Entrevista: “Na fotografia da Natureza, a verdadeira magia está na capacidade de desvendar o inacreditável”
Desde cedo, Laurent Ballesta sente uma atração especial pelos mundos marinhos que existem sob as ondas e por toda a vida que neles pulula. Biólogo marinho, explorador subaquático e célebre fotógrafo da Natureza, acredita que a proteção dos ecossistemas oceânicos é fundamental para o sucesso dos esforços mais abrangentes da conservação da biodiversidade.
No início deste ano, Ballesta esteve em Lisboa, na 11.ª edição da Cimeira Mundial dos Oceanos, onde marcou presença a convite da Blancpain. Mais tarde, falou com a Green Savers sobre o atual estado dos oceanos do nosso planeta, sobre os riscos da mineração em mar profundo e sobre as maravilhas que se escondem nas zonas mais escuras dos mares, onde não residem monstros assustadores, mas criaturas fantásticas que evoluíram e sobrevivem nas condições mais extremas, e que precisam de proteção face aos impactos da cada vez maior presença humana.
O Laurent é um biólogo marinho e fotógrafo da Natureza de renome mundial. Quando começou a sua paixão pelos oceanos e pela vida marinha? Quando se apercebeu que queria dedicar a sua vida aos mundos marinhos?
Eu cresci ao largo do Mar Mediterrâneo, onde, desde cedo, o meu irmão e eu fazíamos mergulho com snorkel e brincávamos como se fossemos exploradores subaquáticos, enquanto os nossos pais, que não sabiam nadar, relaxavam na praia. Inspirado pelos documentários de Cousteau, eu imaginava-me como um dos seus mergulhadores. Aos 13 anos, comecei a fazer mergulho com garrafa e, pouco tempo depois, comecei a dedicar-me à fotografia subaquática. Senti-me impelido a captar imagens do mundo subaquático para partilhar com a minha família e amigos, sendo que nenhum deles era mergulhador e muitas vezes duvidavam da veracidade das minhas histórias. Inicialmente, tratou-se de provar as minhas experiências, mas depois tornou-se uma demanda apaixonada para documentar cada ser vivo, peixe, caranguejo e alga que encontrava. Com o tempo, esta paixão transformou-se num desejo mais profundo: dar a conhecer, através das minhas imagens, a vastidão das profundezas oceânicas e os mistérios da vida subaquática.
A fotografia é uma parte muito importante da sua vida. Aliás, em 2021 e 2023, o Laurent foi reconhecido como o Fotógrafo de Vida Selvagem do Ano (Wildlife Photographer of the Year) pelo Museu de História Natural de Londres, tendo ganho o primeiro prémio. Pode falar-nos dessas duas fotos? O que é que elas significam para si e o que gostaria que elas significassem para o público?
A “Creation” – a fotografia das garoupas – é um testemunho de paciência, repetição e disciplina. Foram precisos cinco anos e 3.000 horas de mergulho para eu e a minha equipa conseguirmos captar essa imagem. A nuvem de ovos, com o seu destino incerto, assume a forma de um ponto de interrogação. Eu interpreto-a como uma representação das suas probabilidades de sobrevivência, com estudos a indicarem que apenas um ovo entre um milhão atingirá a maturidade e chegará a ser um peixe adulto capaz de se reproduzir. Contudo, além disso, o ponto de interrogação serve como um símbolo mais abrangente, refletindo as incertezas em torno do futuro da biodiversidade global. Esta incerteza persiste mesmo em lugares aparentemente intocados, como a Reserva Fakarava, na Polinésia Francesa, reconhecida como reserva ‘O Homem e a Biosfera’ da UNESCO.
A “The Golden Horseshoe” apresenta um desafio singular. Antes de conseguir esta imagem, nunca tinha visto uma fotografia de um límulo [ou caranguejo-ferradura] vivo a mover-se debaixo de água. Tipicamente, estas criaturas vivem em águas pantanosas ou lamacentas quase sem qualquer visibilidade. Esta foto em particular é interessante porque oferece um exemplo concreto de biodiversidade: uma gama diversa de organismos, cada um com o seu próprio lugar e propósito. O límulo, uma espécie antiga e altamente ameaçada, personifica o delicado equilíbrio entre a preservação e a saúde humana.
A fotografia é realmente um aliado importante dos esforços de conservação da vida selvagem e, especificamente, da vida marinha? De que forma?
Eu tenho muito cuidado ao fazer afirmações sobre o facto de ilustrar a vida selvagem contribuir significativamente para a sua preservação. Embora isso possa ter sido verdade há algumas décadas, hoje somos inundados por milhões de imagens nas redes sociais, e sou cético sobre a sua eficácia. A noção da “beleza da natureza”, infelizmente, transformou-se numa mercadoria, e, pior, pode por vezes fomentar o desejo em vez do respeito. É como eu, neste momento, vejo as coisas. Consequentemente, nos últimos anos, não tenho procurado retratar a beleza da natureza nem as atrocidades contra ela cometidas. Ao invés, tenho-me esforçado, o melhor que consigo, em revelar os mistérios da natureza que se escondem abaixo da superfície, onde o esteticismo serve apenas como distração. O verdadeiro sentimento que estas imagens devem evocar é um de perplexidade, de incompreensão, uma mistura de fascínio e de questionamento sobre os mecanismos subjacentes a este conjunto harmonioso de diferenças a que chamamos biodiversidade. Em última análise, é este enigma que me impele a correr riscos no mergulho e a pressionar os limites da minha disciplina. Pergunto-me se esta abordagem, menos convencional e mais experiencial, poderá ser uma forma de deixar uma impressão duradoura e de inspirar uma maior consciencialização sobre o mundo natural: abrir brevemente a janela através da qual podemos ver os reinos para lá do nosso entendimento.
Acredito que este sentimento de se aventurar no desconhecido pode inspirar mais respeito do que a mera contemplação de imagens estéticas. Na minha perspetiva, hoje precisamos muito mais de conhecimento do que de beleza. As imagens têm o poder para transmitir conhecimento e é precisamente isso que eu pretendo alcançar – ou, pelo menos, refletir sobre a dimensão da nossa ignorância através das minhas imagens.
Quando se lança em busca das maravilhas dos nossos mares e oceanos, o que procura? O que faz uma grande fotografia da vida selvagem?
Acredito que tenho uma necessidade inerente de testemunhar, captar e transmitir a essência daquilo que vejo. Sou constantemente atraído pelo chamamento dos territórios inexplorados, movido pelo desejo imperioso de ilustrar as minhas experiências. Quando as condições de mergulho são desafiadoras, pressionando os meus limites físicos e psicológicos, sinto-me ainda mais motivado para regressar com o testemunho o mais belo e autêntico possível.
Às vezes, sinto alguma inveja dos fotógrafos que trabalham em terra. Eles rumam livremente, com as câmaras lançadas sobre os seus ombros, equipamento leve em mãos, gozando do luxo do tempo e do espaço para contemplarem o que os rodeia. Podem mergulhar no ambiente que estão a captar, pausando quando querem para observar e, em última análise, criar. Este sentimento de liberdade e lazer faz-me sonhar, especialmente quando, como eu, uma pessoa está condicionada pelas leis da pressão nas profundezas do oceano.
Para mim, o que faz um grande fotógrafo não é a corrida para ser melhor do que os outros, mas, em vez disso, a demanda para captar algo diferente. Na fotografia da natureza, a verdadeira magia está na capacidade de desvendar o inacreditável, de revelar o que não é visível. Este potencial miraculoso é o que move a minha paixão e alimenta os meus esforços sob as ondas.
Quando falamos de conservação, por vezes parece que parte significativa dos esforços e do dinheiro via para a proteção de mamíferos terrestres, sobretudo em terra, alguns deles considerados espécies emblemáticas. Considera que a vida marinha é, de alguma forma, esquecida? Por que acha que isso acontece e como pensa que seria possível a vida marinha receber mais atenção da sociedade, dos governos e de investidores?
O maior perigo que os ecossistemas marinhos enfrentam reside no facto de serem negligenciados. O cultivo e disseminação das ciências naturais está em declínio, com muitas crianças incapazes de distinguirem uma curgete de uma beringela, quanto mais compreender a complexidade da vida subaquática nas regiões polares. Longe da vista, longe do coração – como podemos defender esses mundos se continuamos alheios ao seu esplendor, diversidade e singularidade? Acredito que o simples facto de mostrar estas criaturas de mundos distantes, lançando luz sobre vidas tão distantes da nossa, contribui em certa medida para a sua proteção. De[1]monstra que a realidade pode ultrapassar até mesmo os domínios da ficção e da ficção científica.
Ainda assim, confesso que a minha principal motivação, a minha fonte de prazer, é algo egocêntrica: é a emoção de encontrar essas criaturas, a excitação de ultrapassar obstáculos para chegar ao seu domínio e a gratificação de captar retratos destes seres no limiar da existência, de documentar cenários à beira do perigo. No entanto, desejo sinceramente que tudo isto tenha um significado e sirva a causa da conservação. Como se costuma dizer, as melhores batalhas são muitas vezes aquelas que se consideram perdidas antes mesmo de começarem.
Enquanto cientista, como vê o qual estado do nosso planeta? A comunidade científica há muitos anos já que vem avisando a humanidade de que estamos num caminho perigoso, que, em última instância, e se nada mudar, resultará em transformações catastróficas de toda a vida na Terra. Acha que estamos a fazer o suficiente para evitar o caos ecológico? O que mais precisa de ser feito?
Para mim, debater entre otimismo e pessimismo é fútil. Estes pontos de vista são meros posicionamentos, estagnados e inconsequentes por natureza. O otimista acredita que tudo se vai resolver, enquanto o pessimista prevê a desgraça. No fundo, ambos se resignam a esperar. Pessoalmente, não tenho ilusões, mas desempenho o meu pequeno papel, como qualquer cidadão, através das minhas escolhas de vida, dos meus votos e das minhas fotografias. Através da minha objetiva, retrato o que existe, o que pode em breve deixar de existir, mostrando hoje a sua beleza e como alimenta a nossa alma, reconhecendo a sua necessidade para a nossa sobrevivência amanhã.
As misteriosas profundezas dos oceanos são de particular interesse para si, certo? De facto, algumas das suas fotografias mais famosas são de vida nos cantos mais escuros dos oceanos. Porque é que admira as profundezas oceânicas? Acredita que as suas fotos podem, de alguma forma, ajudar as pessoas a perceberem que as profundezas não são desprovidas de vida, mas, ao invés, estão repletas de maravilhas e não de criaturas arrepiantes?
Durante as nossas expedições, eu e a minha equipa temos procurado sempre projetos que tentem explorar e estudar espécies ou locais remotos. Sempre que possível, tentamos também restaurar e melhorar os ecossistemas marinhos. Cada expedição dá-me a oportunidade de encontrar criaturas esquivas e dá-las a conhecer a um público mais alargado, sobretudo àqueles que não são mergulhadores, através de imagens sem precedentes. Como podemos nós aprender a apreciar estes universos das profundezas marinhas se não conhecermos o quão ricos e únicos eles são?
Encontrar, com sucesso, espécies raras em ecossistemas remotos e captar a sua essência é apenas o primeiro passo. O desafio seguinte reside na partilha dessas descobertas com outros. É crucial reconhecer que estas criaturas não são intrinsecamente raras; ao invés, as oportunidades para observá-las é que são raras. Ao dar a conhecer estes seres notáveis através do meu trabalho, pretendemos fomentar uma maior compreensão e apreço pelo mistério intricado dos nossos oceanos.
E por falar das profundezas oceânicas, o mundo está a debater a possibilidade de autorizar a exploração mineral no fundo dos oceanos. O que pensa dessa possibilidade? Alguns cientistas e ONGs têm alertado que não conhecemos suficientemente as profundezas oceânicas para ser possível identificar e mitigar eficazmente os potenciais efeitos negativos que essa atividade poderá ter nesses ecossistemas. Deveria o mundo dar um passo atrás, deixar a ciência seguir o seu rumo antes de se iniciar a mineração em mar profundo? Acha que isso é algo provável de acontecer?
Isso preocupa-me profundamente. Embora não seja especialista nos ambientes abissais, sinto uma enorme curiosidade por esse universo, especialmente dado que quase todos os dias equipas de investigação fazem descobertas maravilhosas. Por exemplo, as recentes descobertas feitas pelo Schmidt Ocean Institute, que revelaram um ecossistema desconhecido no mar profundo ao largo da costa do Chile, são nada menos do que extraordinárias. Esse ecossistema alberga mais de uma centena de espécies de peixes, crustáceos, moluscos e mais, que até então nunca tinham sido vistas por olhos humanos e foram maravilhosamente filmadas pela equipa.
Contudo, a essência da questão reside nas condições extremas em que estes ecossistemas se desenvolvem: enorme pressão, escuridão perpétua, escassas fontes de alimento e mínimo espaço habitável. Estas espécies já empurraram até ao limite máximo as barreiras da adaptabilidade. Mesmo a mais ligeira das alterações (e as atividades de mineração seriam uma grande alteração) poderá levar ao seu desaparecimento definitivo.
Por isso, sim, devíamos dar um passo atrás – é isso que todos os grandes pensadores defendem. Consumir menos em vez de procurar novos recursos. Infelizmente, custa-me a acreditar num tal cenário. Ao longo da História, a humanidade raramente abraçou a contenção voluntária ou os limites autoimpostos. Poucas sociedades elevaram o conceito de conservação a um ideal. Ao invés, a nossa História coletiva tem sido uma de consumo incessante, esgotando os recursos até não restar nada e depois procurando alternativas. Contudo, o nosso planeta já não oferece o espaço aparentemente ilimitado que oferecia nos primórdios da civilização humana.
Os mundos oceânicos recebem a devida atenção nos esforços de conservação da biodiversidade que são levados a cabo pelo mundo fora?
Certamente que não. Os mundos oceânicos recebem muito pouco, se é que recebem alguma coisa; não recebem o reconhecimento que realmente merecem. Um exemplo muito concreto é o caso das pradarias de ervas marinhas de Posidonia no Mediterrâneo. Estes prados, que se estendem por centenas de milhares de hectares, desempenham um papel fundamental enquanto berçários para numerosas espécies e servem como uma defesa natural contra a erosão costeira. Apesar da sua imensa importância ecológica, recebem desproporcionadamente pouco em troca dos serviços que prestam. Por exemplo, a Andromède Océanologie, a minha firma de consultadoria em ambientes marinhos, realizou uma análise económica que revela que os benefícios ambientais fornecidos pela Posidonia só em França chegam aos 46 mil milhões de euros por ano, abrangendo contribuições para as indústrias pesqueiras e esforços de proteção da costa. Contudo, o financiamento alocado para a proteção e restauro desses ecossistemas vitais é de apenas 4,8 milhões de euros ao ano. Esta discrepância gritante evidencia a necessidade urgente de priorizar a preservação da biodiversidade marinha, sobretudo tendo em conta os benefícios inestimáveis que proporciona quando está de boa saúde.
Se pudesse ter todos os líderes mundiais à sua frente e lhes pudesse falar enquanto embaixador das profundezas oceânicas, o que lhes diria e o que exigiria deles, no contexto de uma crise ecológica?
Não me vejo como um embaixador dos oceanos, mas acredito fortemente na necessidade de implementar regulamentos. É desanimador impor restrições num espaço tão livre como o mar, mas, com o aumento do número de utilizadores, tornou-se imperativo. Se não conseguirmos reduzir a população humana que vive nas nossas costas, então temos de investir mais no tratamento de águas residuais, impor quotas e regulamentos à pesca, tanto profissional como recreativa, e à caça submarina, reduzir a velocidade dos navios perto da costa e aumentar o número e a dimensão das áreas marinhas protegidas.
Num sentido mais lato, as atividades de lazer devem ser alvo de regulações mais rigorosas. Tal poderia passar pela proibição de equipamento excessivamente ruidoso que não sirva nenhum propósito útil. O mar não deve ser tratado como um parque de diversões onde as pessoas pagam para se divertirem sem pensarem duas vezes sobre isso. Em vez disso, deve ser visto como um santuário natural que exige respeito, embora isso não signifique que as pessoas não possam desfrutar da sua beleza. É essencial dar prioridade a atividades contemplativas, que muitas vezes promovem o respeito, ao invés de atividades de entretenimento que transformam a natureza num parque infantil, numa pista de corridas ou num local de festas.
A admiração e a contemplação são ações que não prejudicam a natureza e a sua biodiversidade. Temos de adotar uma mentalidade de contempladores ao invés de consumidores. Além disso, temos de prestar atenção aos nossos hábitos de consumo. A forma mais eficaz de evitar que os resíduos de plástico cheguem ao mar é produzindo menos e usando o menos possível. É crucial reconhecer também as ameaças invisíveis. Fibras têxteis sintéticas, por exemplo, são invisíveis, mas representam um grande perigo. Com cada lavagem, essas fibras são libertadas nos mares, infiltrando-se na cadeia alimentar e causando graves consequências, como reduções nas populações, tamanho e fertilidade dos peixes.
É vital compreender que os esforços de recolha de resíduos, por si só, não resolvem estes problemas, e projetos que prometem limpar o mar com navios milagrosos não passam de ilusões. A única verdadeira solução é reduzir a produção desses materiais nocivos.
Entrevista publicada originalmente na edição de junho de 2024 da revista Green Savers.