -fundos do POSEUR- ao investimento. Mas nem este inaceitável critério, que deixa de lado os privados, gerando desigualdades entre cidadãos de diferentes municípios, tem ajudado a aumentar os níveis de sustentabilidade do setor. O próprio POSEUR reconhece, nos seus relatórios, que existe “dificuldade na implementação dos projetos no terreno” também dada a “manutenção de algumas dificuldades associadas à natureza proeminente pública das entidades beneficiárias”
. Numa altura em que Portugal se prepara para receber o maior volume de sempre de fundos comunitários, terão de ser criadas as condições para potenciar uma melhor execução de fundos, envolvendo o setor privado, sem discricionariedade, e ao contrário do que tem acontecido. Os fundos devem ser alocados para projetos com mérito e não pelo tipo de entidade, devendo ser monitorizados os objetivos, com penalizações em caso de não atingimento.
De que maneira a poluição e as alterações climáticas influenciam a atual qualidade e oferta da água? Qual o cenário para os próximos anos em termos de falta de água em Portugal?
Atualmente, a qualidade e a quantidade dos recursos ainda não é um fator crítico na generalidade do país. No entanto, é expetável que no futuro próximo, as alterações climáticas possam originar problemas graves, nomeadamente na disponibilidade de recursos hídricos. Começamos a viver tempos de enorme incerteza e preocupação e assistimos a fenómenos climáticos extremos, quer de seca e com temperaturas recorde, como chuvas diluvianas nunca vistas, e tudo isto num ritmo acelerado de mudança. Não podemos ignorar os evidentes sinais climatéricos, pelo que há que atempadamente, isto é já, repensar, planear, simular diferentes cenários para estarmos melhor preparados para um futuro ainda muito incerto. É necessário construir ou adaptar os sistemas para serem mais resilientes em cenários adversos de diferentes níveis.
Entrevista publicada originalmente na revista Green Savers nº 4