Entrevista: Preços mais elevados “levarão as pessoas a consumir menos água”



Em junho, Miguel Gouveia, economista e Professor na Católica Lisbon School of Business and Economics, apresentou o estudo ‘O valor económico da água em Portugal’.

O objetivo deste trabalho, que contou com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, era apresentar alguns dos principais problemas provocados pela escassez de água no país e “ajudar a compreender a desejabilidade da implementação de algumas das políticas públicas para a gestão da água que têm vindo a ser propostas”, como nele escreveu o académico.

Em entrevista à Green Savers, Miguel Gouveia falou das principais conclusões do estudo e sobre os problemas que Portugal enfrenta relacionados com a escassez de um bem cada vez mais precioso: a água.

 

Green Savers (GS): Comecemos pelo título que coroa esta obra. O que é realmente o “valor económico da água”?

Miguel Gouveia (MG): O valor económico da água depende da sua utilização. Ao contrário de outros bens ou de ativos financeiros, no caso da água as utilizações estão muito separadas, ou seja, não se dá o processo normal de arbitragem que ocorre naturalmente noutras áreas económicas que é comprar onde está barato e vender onde está caro.  Essa segmentação resulta em valores económicos da água diferentes em utilizações diferentes. No caso dos consumos urbanos, o valor da água (e que é conceptualmente muito diferente do seu custo de produção e distribuição) na prática é dado pela disposição a pagar dos seus utilizadores. Como em geral não tem havido racionamento, os consumidores urbanos de água utilizam água até ao ponto de os benefícios que retiram das últimas unidades consumidas serem mais ou menos iguais aos preços que têm de pagar por elas. A estimativa no estudo é que o valor da água em consumo urbano deveria crescer de uma média de 2,55 Euros por metro cúbico em 2022 para cerca de 3,2 Euros em 2030.

Contudo, a principal utilização da água captada em Portugal é na agricultura, para irrigação. Nesse caso o valor económico da água pode ser quantificado como a contribuição que cada metro cúbico de água dá para o valor acrescentado da produção. Os resultados a que o estudo chegou mostram que este valor depende muito das culturas, mas para o país como um todo, o valor de um metro cúbico de água usado na irrigação deverá estar perto dos 59 cêntimos.

Há outros benefícios gerados pelas mais diversas utilizações da água: na indústria, nos serviços (incluindo turismo e os campos de golfe) e na geração de energia elétrica (no arrefecimento das centrais térmicas e sobretudo na hidroeletricidade). Além destes há outros benefícios essenciais, como a contribuição para o meio ambiente e para o investimento no que se designa de capital natural. A todas estas utilizações da água correspondem valores económicos, os quais espero que venham a ser estimados em trabalhos de investigação futuros.

GS: No seu estudo, o Professor refere que “nos últimos 20 anos, a precipitação em Portugal diminuiu cerca de 20% prevendo-se uma diminuição adicional de 10 a 25% até ao final do século”. Mas também diz que Racionamentos da água podem conduzir a padrões de uso muito ineficientes”. Considera que o racionamento da água é a opção mais acertada para combater a escassez?

MG: O racionamento do consumo de água é uma medida que se pode justificar em situações extremas e urgentes, mas não é a melhor forma de enfrentar problemas estruturais de médio e longo prazo de escassez de água. Os racionamentos tendem a ser implementados de maneira cega, não permitem que a água seja poupada reduzindo as utilizações de baixo valor a fim de poder ser usada nas utilizações com maior valor, o que leva a ineficiências e desperdício económico.

O racionamento do consumo de água é uma medida que se pode justificar em situações extremas e urgentes, mas não é a melhor forma de enfrentar problemas estruturais de médio e longo prazo de escassez de água

Quando a água é escassa, isso só pode significar que tem mais valor. Uma maneira de atribuirmos mais valor a um bem é através de um aumento do seu preço. A médio e longo prazo a escassez de água para consumo urbano em áreas como o Algarve precisa de múltiplas respostas, incluindo a sensibilização e a informação da população, mas a atribuição de preços em consonância com o valor da água deverá ser sempre uma das respostas. Preços um pouco mais elevados, a prazo, levarão as pessoas a consumir menos água, a usá-la com mais cuidado e a adotar equipamentos como sanitas, chuveiros, máquinas de lavar, etc. que sejam mais eficientes no uso de água.

GS: Em 2023, o Conselho Nacional da Água (CNA) apontava que “como as últimas secas não têm tido efeitos generalizados no abastecimento público nem na disponibilidade de produtos alimentares, está enraizada uma perceção ilusória de abundância de água, que na realidade não existe”. Mas o Professor argumenta que “a escassez de água pode ser combatida por aumentos na oferta e na eficiência no seu uso e reduções na procura, no desperdício e nos usos de baixo valor”.

É possível equacionar aumentos na oferta e reduções na procura? Aumentar a oferta não criará ilusões face à real disponibilidade de água?

MG: Concordo totalmente com o diagnóstico do CNA: o facto de nos últimos anos não termos experimentado problemas no acesso à água no abastecimento urbano levou a generalidade da população a subestimar os problemas de escassez da água, e o seu mais do que provável agravamento nos próximos anos e décadas. Para o país no seu todo iremos precisar de aumentar a oferta, o que no fundo se traduz sobretudo por aproveitar uma maior percentagem da precipitação graças a mais armazenamento e menores perdas na distribuição, se bem que investimentos como a dessalinização ou o reaproveitamento possam também ter um papel. Este aumento da oferta via investimentos deverá contrariar a redução da oferta gerada pelas alterações climáticas e permitir que o consumo urbano se mantenha. Se o aumento da oferta da água o permitir, tal aumento poderá ser usado para viabilizar atividades de alto valor acrescentado, como é o caso de algumas culturas baseadas no regadio.

GS: O estudo traça também uma relação entre o poder económico das famílias, a dimensão dos agregados e o uso da água. Maiores rendimentos e maiores famílias resultam em maiores consumos. Mas diz que mesmo com as previsões a apontarem para contrações nas dimensões familiares, não é de esperar que o consumo reduza. Como explica essa relação?

MG: O consumo de água pelos agregados familiares caracteriza-se por algumas economias de escala. Para tornar esta ideia tão simples quanto possível, vejamos um exemplo: um agregado com duas pessoas não gasta o dobro de um agregado com uma pessoa isolada, mas um pouco menos. Há várias razões para isso, mas uma boa parte delas é que há alguns consumos comuns em atividades como cozinhar, lavar a casa, a roupa ou a loiça, eventualmente regar algumas plantas, lavar o carro, etc. Uma implicação destas economias de escala é que famílias maiores podem ter um consumo total de água maior, mas têm um consumo de água per capita menor. Ou seja, o consumo per capita de água, tudo o mais igual, será menor em agregados familiares com mais pessoas por comparação com o consumo per capita em agregados familiares com menos pessoas. É neste ponto que se torna relevante saber o que tem acontecido à dimensão dos agregados familiares. Em Portugal, tal como em muitos países europeus, o número de pessoas por agregado familiar tem vindo a descer, temos famílias cada vez mais pequenas. Por hipótese a população até poderia ficar na mesma ao longo do tempo, mas como as famílias são cada vez mais pequenas há cada vez mais famílias para uma mesma população total.

O fenómeno descrito contribui parcialmente para a crise da habitação: mesmo que a população não cresça, a procura de habitações irá aumentar porque o número de famílias está a aumentar e em geral cada família procurará ter a sua habitação. Para o caso que nos interessa mais diretamente, o consumo de água, a diminuição da dimensão das famílias põe as economias de escala a funcionar em marcha-atrás, ou seja com famílias cada vez mais pequenas tenderá a aumentar o consumo per capita de água. No estudo que realizámos, esse efeito, juntamente com o efeito do crescimento económico, com o aumento dos rendimentos, deverá levar a um aumento do consumo de água pelos agregados familiares em Portugal, mesmo que ocorra uma pequena diminuição da população total até 2030.

GS: Regressando à agricultura. O setor agrícola é apontado como o maior consumidor de água do país. Considera que é preciso ir ainda mais longe para reduzir o consumo de água na agricultura?

MG: As alterações climáticas são um problema grave para a agricultura de sequeiro. Algumas das culturas tradicionais de sequeiro podem deixar de ser viáveis ao longo dos anos nalgumas zonas do país pelo que se impõem estratégias de adaptação, por exemplo passando para culturas mais resilientes, reequacionando os padrões de uso da terra em culturas, pastos e silvicultura de acordo com as opções que fazem mais sentido em cada local.

O facto de nos últimos anos não termos experimentado problemas no acesso à água no abastecimento urbano levou a generalidade da população a subestimar os problemas de escassez da água, e o seu mais do que provável agravamento nos próximos anos e décadas.

Quanto à utilização de água para irrigação, apresentam-se vários desafios e oportunidades. Assim, quanto às áreas de regadio, o ideal seria a sua expansão, até para contrariar as perdas de produção que a agricultura de sequeiro muito provavelmente irá registar. A expansão do regadio será facilitada se alguns problemas forem resolvidos. Um primeiro problema é que alguns dos perímetros de rega existentes, os mais antigos, construídos há dezenas de anos, têm perdas de água muito significativas e precisam de grandes investimentos para melhorar a sua eficiência. As perdas nos perímetros mais modernos, como é o caso do Alqueva tendem a ser muito menores. Uma parte da questão que pode tornar este problema difícil é se os custos dos investimentos para reduzir as perdas de água forem excessivos. Se um metro cúbico de água para irrigação vale 59 cêntimos, mas a sua recuperação evitando fugas custa mais de um Euro, passamos de uma situação em que desperdiçamos água para outra em que desperdiçamos capital, um outro recurso escasso e do qual a economia e a sociedade portuguesas estão muito necessitadas. Temos de reduzir as perdas de água fazendo investimentos custo-efetivos.

Um segundo problema é a eficiência no uso da água uma vez chegada à exploração agrícola. Em muitas explorações modernas o uso da água é muito eficiente e baseia-se por exemplo na rega gota a gota, com orientações dadas por sistema de monitorização do solo e da atmosfera que permitem a otimização do uso da água. A percentagem da área irrigada por estes sistemas modernos tem vindo a crescer, mas será necessário ainda muito progresso para substituir os ainda existentes sistemas antigos e pouco eficientes por estes sistemas novos. O progresso e a modernização da agricultura portuguesa têm ido em boa direção, mas há ainda muitos passos a dar.

GS: Os efeitos das alterações climáticas são apontados como estando entre as principais causas da escassez de água. Mas o Professor destaca também o crescimento do PIB como uma delas. Assim, será possível harmonizar o desenvolvimento económico com a preservação de um recurso que se antevê que seja cada vez mais escasso?

MG: Apesar de estarmos perante um problema de escassez de água crescente, há estratégias de adaptação que podem minimizar o impacto, e até há oportunidades novas que o país pode aproveitar. Já referimos anteriormente o caso da adaptação na agricultura de sequeiro. Quanto ao regadio, faz sentido investir na sua expansão (possibilitada por mais armazenamento, mais eficiência, etc.) e na utilização das novas potencialidades em culturas de alto valor acrescentado. Se fizermos os investimentos certos, a contribuição da agricultura para o crescimento do PIB continuará a ser muito positiva, na linha do que tem acontecido nos últimos anos. A subida das temperaturas é ao mesmo tempo um problema e uma oportunidade, já que apesar da escassez de água crescente o território português passa a ser uma zona agrícola viável para culturas subtropicais, algumas das quais como é o caso do abacate, têm alto valor acrescentado.

Além dos investimentos para fins de exploração económica, deveremos fazer investimentos que combatam o processo de desertificação. A expansão de uma agricultura sustentável de regadio pode facilitar investimentos que sejam também um grande benefício para o meio ambiente e para o capital natural.

Por último, para compatibilizar crescimento económicos e escassez de água convém não menosprezar o papel dos preços. A água é cada vez mais valiosa e os preços da água nos seus vários usos têm de ser um reflexo deste valor crescente.

GS: Uma análise da APREN mostra que, entre 1 de janeiro e 30 de junho de 2024, cerca de 40% da eletricidade produzida em Portugal proveio de fontes hídricas. Considera que a escassez de água poderá, de alguma forma, pôr em causa a descarbonização e a transição energética?

MG: A escassez crescente da água não irá facilitar o crescimento da produção de hidroeletricidade, quer porque a precipitação em território nacional tenderá a decrescer quer porque também poderá diminuir o volume de água proveniente do território espanhol. É possível que haja investimentos nesta área que compensem, pelo menos parcialmente, esta escassez. Por exemplo, poderá haver barragens de fim único (só para a geração de hidroeletricidade ou só para irrigação) que possam ser convertidas a fins múltiplos. Apesar de poder haver alguma compensação parcial, para Portugal poder aumentar a percentagem da energia produzida por fontes renováveis muito provavelmente terá que investir noutras áreas além da hidroeletricidade como é o caso das energias de fontes solares e eólicas.

GS: No seu estudo, o Professor elenca o aumento da capacidade de armazenamento de água como uma das “estratégias a considerar”. E recentemente o Governo sugeriu estar a considerar duas novas barragens no Algarve. Considera que é preciso construir mais barragens? Ou as que existem são suficientes, mas não estarão a ser aproveitadas ao máximo para fins de armazenamento?

MG: Portugal é um dos países europeus com maior capacidade de armazenamento de água tendo em conta a superfície ou a população, ou seja, já temos uma capacidade de armazenamento instalada significativa. Assumindo que no passado se foram construindo as melhores barragens possíveis, não é óbvio que as que estão por fazer sejam muito custo-efetivas. Apesar disso têm surgido propostas por especialistas que merecem ser avaliadas quer em termos de impacto ambiental quer em termos de custo-benefício. É de esperar que pelo menos algumas destas propostas para novas barragens (ou reforços de barragens já existentes) possam passar esses testes e logo serem bons investimentos para o país. As avaliações têm de ser feitas com ponderação e rigor.

Mais armazenamento significa que temos mais capacidade para gerir a água no nosso território, o que implica que podemos ter mais e melhores instrumentos para combater a desertificação. Além de uma gestão cuidadosa garantindo os caudais ecológicos dos rios, a capacidade de gestão da água pode permitir outras intervenções com benefícios para o meio ambiente.

GS: O anterior Governo tinha já avançado com planos para a construção de centrais de dessalinização nas regiões do Algarve e do Alentejo. O atual, no programa com o qual concorreu às legislativas, dizia querer “acelerar a execução das centrais de dessalinização previstas e avaliar novas necessidades”, embora, recentemente, a ministra do Ambiente tenha dito que a dessalinizadora no Algarve deve ser vista como “última solução.

A dessalinização poderá mesmo ser a resposta para a escassez de água em regiões como o Algarve e o Alentejo?

MG: Trata-se de uma tecnologia cara, quer porque tem custos altos com o investimento inicial, quer porque o seu funcionamento requer consumos de energia elevados. No entanto tem havido progresso nesta tecnologia, o que tem levado a reduções nos custos. Por outro lado, temos a evidência empírica: a dessalinização é uma fonte de água muito utilizada pelo mundo fora e em particular no sul de Espanha, para responder a problemas semelhantes aos que nós experimentamos no Algarve e na zona do Alentejo não abrangida pelo Alqueva.

Idealmente, um bom planeamento para a oferta de água em Portugal teria em contas os custos e benefícios de investimentos seguindo as várias estratégias (armazenamento, redução de perdas, reutilização, dessalinização e até mesmo transvases), e tomaria em conta as suas complementaridades e substituibilidades para chegar a um portfolio de investimentos que garantisse a melhor relação entre os meios despendidos e os resultados obtidos.  Acredito que algum investimento em dessalinização se viria a revelar desejável porque a dessalinização tem um elevado valor como um seguro contra situações extremas. Se num ano a escassez da água fosse dramática e as outras fontes “secassem”, seria sempre possível contar com a água gerada pela dessalinização! Este valor de seguro poderá justificar o investimento nalguma dessalinização mesmo que à partida os custos e benefícios em situações de normalidade levassem à escolha de investimentos preferencialmente noutras estratégias.

GS: Olhando para o futuro, tendo por base o conhecimento científico que existe sobre a disponibilidade de água em Portugal, bem como sobre os fatores climáticos e ambientais, está otimista? Conseguirá Portugal realmente dar a volta por cima e fazer frente à escassez de água?

MG: Estou razoavelmente otimista. Defrontamos um problema crescente de escassez de água, mas partimos de uma situação em que há muitos investimentos e várias políticas que nos podem ajudar a adaptar à nova realidade e, quiçá, a tomar partido de novas oportunidades que as alterações climáticas globais nos trazem. Para isso precisamos de boas políticas no uso da água, com racionalidade económica, como é o caso do uso correto dos preços e precisamos de fazer investimentos bem planeados, onde haja uma boa relação entre os custos para a sociedade e para o meio ambientes e os resultados obtidos.

*Artigo originalmente publicado na edição em papel de setembro

 

 

 

 





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