Fauna da Gorongosa bate recorde, mas enfrenta “descomando” da chuva
O administrador Pedro Muagura do Parque Nacional da Gorongosa , no centro de Moçambique, diz que a irregularidade com que as chuvas passaram a cair está a causar desequilíbrios visíveis nos últimos anos.
A situação “descomanda várias atividades”, refere à Lusa numa clareira de Chitengo, base do parque.
“Há capim que continua alto, a migração dos animais já não é a mesma” e o nível das águas em rios e lagos também não, descreve o moçambicano que trabalha no parque há 16 e o dirige há 10.
A última contagem de animais, feita em outubro deste ano, mostra que a biodiversidade da Gorongosa continua a crescer e os números de fauna bravia batem novos recordes, superando 102.000 animais.
O problema é que, “às vezes, a chuva cai muito cedo, outras vezes muito tarde. Às vezes cai menos ou não cai”, descreve quando questionado sobre se vê as alterações climáticas como uma ameaça.
As conclusões ainda requerem mais estudo, mas o ‘descomando’ que descreve em relação à chuva é “informação visível a olho nu”.
Até nalgumas árvores há flor no lugar de sementes e as aves têm outros movimentos.
A situação afeta não só fauna e flora, mas também as comunidades e os fornecedores locais do parque, aberto ao turismo, com unidades hoteleiras e mais de 1.200 funcionários.
“Os agricultores de tomate ou cebola” da zona tampão, que chega às refeições do parque, têm de encontrar onde ir buscar os produtos que a chuva não deixa colher.
“Estudos científicos estão a ser feitos” para que se possam retirar conclusões, nomeadamente sobre o efeito de alterações climáticas, ao mesmo tempo que o parque forma cientistas para reforçar a capacidade de registo de informação e leituras que tornem as conclusões mais robustas.
Aos sinais de incerteza acerca do clima, a natureza responde com resiliência.
A última contagem de animais, feita em outubro e cujos resultados devem ser divulgados em breve, mostra que a Gorongosa continua a ser a maior reserva de biodiversidade de Moçambique, sublinha Pedro Muagura.
O administrador descreve um “crescimento exponencial” de 10.000 para mais de 100.000 animais desde que a fundação Carr assinou o acordo de gestão do parque com o Governo moçambicano, há 14 anos.
Os últimos dados apontam, pela primeira vez, para um número superior a 102.000 animais de fauna bravia.
“O crescimento das populações que restaram” depois de o parque ter sido dilacerado pela guerra civil moçambicana (1977-1992) “é uma história de sucesso”, refere Mark Stalmans, diretor do departamento de Ciências.
Stalmans diz que a Gorongosa é uma demonstração emblemática de como a recuperação da vida é possível quando se cuida de um ecossistema e ele é saudável.
Aponta para a forma como recuperaram os leões, elefantes, impalas e ‘pivas (ou ‘waterbuck’), espécie de antílope que tem como característica o círculo branco em redor da cauda e que é a maior população do parque – cerca de 65.000, provavelmente a maior concentração de África, refere.
Mas algumas espécies ficaram com tão poucos animais (ou nenhum) que não se conseguiam reproduzir e nesses casos foram importados de outros locais.
Ainda assim, “na Gorongosa reintroduzimos muito poucos animais” para o contexto da África Austral, “pouco mais de 500 em 15 anos”, por comparação com projetos na África do Sul, em que houve entrada de cerca de 10.000 animais em três anos.
A última novidade foi a reintrodução de hienas – “já vimos crias” no terreno, refere Pedro Muagura -, depois do sucesso dos ‘mabecos’, famílias de cães selvagens que se multiplicaram e que a Gorongosa até já envia para o vizinho Maláui.
Em 2023, o parque deverá reintroduzir mais hienas para, tal como os mabecos, ajudarem os leões na tarefa de predação – os predadores ajudam a manter o ecossistema em forma e alguns tinham desaparecido, como o leopardo, também reposto.
Ao mesmo tempo, estuda-se o reforço de zebras, tal como já aconteceu com búfalos e gnus (ou ‘bois-cavalo’, como também são conhecidos).
Na sala de operações do parque, Alfredo Matavele olha para um grande ecrã e localiza Amália, leoa que usa uma coleira com GPS.
Estima-se que os leões quase tenham desaparecido quando o parque foi dilacerado pela guerra civil moçambicana, mas os poucos que restaram foram suficientes para hoje serem mais de 100.
Todos os animais estão sob o olhar atento de mais de 300 fiscais, homens e mulheres que patrulham 12.000 quilómetros quadrados de habitat e zonas adjacentes da área alargada da Gorongosa.
O número acima de 102.000 animais que deverá resultar da contagem de outubro é o “mínimo absoluto”, refere Stalmans, uma vez que a operação de reconhecimento cobriu apenas 60% do parque, correspondente à área central.
O crescimento da fauna “é um tributo às pessoas que trabalham duro no terreno a proteger os animais” a par “da sensibilização das comunidades e programas educativos”, razão pela qual a Gorongosa se apresenta como o parque dos direitos humanos, em que a conservação e o desenvolvimento humano têm de andar de mão em mão.
“Não podemos trabalhar isolados num mundo que enfrenta “mudanças climáticas” que atingem a todos, conclui.
A Gorongosa foi o primeiro parque nacional de Portugal em 1960, na época colonial, dilacerado entre 1977 e 1992 pela guerra civil que se seguiu à independência de Moçambique.
Em 2008, a fundação do milionário e filantropo norte-americano Greg Carr assinou com o Governo moçambicano um acordo de gestão do parque por 20 anos – prolongado por outros 25 anos em 2018 – que tem levado à sua renovação em várias frentes, com projetos sociais aliados à conservação.