Seca no sul de Angola leva pastores cada vez mais longe em busca de pasto
Indiferente a cimeiras climáticas ou debates sobre transição energética, a seca avança inexoravelmente em Angola, ameaçando modos de vida tradicionais de pastores como os Mucubais do Namibe, obrigados a procurar pastagens cada vez mais longínquas para o gado.
Esta é uma das províncias do Sul de Angola que mais tem sentido os efeitos da seca severa que afeta o país desde 2012, com estações das chuvas cada vez mais curtas e solos em erosão, acompanhada de uma crescente escassez de alimentos para pessoas e animais.
Estima-se que, nesta região, 45% da população vive em situação de crise ou emergência a nível nutricional.
No município do Virei, um dos mais afetados, a percentagem sobe para mais de 60%.
Chegar até lá não é fácil.
A placa que indica o cruzamento para Virei está praticamente à saída da cidade de Moçâmedes, mas a estrada está deteriorada e os cerca de cem quilómetros de gravilha e pedras pontiagudas desincentivam o aluguer de viaturas, levando os que acedem a cobrar preços astronómicos para compensar a manutenção.
Pelo caminho, vão surgindo as formas tentaculares características das ‘welwitschias’, espécie de planta autóctone e das poucas formas de vegetação que prospera nesta paisagem semidesértica e áspera, a par de arbustos e acácias espinhosas.
Ali vivem quase 43 mil pessoas, entre Mucubais, Cuisses, Muhakaona e Muílas, distribuídos por uma extensão territorial de cerca de 15.000 quilómetros quadrados, onde caberia meio Alentejo, segundo dados do administrador adjunto do Virei, Narciso Pires.
Criadores de gado transumantes, os Mucubais têm nos bois a sua identidade e principal fonte de riqueza, mas a falta de chuva obriga a ir cada vez mais longe em busca do capim verde que lhes serve de alimento.
Chegam a fazer 300 quilómetros levando as manadas a pé até às vizinhas províncias do Cunene e da Huíla, relata à Lusa Narciso Pires, sublinhando que não cai “chuva de verdade” há mais de uma década.
Os rios que correm na região são intermitentes e, por esta altura, época das chuvas, que teimam em não cair, apenas são visíveis as formas da água desenhadas no leito arenoso.
Homens e bois partiram em abril e só vão regressar “quando a chuva voltar a cair e o capim crescer”, diz Paihama Catenga, responsável da administração para os setores de Cultura e Turismo.
Para trás ficaram mulheres, crianças e mais velhos, que sobrevivem como podem durante os meses de ausência. Comercializam cabritos e galinhas à beira de estrada e, por vezes, levam até aos mercados alguns produtos locais como o mahungo (larvas de inseto) ou o óleo para cabelo a que chamam mupeque.
Quando vão à sede do município, as mulheres caminham quase 30 quilómetros, muitas vezes descalças, ignorando o desconforto do solo escaldante e semeado de escorpiões.
Queixam-se da fome e da dureza da vida, mas resistem a abandonar os hábitos tradicionais e quando se pergunta se gostariam de ir para a cidade, a resposta é pronta: “já tem lá muita gente. Estamos melhor aqui”, diz à Lusa Muanpitacana, acompanhada de um grupo de mulheres e algumas crianças, que vivem numa ‘onganda’ (aldeia provisória) próxima das grutas de Tchitundo-Hulo.
Estão ornamentadas de missangas, cobrem-se com panos azuis, deixando os seios à mostra e exibem os dentes da frente limados em forma de triângulo (mpeleleco), caraterísticos da sua cultura, atributo sem o qual não se sentem mucubais.
“E ficamos mais bonitas”, sorri, vaidosa, Muanpitacana.
Tidos como resistentes e “insubmissos” pela administração colonial portuguesa, os mucubais protagonizaram episódios macabros nas décadas de 1930 e 1940, documentados pelo historiador Rafael Coca de Campos, autor de Kakombola: O genocídio dos Mucubais na Angola Colonial, 1930 – 1943.
Num artigo publicado em 2 de maio de 2022, no site “Esquerda.net” o académico descreve o que uma testemunha escreveu ao governador da província da Huila em 1941, chocada com o que tinha visto em Moçâmedes: “escassas dezenas de miseráveis pretos, homens, mulheres e crianças, que mais pareciam esqueletos cobertos de pergaminho negro (…) arrastando-se como animais, atravessaram a cidade, no meio de uma numerosa guarda de baioneta calada”.
Segundo Rafael Coca de Campos, terão sido encarcerados em campos de concentração e de trabalho forçado, onde a maioria “pereceu em decorrência da brutalidade do sistema de trabalho”.
Hoje os tempos são outros, mas nas tradições dos mucubais pouco mudou.
Quem tem manadas vai atrás de pasto. Os que não têm, “passam fome mesmo”, resigna-se Muantipacana.
Porque ser mucubal é criar bois. A manada deve ser aumentada, não para vender ou para comer, mas para ostentar a riqueza e estatuto social.
Homem sem bois não casa: “a família não lhe dá a mulher, não tem como sustentar”, afirma, categórica, Muantipacana.
Os bois funcionam como o banco dos mucubais e tal como não se pergunta a uma pessoa quanto dinheiro tem na conta, também não é suposto perguntar a um mucubal quantas cabeças de gado possui, avisam-nos.
“Nunca foi cultura dos mucubais vender ou matar os bois para comer, preferem transacionar cabritos ou galinhas”, explica Paihama Catenga.
Muetchiavi, mãe de sete filhos, é outra das mulheres das comunidades do Virei que falou à Lusa sobre as suas provações.
Diz que não consegue cultivar porque não chove e Paihama confirma que, por esta altura, quando há alguma precipitação a secura da terra e o calor absorvem imediatamente toda a água, inviabilizando as produções agrícolas.
Por isso, vão-se alimentando de frutos silvestres, leite e fuba de milho com que fazem o tradicional funge. Por vezes, não comem nada e a magreza atesta a dieta pobre e pouco variada.
Se a seca continuar, o gado vai desaparecer, lamenta a mulher que recorda que antes, “quando a chuva caía”, os maridos ficavam.
Bauaiala conta que chegou a ter “muitos bois”, mas a seca foi matando os animais e ficaram só os cabritos.
O filho, a quem restaram ainda algumas cabeças de gado, foi procurar pasto na fronteira com o Cunene.
“Nós dependemos do gado e está a morrer, o governo tem de nos ajudar”, apela.
Muanpitacana reforça as súplicas. Pede ajuda alimentar, um posto médico, furos de água. “Um não dá para beber, outro está avariado”, diz, acrescentando que estão a recorrer a uma cacimba “de risco” onde vão buscar água cada vez mais fundo.
“Precisamos de apoio”, apela. “Nós confiamos no governo para nos apoiar, não podem nos abandonar, vamos morrer à fome”, lamenta-se.
Mais à frente, já a caminho do município, um rapazito mucubal segue sozinho na estrada, pastando o seu rebanho de cabras, com a inseparável catana que serve para abrir caminho, como defesa pessoal e para disciplinar as reses mais rebeldes.
Um dia também ele, que nunca ouviu falar de alterações climáticas, deixará o deserto com os seus bois, à procura do capim verde, cada vez mais distante.