Tapada Nacional de Mafra: Um ‘oásis’ de vida selvagem a poucos quilómetros da capital
Com 833 hectares de floresta madura e com quase 300 anos de história, a Tapada Nacional de Mafra é um oásis de vida selvagem e biodiversidade a poucos quilómetros de Lisboa. Nas primeiras horas da manhã, é praticamente impossível não ouvir os chamamentos de várias aves, escutar o restolhar que denuncia a presença de javalis ou de cervídeos e, sobretudo, deixarmo-nos levar pelas extensões de paisagem de tons verdes que se desdobra a perder de vista.
Esta segunda-feira, a propósito do Dia Internacional da Biodiversidade, fomos conhecer a diversidade de espécies que habitam a Tapada, a bordo de um veículo elétrico inaugurado hoje que foi decorado pelo artista português Edis One, conhecido por transformar em murais e outras formas de arte urbana o que a Natureza tem de mais belo.
Ao longo do trilho, com o sol já a começar a fazer-se sentir, dissipando o ar fresco da manhã, gamos (Dama dama) escondiam-se por entre a vegetação, tentando passar despercebidos aos olhares humanos curiosos. Noutros locais, grupos de javalis (Sus scrofa) foçavam o solo em busca de raízes, fungos e frutos, com a sua pelagem acastanhada a reluzir à luz matinal.
Os javalis, artiodáctilos selvagens também conhecidos como porcos-monteses, passam, regra geral, 95% do seu tempo à procura de alimento, sendo o restante passado a descansar, normalmente a dormir.
Nelson Neves, um dos responsáveis da cooperativa que gere da Tapada de Mafra, contou-nos que a população local de javalis é ‘pura’, significando isso que não resulta do cruzamento com porcos domésticos (Sus scrofa domesticus), subespécie do javali selvagem. É por essa razão que podemos pensar que são animais anormalmente pequenos, não chegando os maiores a pesar mais do que 60 quilogramas, mas, diz-nos o nosso interlocutor, é assim que, por natureza, devem ser.
Caçador e representante do Clube Português de Monteiros, que nos confessou ter abraçado o projeto da Tapada “não pelo aspeto da caça, mas sim pela biodiversidade”, lamentou que, apesar de muito se falar de biodiversidade, “as pessoas importam-se muito pouco com ela”, salientando que é crucial aproximar os mais novos da Natureza, “para que possam conhecer a realidade” e os animais selvagens que connosco partilham o planeta.
Sublinhando que na Tapada não existem animais em cativeiro, que todos vivem em liberdade e todos são de espécies autóctones, o responsável afirmou que “queremos mantê-los selvagens” e que “precisamos de saber respeitar o espaço deles na Natureza”.
Sobre o javali, em particular, “muito se fala que é uma praga”, disse Nelson Neves, mas destacou que, apesar de se observar uma expansão das populações da espécie, as ‘invasões’ de ambientes ocupados por humanos e que podem ter desfechos trágicos, se deve a uma “regressão” do seu habitat natural.
“Eles [javalis] têm de se concentrar mais, têm de entrar pelas cidades adentro, porque nós lhes estamos a retirar um espaço que é deles”, comentou, apontando que “se houvesse disponibilidade de alimento e de habitat”, os javalis não rumariam pelas áreas urbanas.
Nelson Neves traçou uma comparação com o lobo-ibérico (Canis lupus signatus), afirmando que os ataques desse predador aos rebanhos, especialmente de ovinos, se devem ao desequilíbrio ecológico causado pela perda de espécies-presa.
“O lobo não tem, neste momento, alimento que o impeça de ter de ir aos rebanhos. Se tivesse, de certeza que não se aproximava das casas”, frisou. “É uma questão de sobrevivência.”
Mais de 160 espécies marcam a fauna da Tapada de Mafra
Na Tapada ocorrem também muitas outras espécies, mais difíceis de observar, por serem esquivas e sobretudo crepusculares, como as raposas (Vulpes vulpes), ou por passarem a maior parte do seu tempo debaixo do solo, como as toupeiras (Talpa europaea), ou no topo das árvores, como os esquilos, incluindo o elusivo esquilo-vermelho (Sciurus vulgaris).
Além disso, há também registo da presença de espécies com estatuto de ameaça, como a águia-de-bonelli (Aquila fasciatus) e o morcego-de-Bechstein (Myotis bechsteinii), que se consideram estar ‘em perigo’, e o açor (Accipiter gentilis), o morcego-de-ferradura-pequeno (Rhinolophus hipposideros) e a víbora-cornuda (Vipera latastei), com estatuto de conservação ‘vulnerável’.
No total, são mais de 160 espécies de animais que rumam pela Tapada de Mafra, fazendo dela um refúgio para a biodiversidade, cada vez mais pressionada pela degradação ou destruição dos seus habitats naturais, bem como pela captura excessiva, por práticas agrícolas insustentáveis e, claro, pelos efeitos das alterações climáticas.
Ana Sá, a bióloga que há mais tempo trabalha na Tapada e também uma das guias, afirmou que as espécies que se destacam mais, e que são também “as mais emblemáticas”, são os gamos, os veados (Cervus elaphus) e os javalis.
“Mas a Tapada é muito mais do que isso”, afiançou, com “uma grande biodiversidade de répteis, de anfíbios, de aves, de invertebrados e de flora” e, claro, de mamíferos.
As estimativas, que, ainda assim, “podem estar aquém da realidade”, apontam para 200 javalis adultos, cerca de 300 gamos e somente 50 veados, um número que a especialista disse dever-se à competição direta com os gamos.
“Quando temos uma grande população de gamos, a tendência é de os veados regredirem. São mais suscetíveis a problemas de saúde ou a condições meteorológicas mais exigentes”, explica Ana Sá, acrescentando que, como são mais sociáveis, os gamos tendem a dominar os pontos de alimentação, ficando os veados mais limitados em termos de disponibilidade de alimento.
“Quando os veados chegam aos pontos de alimentação, geralmente já não têm muita comida.”
No que toca aos invertebrados, a bióloga destacou várias espécies de borboletas, como almirante-vermelho (Vanessa atalanta) e a malhadinha (Pararge aegeria), bem como muitas de libélulas e libelinhas “associadas às zonas húmidas”. Do ‘plantel’ fazem também parte polinizadores como as abelhas e os abelhões, e ainda vespas.
As estimativas do efetivo populacional de invertebrados são ainda “muito superficiais”, pelo que “há ainda muito por conhecer”, garantiu.
Mas uma floresta, pelo menos uma que seja saudável e funcional, não se faz apenas de animais. “A flora e a fauna têm de andar de braço dado”, disse-nos Ana Sá, sendo que na Tapada de Mafra as árvores mais emblemáticas são o sobreiro, o carvalho, o choupo, o freixo e os pinheiros, o bravo e o manso.
Além disso, há também uma grande diversidade de arbustivas, como a urze, o tojo, a aroeira e o trovisco, bem como algumas herbáceas, como orquídeas, embora a pressão dos herbívoros não permitam uma grande variedade de espécies.
Ajudar as espécies a enfrentarem os efeitos das alterações climáticas
Nelson Neves recorda o ano de 2022 com algum pesar, devido à seca que atingiu também a Tapada, sendo que estão a ser colocados bebedouros, distribuídos por toda a área, que permitam aos animais selvagens matar a sede, não sendo obrigados a dependerem da principal ribeira que atravessa essa paisagem, e que em março do ano passado estava já praticamente sem água, algo que só deveria acontecer, em condições normais, em maio.
Os efeitos das alterações climáticas sentem-se também ao nível dos ciclos reprodutivos dos animais da Tapada, devido aos impactos que são causados sobre a abundância de alimentos.
“Depois do último ano de seca, percebemos que era preciso tomar medidas para evitar a falta de água para os animais”, referiu.
Corços, coelhos-bravos e lebres-ibéricas podem vir a marcar presença na Tapada de Mafra
No que toca ao restauro ecológico, Nelson Neves entende que não podemos ‘começar a casa pelo telhado’. Para ser possível recuperar o equilíbrio dos ecossistemas, perdido muito devido à ação humana, é necessário fomentar o aumento das espécies-presa, que sustentam as cadeias tróficas.
Nesse sentido, contou-nos, “está já concluído” um estudo feito em colaboração com a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) para a reintrodução de corços (Capreolus capreolus) na Tapada de Mafra.
Além disso, está a ser avaliada a possibilidade de serem também reintroduzidos coelhos-bravos (Oryctolagus cuniculus) e lebres-ibéricas (Lepus granatensis) nesse local, a fim de estimular os reequilíbrios ecológicos, pois são “espécies de base”.
Fábio Abade dos Santos, médico-veterinário, é um dos responsáveis do Lepus – Centro de Reprodução de Lebre-ibérica e Coelho-bravo, juntamente com Sebastião Miguel, detentor da exploração, explicou-nos que essas duas espécies são “espécies-chave dos ecossistemas” que têm o potencial para fomentar as espécies mais acima na cadeia alimentar, tal como a águia-de-bonelli, que, apesar de alguns indivíduos ocorrerem na Tapada, a falta de presas obriga-as a percorrerem grandes distâncias para caçar. O objetivo é, então, criar todas as condições para que essas aves ameaçadas possam desenvolver uma população estável na Tapada.
As populações dessas duas espécies de leporídeos registam declínios significativos em Portugal, sendo que o coelho-bravo surgiu, pela primeira vez, no Livro Vermelho dos Mamíferos de Portugal Continental, divulgado no início de maio, com o estatuto de ‘vulnerável’.
O coelho-bravo está hoje, disse-nos Fábio Abade dos Santos, em ‘extinção funcional’, ou seja, continua a existir como espécie, mas não tem já capacidade para desempenhar a sua função ecológica, que é a de ser um agente de controlo vegetal e de servir de alimento aos predadores, sobretudo aos seletivos, que dependem mais fortemente de uma ou de outra espécie para sobreviverem.
As transformações que a floresta portuguesa tem sofrido ao longo dos anos, práticas agrícolas que afetam negativamente a biodiversidade e, em suma, a alteração dos habitats naturais, bem como surtos de doenças, como a mixomatose, figuram no topo da lista de ameaças aos leporídeos, que desempenham “um papel ecológico muito importante que não podemos negligenciar”.
Um carro elétrico chamado ‘Natureza’
Neste Dia Internacional da Biodiversidade, a Tapada de Mafra apresentou também o seu novo veículo elétrico que será usado nas visitas guiadas. Chama-se ‘Natureza’ e foi decorado por Edis One, com o apoio do El Corte Inglés, apresentando imagens estilizadas de javalis, de gamos e de trepadeiras-azuis (Sitta europaea), a única ave que é capaz de descer pelos troncos das árvores.
Em conserva com a ‘Green Savers’, o artista urbano, criador do Extinction Art Project, explicou-nos que a escolha destas três espécies se deveu a facto de serem “as espécies que mais vemos na Tapada” e que são aquelas com as quais as pessoas poderão estar mais familiarizadas.
Edis One acredita haver “uma falta de comunicação com uma geração acerca do património natural da Tapada de Mafra”. Por isso, está confiante de que a promoção da biodiversidade através da arte urbana será uma forma mais eficaz de chegar aos mais jovens.
Para ele, a street art tem um grande potencial de comunicação e para atrair a atenção da população. “Comecei o projeto Extinction com o objetivo de sensibilizar as pessoas para a conservação da biodiversidade através da pintura de murais”, explicou, observando que “antes as pessoas saíam das cidades para irem para a Natureza, e agora temos a Natureza a entrar na cidade”.
“Temos uma geração que, se não houver meios de comunicação cativantes que os puxem de novo para a Natureza e que falem a mesma ‘língua’ que eles”, podemos ter gerações totalmente desligadas do mundo natural. E é precisamente isso que este projeto pretende: uma reconexão ao que nos envolve, não só dos mais novos, mas de todos, porque “a street art não tem idade”.
“Eu quero acreditar que é possível haver uma reconexão entre a Natureza e o ser humano”, declarou Edis One, argumentando que “se cada pessoa fizer um bocadinho, no final do dia, acredito que essa harmonia voltará”.