Filipe Duarte Santos: Transição energética tem de ser “justa e equilibrada” e todos devem estar “informados das consequências da inação”



Professor na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e presidente do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável, falou connosco sobre o atual estado dos esforços de descarbonização do país, sobretudo das empresas, do que falta fazer para atingirmos as metas a que estamos obrigados, bem como acerca dos desafios globais à transição energética com vista ao abandono dos combustíveis fósseis, à consequente redução das emissões de gases com efeito de estufa e ao combate às alterações climáticas.

Embora ainda não estejamos no caminho que deveríamos estar já a trilhar para conseguirmos evitar os piores efeitos das crises planetárias, o académico não se deixa desesperar: “Tenho e terei sempre muita esperança na racionalidade humana e na sua capacidade de adaptação. Há uma esperança renovada em cada nova geração social humana.”

Green Savers (GS): As empresas têm ou devem ter um papel a desempenhar na criação de sociedades mais sustentáveis, em que o ambiental, o social e o económico estão lado a lado e não em campos distintos?

Filipe Duarte Santos (FDS): As empresas desempenham um papel fundamental no caminho para a sustentabilidade. Este papel é reconhecido no Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 17 da Agenda das Nações Unidas para 2030. Atingir a sustentabilidade requer o estabelecimento de parcerias entre os governos, o sector privado e a sociedade civil. O envolvimento efetivo das empresas neste esforço depende muito da sua dimensão e tipo de negócio. Cito um caso extremo: as grandes empresas petrolíferas, designadas correntemente por ‘Big Oil’, e de uma forma geral as empresas dos combustíveis fósseis, têm tentado sistematicamente atrasar a transição energética que nos daria a todos a possibilidade de evitar no futuro alterações climáticas mais destrutivas e onerosas do que as que já temos atualmente. Para além deste sector creio que há cada vez mais empresas que valorizam e contribuem efetivamente para a sustentabilidade e em particular para a transição energética.

GS: Em Portugal, o combate à crise climática chama as empresas à linha da frente? Existe, de facto, essa sinergia, essa colaboração? Ou o setor privado continua a ser deixado de parte, e visto mais como parte do problema do que como parte da solução?

FDS: Muitas empresas têm feito esforços notáveis para descarbonizar os seus processos de produção de bens e serviços. Pode sempre aumentar-se a ambição. Os avanços na descarbonização dependem muito de as empresas disporem de pessoal técnico devidamente capacitado e de terem condições financeiras para investir nas novas tecnologias que reduzem as emissões de gases com efeito de estufa (GEE). As empresas ganham maior visibilidade e melhor imagem junto do público se forem efetivamente ativas no processo da transição energética.

“As grandes empresas petrolíferas têm tentado sistematicamente atrasar a transição energética”.

GS: Estão as empresas portuguesas, realmente, na rota da sustentabilidade? Que passos têm sido dados e o que falta fazer?

FDS: Sim penso que estão no bom caminho, mas são necessários mais incentivos por parte do governo e maior valorização da sustentabilidade por parte dos consumidores para atingir as metas de 2030 e 2050.

GS: E na Europa? O Pacto Ecológico Europeu estabelece que até 2050 a União será neutra em emissões de carbono, e isso implica, naturalmente, a transformação das próprias empresas, com exigências de maior eficiente energética, com menores consumos, com menos emissões, com uma maior aposta na economia circular. Será isso compatível com a competitividade económica das empresas? Como pensa que as empresas podem trilhar esse caminho da melhor forma?

FDS: Na Europa, 11.700 das maiores empresas, incluindo bancos e seguradoras cotadas na bolsa, terão de comunicar as suas emissões de GEE pela primeira vez em 2025, para cumprir a Diretiva da União Europeia relativa aos Relatórios de Sustentabilidade das Empresas (CSRD). Nos relatórios de gestão cada empresa deve incluir as informações necessárias para se compreender o seu impacto nas questões da sustentabilidade, bem como as informações necessárias para compreender de que forma essas questões afetam a evolução, o desempenho e a posição social, económica e financeira da empresa. Os relatórios de 2025 terão de especificar as emissões de GEE dos seus exercícios fiscais de 2024.

De acordo com a avaliação global da Bloomberg NEF, as pontuações de descarbonização da UE caíram em 2024, em parte devido à descida do preço do carbono na UE, que o tornou menos eficaz na promoção da descarbonização. Além disso, os legisladores da UE chegaram a um acordo em dezembro de 2023 que permite aos Estados-Membros continuarem a subsidiar as centrais elétricas a carvão até, pelo menos, ao final de 2028, para aliviar os impactos da guerra na Ucrânia no setor energético, decisão que não se aplica a Portugal por já não ter essas centrais. Note-se que o carvão é o combustível fóssil que emite mais dióxido de carbono (CO2) por unidade de energia gerada.

GS: Estarão as empresas realmente a incorporar a sustentabilidade nas suas estratégias e modelos de negócio? É uma mudança organizacional que deverá ocorrer de cima para baixo ou deverá partir das bases? Os consumidores e clientes têm um papel a desempenhar na ‘revolução sustentável’ e na descarbonização das próprias empresas?

FDS: Os consumidores têm um papel central neste processo pois são eles que determinam em grande parte a procura de bens e serviços sustentáveis e o mercado tem de adaptar-se a essa procura. Há um longo caminho a percorrer neste processo correspondente ao ODS 12 – produção e consumo sustentáveis – cujas metas fixadas para 2030 são reduzir para metade o desperdício de alimentos per capita, tanto a nível de retalhistas como de consumidores, e reduzir os desperdícios de alimentos ao longo das cadeias de produção e abastecimento, incluindo os que ocorrem pós-colheita. Outras metas dizem respeito a reduzir a geração de resíduos através de atividades de prevenção, redução, reciclagem e reutilização.

“Se a transição energética não for feita rapidamente, os impactos gravosos das alterações climáticas vão prejudicar progressivamente a economia mundial”.

GS: Atendendo aos objetivos europeus no que toca à redução das emissões de gases com efeito de estufa, quais as principais dificuldades que as empresas enfrentarão?

FDS: São principalmente os custos associados e a dificuldade que alguns setores e indústrias têm em descarbonizar. Por exemplo, a descarbonização do setor da construção civil exige a coordenação e a adesão dos intervenientes em todas as fases do processo de planeamento, construção e gestão e inclui os fabricantes de materiais de construção (incluindo o cimento cuja produção tem emissões elevadas), urbanistas, arquitetos, financiadores, empresas de construção e gestores de edifícios.

GS: Quando se fala em descarbonização, o foco tende a recair sobretudo sobre as empresas, vistas como os principais emissores. No entanto, a sociedade em geral deve também ser incluída na equação, certo? Como podemos ou devemos todos nós contribuir para descarbonizar as sociedades nas quais vivemos?

FDS: A descarbonização envolve em primeiro lugar a sociedade, a governação local e central, as empresas e as organizações não-governamentais. Para haver aderência é necessário que a transição energética seja justa e equilibrada e que todos estejam informados das consequências da inação, tenham a literacia mínima necessária para compreender a complexidade do mundo atual e dos riscos climáticos que enfrentamos e finalmente adotem estilos de vida mais sustentáveis por iniciativa própria.

GS: Olhando para o atual estado de coisas, considera que será realmente possível alcançar a neutralidade carbónica e, consequentemente, climática até 2050?

FDS: Há que distinguir a neutralidade carbónica à escala global em 2050, que será muito difícil de atingir, e a neutralidade nos países com economias avançadas, em particular na UE. Penso que esta é menos difícil de conseguir devido à maior capacidade económica, financeira e tecnológica. Atingir as emissões globais líquidas nulas não significa de modo nenhum que as alterações climáticas desapareçam logo a seguir. A temperatura média global vai levar séculos a descer até chegar aos valores pré-industriais.

GS: Portugal está num bom caminho no que toca à descarbonização e a uma economia ambientalmente sustentável? O que falta fazer?

FDS: No conjunto dos países do Sul da Europa, Portugal está numa posição de destaque muito meritória no que respeita à mitigação, ou seja, à redução das emissões de GEE. Recorde-se que em 2023, 61% da geração de eletricidade teve origem renovável.

GS: Alguns defendem que a descarbonização será alcançada através de tecnologias de captura e armazenamento, outros que só será realmente possível com cortes drásticos nas emissões. Outros inclinam-se para noções de emissões líquidas, suportadas por ideias de compensações, como plantações de árvores e o restauro de ecossistemas. Qual será, na sua opinião, o melhor caminho a seguir?

FDS: As tecnologias de captura do CO2 atmosférico por processos químicos vão ser necessárias para cumprir os objetivos do Acordo de Paris porque o mundo se atrasou na descarbonização. Aliás o CO2 capturado irá ser usado para produzir combustíveis sintéticos neutros em carbono que serão usados nos motores de combustão interna dos automóveis e nos motores dos aviões atuais.

GS: Olhando para o futuro, apesar de toda a incerteza, considera que sociedades realmente descarbonizadas serão possíveis? Mesmo quando a exploração de combustíveis fósseis continua de vento em popa e quando esses mercados se mostram tão lucrativos como nunca?

FDS: A indústria dos combustíveis fósseis é muito poderosa porque representam desde há mais de 50 anos cerca de 80% das fontes primárias de energia globais. A percentagem mantém-se, mas a procura mundial de energia não para de crescer, impulsionada principalmente pelos países em desenvolvimento. Desde 2000 a procura global de energia cresceu 40% e esta procura foi satisfeita sobretudo pelos fósseis. As energias renováveis e a nuclear representam cerca de 14,1% e 5%, respetivamente. As renováveis não têm ainda a capacidade de crescer de modo a satisfazer o constante aumento da procura. Porém, se o uso de combustíveis fósseis não for descontinuado os impactos das alterações climáticas serão cada vez mais destrutivos para a economia. De acordo com a evolução atual da mitigação os custos dos danos climáticos globais serão superiores aos custos médios da mitigação em 2050 (seis biliões de em dólares internacionais de 2005) por um fator de aproximadamente seis (Kotz et al, 2024).

GS: Considera que existe verdadeiramente uma vontade das sociedades para deixarem para trás a era dos combustíveis fósseis e para abraçar novos modos de vida? Estarão as pessoas dispostas a abrir mão de alguns confortos em nome da proteção do planeta e dos seus próprios futuros?

FDS: Os confortos são relativos porque se a transição energética não for feita rapidamente, os impactos gravosos das alterações climáticas vão prejudicar progressivamente a economia mundial, eliminar alguns desses confortos e agravar as desigualdades. São escolhas difíceis para a humanidade.

GS: Na sua ótica, como seria uma sociedade (a portuguesa, por exemplo) realmente descarbonizada? Seria assim tão diferente das que temos hoje, em termos de como funcionam?

FDS: Energia acessível e abundante é essencial à civilização humana pós-revolução industrial. É a força motriz da economia global e está na base das forças e do equilíbrio geopolítico. A transição energética irá contribuir para redesenhar o sistema energético mundial e a ordem geopolítica que lhe está associada. Atingir a neutralidade global do CO2 vai ser muito difícil porque os fósseis alimentam a maior parte das infraestruturas mundiais: edifícios de habitação e serviços, centrais térmicas, siderurgias, cimenteiras, fábricas de produção de alumínio, de indústrias químicas e de transformação de matérias-primas, telecomunicações, automóveis, comboios, navios, aviões e muitas outras instalações e equipamentos de produção e consumo de bens e serviços. Cada um destes objetos físicos deverá funcionar no futuro sem emissões de GEE no seu ciclo de vida, o que constitui uma transformação exigente que conduzirá a um mundo com uma forma de funcionamento diferente.

GS: Quando pensa sobre o futuro, do planeta, das sociedades, de todos nós (humanos e não-humanos), é com esperança e otimismo? Ou, por outro lado, olha para os tempos que estão por vir com apreensão? Porquê?

FDS: Tenho-me dedicado a pensar sobre o passado, o presente e o futuro das sociedades humanas, sobre os desafios atuais e futuros que enfrentam, sobre a nossa grande fé na tecnologia, sobre a interferência da humanidade no sistema Terra e de como essa interferência está a degradar perigosamente a “nossa casa comum”. Refiro-me em especial a três livros que escrevi: “Que Futuro? Ciência, Tecnologia, Desenvolvimento e Ambiente” publicado em 2007 pela Gradiva, depois atualizado e reformulado numa versão em inglês “Humans on Earth. From Origins to Possible Futures” publicado em 2012 pela Springer e “Time, Progress, Growth and Technology. How Humans and the Earth are Responding” publicado pela Springer em 2021. Procuro compreender o que se passa no mundo atual em termos sociais, económicos e ambientais de forma tão racional e realista quanto possível, e não me deixar arrastar pelo otimismo ou pelo pessimismo. Tenho e terei sempre muita esperança na racionalidade humana e na sua capacidade de adaptação. Há uma esperança renovada em cada nova geração social humana.

“O problema das alterações climáticas tem natureza global e, portanto, para se resolver exige a ação e a cooperação entre todos os países, sem exclusão de nenhum.”

GS: Se tivesse um poder absoluto para mudar o mundo, para protegê-lo, o que faria?

FDS: Creio que o essencial é conhecermo-nos melhor a nós próprios, conhecer as nossas imensas qualidades, mas também as limitações e fraquezas. Todas têm origem na nossa evolução biológica, desde os nossos mais remotos antepassados e em especial desde o surgimento do género Homo há cerca de 2,7 milhões de anos, e na evolução cultural que se acelerou há cerca de 40000 anos e depois de forma extraordinária desde a Revolução Industrial, há cerca de 250 anos. Se nos conhecermos melhor penso que criamos as condições de nos protegermos de nós próprios, ou seja, sabermos construir um mundo mais sustentável, com mais paz e menos guerra, sem estar dependentes de um consumismo ilimitado de bens e serviços e onde a natureza seria respeitada pelo simples facto de nos darmos conta de que somos parte dela. Estas ideias simples poderão ser surpreendentes (Santos et al., 2024; 2024a).

GS: Acha que começámos a olhar para as alterações climáticas e para a descarbonização tarde demais? Ou ainda vamos a tempo? Alguns cientistas dizem que a janela de oportunidade para fazermos alguma coisa de significativo está a fechar-se rapidamente…

FDS: Estamos sempre a tempo de tornar mais célere a transição energética à escala global. Há sempre esperança de finalmente nos unirmos no mundo e cooperar de modo a que os países mais desenvolvidos, ou seja o Norte Global, diminuam rapidamente as suas emissões de GEE. Não chega, é também necessário que, devido à sua maior capacidade económica, tecnológica e financeira, se disponibilizem a ajudar mais os países menos desenvolvidos, ou seja, o Sul Global, a efetuar a transição energética e a protegerem-se dos impactos destrutivos das alterações climáticas. O problema das alterações climáticas tem natureza global e, portanto, para se resolver exige a ação e a cooperação entre todos os países, sem exclusão de nenhum. Os do Norte Global, mais desenvolvidos e com maior poder económico, financeiro e militar têm maior responsabilidade na sustentabilidade da civilização humana. Num mundo mais fragmentado e desigual, com maiores tensões e clivagens geopolíticas e com duas guerras que convocam todos os países a posicionar-se, torna-se muito mais difícil atingir a sustentabilidade. A guerra é absolutamente incompatível com a sustentabilidade e em particular o desafio das alterações climáticas torna-se muito mais difícil de resolver.

 

Referências bibliográficas mencionadas pelo interlocutor:

– Kotz, M., Levermann, A. & Wenz, L. The economic commitment of climate change. Nature 628, 551–557 (2024). https://doi.org/10.1038/s41586-024-07219-0

– Santos, F.D.; O’Riordan, T.; Rocha de Sousa, M.; Pedersen, J.S.T., The Six Critical Determinants That May Act as Human Sustainability Boundaries on Climate Change Action. Sustainability 2024, 16, 331. https://doi.org/10.3390/su16010331

-Santos, F.D., O’Riordan, T., de Sousa, M.R. et al., 2024a, Unveiling global sustainability boundaries: exploring inner dimensions of human critical determinants for sustainability. Sustainability Science. https://doi.org/10.1007/s11625-024-01462-0





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