Vivemos tempos excitantes no que toca à alimentação



A alimentação é um tema inescapável. Quer gostemos ou não de cozinhar ou mesmo de comer (há quem se alimente apenas e só por necessidade), os alimentos fazem parte da nossa vida e podem até tornar-se políticos – um exemplo disto é o debate em torno da indústria da carne. Além dos temas mais controversos, há outros no horizonte, como a carne de laboratório, os substitutos veganos para a carne ou mesmo proteína de inseto como forma de alimentar uma população em crescimento. Foram estes e outros os temas sobre os quais falamos com Morgaine Gaye, uma futurologista especializada em alimentação.

 

O que faz exatamente um futurólogo da alimentação?
Se ao menos a resposta fosse simples! É bastante variado. Essencialmente, faço previsões de tendências no campo do futuro da comida. Mas para o fazer não olho necessariamente só para o que está a acontecer no campo da comida, porque esta não existe num vácuo, separada do resto da vida. Portanto, olho para a economia, política, preço das matérias-primas, legislação, tendências globais, comportamentos dos consumidores e tudo o mais que existir pelo meio. Depois, tento criar uma premissa para o futuro, tento provar ou refutar as minhas ideias, mas normalmente começo o meu trabalho fazendo um briefing de tendências. Ou seja, uma palestra de uma hora num tópico específico, como por exemplo qual o futuro do chocolate. Também posso trabalhar com uma marca para isolar uma ideia, trabalhar coma equipa de desenvolvimento e talvez lançar um novo produto – e isto passa por tudo, desde os ingredientes, sensação que proporciona no palato, textura, a embalagem, rotulagem… Tudo o que tenha a ver com a comida, porque parte do meu trabalho passa também por olhar para a nutrição, bem-estar e microbioma, mas também a história e cultura da comida. Acaba por ser um trabalho também muito antropológico.

 

 

Como acha que vamos lidar com o facto de não termos como alimentar toda a população com carne, dado que não há terra para criar animais suficientes para todos?
Estão a acontecer algumas coisas interessantes de que talvez não tenha consciência neste campo. A razão pela qual as pessoas estão a comprar mais carne nos países em desenvolvimento como a Índia ou China, não tem a ver necessariamente com o poder de compra. Sim, têm, claro, mais dinheiro, mas o que acontece é que a carne é um alimento aspiracional – era-o no Ocidente e agora é naqueles países em desenvolvimento. Acontece nesses países o que aconteceu na Europa quando começámos a ter dinheiro depois da guerra: queríamos comprar mais carne porque isso era visto como um luxo e queríamos mostrar que éramos sofisticados e ricos. E isto está a acontecer agora nos países em desenvolvimento.

Todavia, nos países desenvolvidos estamos a comer menos carne. Por exemplo, na Europa um quarto das raparigas com menos de 25 anos não come carne, são vegetarianas. Portanto, o vegetarianismo e o veganismo estão a aumentar fortemente no Ocidente, pelo que as coisas estão a mudar. Além disto, temos várias inovações a acontecer. São tempos excitantes em termos de possibilidades. Estão a aparecer vários tipos de “carnes falsas”, de substitutos para carne.

 

 

E a carne de laboratório? Acha que vai ser uma solução prática num futuro próximo?
Neste momento, julgo que estamos muito mais entusiasmados com produtos como o Impossible Burger. Há grandes marcas tecnológicas a investir nestes produtos, como o Richard Branson e outros que estão a investir o seu dinheiro em diferentes tipos de produtos que não são necessariamente carne. Produtos como o Impossible Burger, produtos que sabem a hambúrguer, que parecem carne. A carne de laboratório é neste momento inacessível em termos de preço, mas vai tornar-se mais barata, claro. Também já estamos a ver versões fantásticas de ovos mexidos que são exatamente como os ovos mas não são feitos de ovos, apesar de serem incrivelmente precisos em termos de sabor e textura. E a carne seguirá este caminho. Irá tornar-se mais barata. Mas aqui há uma questão ligeiramente diferente. Os vegans e vegetarianos não têm problema em comer um Impossible Burger ou outros substitutos da carne. Todavia, podem não estar tão interessados em comer carne produzida em laboratório porque proveio de células estaminais.

 

E quanto aos insetos? Acha que serão uma alternativa real para o mercado ocidental?
Já são. Já falo desta questão há dez anos, portanto tem evoluído de forma lenta, mas já vemos alguns produtos no mercado. Por exemplo, no Reino Unido já vemos diferentes tipos de barras de granola e barritas saudáveis feitas com farinha de grilo ou proteína de inseto. Acho que o problema neste momento é a legislação à volta dos chamados “novos alimentos” na Europa, dado que com mais de 3500 tipos de insetos não é fácil testar a segurança dos mesmos. E são todos muito diferentes e alguns deles provocam a mesma reação que os amendoins. Portanto, se tiver uma alergia a amendoins irá ter uma alergia a insetos. Mas isto não acontece com todos os insetos. Portanto, está a demorar tempo, mas sim, porque não? Dois terços do mundo comem insetos desde sempre, e não é uma ideia nova. Julgo que nós é que somos privilegiados e não estamos expostos a esta realidade. Mas iremos lá chegar.

 

Considera que as pessoas deveriam ser vegans ou vegetarianas para terem um estilo de vida mais sustentável?
Bom, não faz parte do meu trabalho dizer às pessoas o que comer ou não. Isso é com elas. Mas no que toca à sustentabilidade, uma dieta à base de plantas é, sem dúvida, mais sustentável no que toca ao ambiente. Mas tudo depende da dieta das pessoas. Existem muitas e algumas são típicas de outras culturas, como por exemplo algumas das coisas que se tornaram moda recentemente entre os vegans como a chia, um alimento tradicional de vários países que agora estão a ter dificuldades em comprá-lo. Portanto, existem todas estas questões. A comida também é política, complexa, mas julgo que se pudermos reduzir o consumo de carne ou ter uma dieta rica em plantas, é bom para o planeta e bom para nós.

Hambúrger feito à base de plantas.

 

E a Dieta do Mediterrâneo, acha que é sustentável?
É complicado. Mesmo este termo precisa de ser definido porque é amplo. Mas quando se fez a investigação sobre o porquê de a dieta do Mediterrâneo ser boa, concluiu-se que não era necessariamente a dieta em si, mas também o sol, o estilo de vida. A dieta é muito importante para o nosso bem-estar, mas há também a luz do sol, a qualidade do ar, e é por isso que a dieta do Mediterrâneo, no Mediterrâneo, naquele estilo de vida, é positiva. Todavia, não há uma dieta que sirva para todos. As pessoas podem acabar a comer muita massa, que até é considerada comida do Mediterrâneo, mas não é assim tão saudável.

 

Para terminar, o chocolate vai mesmo desaparecer devido às alterações climáticas? Ou os amantes do chocolate podem ficar descansados porque não é bem assim?
Acho que nenhum desses cenários vai acontecer na totalidade. Não acho que o chocolate vá desaparecer. O chocolate cresce em toda a zona equatorial e em zonas destroçadas pela guerra, portanto sempre houve problemas com o preço da matéria-prima por causa do que está a acontecer do ponto de vista económico e ambiental. Mas neste momento já somos muito bons a evoluir espécies, produtos e comida para o tipo de ambientes em que se dão bem. Nós gostamos de chocolate, mas isso não é verdade para o mundo na sua totalidade. Há muitos países que não comem chocolate, países como por exemplo a Austrália e vários países em África que não estão interessados em chocolate, porque faz demasiado calor e o chocolate derrete. Quando fazemos comentários como “todos gostamos de chocolate” não é bem assim. Nósgostamos de chocolate, eu você, os nossos amigos. Penso que à medida que for ficando mais caro iremos ficar mais seletos com o chocolate que comemos. Iremos comer o melhor produto que pudermos e em menores quantidades – o que está também, de resto, a acontecer com a carne. Estamos a comer menos carne, mas quando comemos estamos a fazer melhores escolhas, estamos à procura de algo que provavelmente foi criado ao ar livre. Na cultura ocidental passámos os últimos 30 ou 40 anos a ter cada vez mais comida, cada vez de forma mais abundante. Habituamo-nos a que a comida fosse barata, razão pela qual estamos agora num ponto em que sofremos com o desperdício, seja ele das embalagens ou da própria comida que se tornou um problema e só agora começámos a lidar com ele. E isto só aconteceu porque podíamos suportar este custo monetário, mas à medida que o preço da comida sobe seremos obrigados a mudar a forma como compramos comida e a desperdiçamos. Portanto, acho que iremos comer comida de maior qualidade dentro do que podemos comprar e teremos mais consciência relativamente ao desperdício.

 





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