Morcegos em Portugal: Um dos grupos de mamíferos mais ameaçados do continente



Em Portugal continental, está confirmada a ocorrência de 28 espécies de morcegos. Muitas são estritamente cavernícolas, isto é, durante o dia abrigam-se em grutas, cavernas e até antigas minas.

Outras são arborícolas, vivendo em cavidades nas árvores, e, por isso, estão “mais dependentes de manchas florestais grandes”, explicou-nos Ana Rainho, investigadora do Departamento de Biologia Animal, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL). Mas sobre elas ainda pouco se sabe.

Ana Rainho, investigadora do Departamento de Biologia Animal, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL).

De acordo com a especialista em Chiroptera, a ordem taxonómica a que pertencem os morcegos, essas espécies ocorrem com maior frequência no norte do território continental português.

Existem ainda espécies que se distribuem um pouco por todo o país, vivendo em telhados e mesmo em caixas de estores. “Qualquer buraquinho numa parede serve para eles criarem um abrigo”, disse a cientista, pelo que “existem praticamente em todo o lado”.

Embora noutros países, tropicais e subtropicais, existam espécies de morcegos que se alimentam também de néctar e de frutos, as que ocorrem em Portugal alimentam-se todas de invertebrados, dependendo exclusivamente de artrópodes, como insetos e aracnídeos. “Não temos frugívoros em Portugal”, garantiu-nos Ana Rainho, pois “não temos fruta o ano todo”.

Contudo, embora algumas espécies, ao longo de milhares de anos de evolução, se tenham especializado num ou noutro grupo de artrópodes, outras “são mais flexíveis” e procuram tirar partido de “picos de abundância”.

Contou-nos Ana Rainho que essas espécies mais flexíveis tendem a alimentar-se dos artrópodes que, num dado momento e numa dada área, sejam mais numerosos. “Porque os morcegos precisam mesmo de comer muito”, afirmou, uma vez que são animais que “só para voar, gastam muita energia e têm também um metabolismo muito acelerado”.

O morcego-rato-pequeno é a única espécie Criticamente em Perigo no continente

No Livro Vermelho dos Mamíferos do continente, lançado no passado mês de abril, foram analisadas 25 das espécies residentes, sendo que o morcego-rato-pequeno (Myotis blythii), exclusivamente cavernícola, foi a única a ser classificada como estando Criticamente em Perigo.

Segundo os autores, “esta espécie encontra-se numa situação muito crítica em Portugal, sendo a sua população muito reduzida”, e tudo aponta para que, durante os próximos 20 anos, a população possa ainda declinar 80%.

A bióloga Ana Rainho, que fez parte da coordenação da equipa de especialistas que analisou o estado de conservação dos morcegos em Portugal continental, cujos resultados fazem parte do Livro Vermelho, confessou-nos que ainda não se sabe o suficiente sobre a razão pela qual eles estão tão ameaçados no país.

Morcego-de-peluche (Miniopterus schreibersii).
Foto: Ana Rainho

“Sabemos que a população está a declinar, temos muito poucas colónias e com poucos indivíduos”, explicou a investigadora do Departamento de Biologia Animal da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, apontando que Portugal “está no limite da distribuição de todas as espécies de morcegos”. Por isso, algumas “são naturalmente mais escassas e mais raras”, mas o facto é que os abrigos dos quais depende o morcego-rato-pequeno “são poucos” e “não tem havido aumentos” das populações.

No continente, só são conhecidas três colónias de morcego-rato-pequeno, duas em Trás-os-Montes e outra no Algarve, e, no total, não devem ter mais de mil indivíduos. Ana Rainho disse que a espécie está “a diminuir a olhos vistos” e que “é preciso aumentar o conhecimento” sobre ela e “perceber mesmo o que se passa”.

O morcego-rato-pequeno depende fortemente de zonas herbáceas para se alimentar, que têm vindo a diminuir no país, sobretudo para dar lugar a zonas agrícolas. “Eles dependem muito de pastagens naturais, e esse é um tipo de habitat que já não é muito frequente e poderá ser essa uma das razões da redução populacional”, sugeriu a investigadora.

Além da expansão da agricultura, também o uso de pesticidas e a destruição de abrigos fazem parte do rol de ameaças que, cada vez mais, pressionam as populações dessa espécie.

Pequeno grupo de morcegos-ratos-grandes (M. myotis) com um morcego-de-ferradura-mourisco (R. mehelyi).
Foto: Ana Rainho

No mais recente Livro Vermelho dos Mamíferos, outras espécies de quirópteros recebem estatutos de ameaça. O morcego-de-ferradura-mediterrânico (Rhinolophus euryale), o morcego–de-ferradura-mourisco (Rhinolophus mehelyi) e o morcego-lanudo (Myotis emarginatus) estão Em Perigo, por terem “populações pequenas, áreas de ocupação e número de localizações reduzidos e declínio estimado da qualidade do habitat e do número de localizações”, e outras três são consideradas espécies vulneráveis à extinção.

Como tal, os morcegos são um dos grupos de mamíferos com maior percentagem de espécies ameaçadas no continente, só ficando atrás dos cetáceos.

O facto de as fêmeas só darem à luz uma cria por ano é também um fator de pressão sobre as populações de morcegos. Se os abrigos forem perturbados ou destruídos, pode perder-se uma geração inteira, afetando fortemente a recuperação de espécies em declínio.

A conservação não vem sem custos

“Temos muitas pessoas a trabalhar na conservação dos morcegos em Portugal”, disse-nos Ana Rainho, salientando, no entanto, que é preciso mais financiamento. “A monitorização dos abrigos cavernícolas é completamente financiada pelo [Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas] e, muitas vezes, o ICNF não tem capacidade para suportar todos os custos, porque é um projeto a nível nacional.”

Além disso, a bióloga defendeu que é preciso fazer com que as áreas agrícolas “não sejam zonas de exclusão de morcegos”. Isso passa pela diversificação, evitando as monoculturas, e pela instalação ou preservação, por exemplo, de pequenos bosquetes e manchas de vegetação natural que promovam a fixação e a abundância de invertebrados, dos quais os morcegos dependem. Os morcegos podem ainda ser valiosos aliados dos agricultores, ajudando a controlar populações de insetos que, sem essa predação, podem tornar-se ‘pragas’.

Pequeno grupo de morcegos-de-ferradura-mouriscos (R. mehelyi) com um morcego-rato-grande (M. myotis).
Foto: Ana Rainho

Os parques eólicos podem também constituir ameaças, uma vez que, além das colisões, fenómeno que também afeta todo o tipo de aves, as diferenças de pressão causadas pelo movimento das pás podem ser suficientes para ‘desfazer’ os órgãos internos do animal, um fenómeno descrito como barotrauma.

Para Ana Rainho, a conservação dos morcegos passa muito pelo aumento do conhecimento sobre as espécies e pela sua transmissão às pessoas, e acredita que todos nós temos um papel importante a desempenhar para impedir que esses mamíferos voadores desapareçam.

*Artigo publicado originalmente na revista da Green Savers de SET/OUT/NOV de 2023





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