“Colonialismo dos resíduos”: UE ‘despeja’ 37 milhões de roupas sintéticas indesejadas todos os anos no Quénia



Uma investigação das organizações não-governamentais Clean Up Kenya, da Wildlight e da Changing Markets Foundation revela que a União Europeia, apesar de se considerar como estando na vanguarda da ‘revolução verde’, tem um segredo que procura enterrar em terras africanas. É um autêntico caso de ‘o que os olhos não veem, o coração não sente’.

De acordo com a análise, estima-se que todos os anos os Estados-membros estão a enviar diretamente para o Quénia aproximadamente 112 milhões de peças de roupa, dos quais 37 milhões são peças de roupa sintética “que estão demasiados sujas ou danificadas para serem reusadas”, “criando graves problemas sanitários e ambientais para comunidades vulneráveis”.

Devido à fraca qualidade, essas roupas feitas de fibras que contêm plástico, acabam por ser depositadas em aterros ou queimadas para gerar energia que servirá, por exemplo, para aquecer água e para cozinhar. No entanto, geram grandes quantidades de emissões de gases e outras substâncias poluentes, que não só agravam a degradação ambiental desse país africano, como ameaçam a saúde das populações locais, respiram ar contaminado, bebem água poluída e ingerem alimentos cultivados em solos repletos de tóxicos.

A investigação revela que muitas roupas chegam ao Quénia sujas, com manchas e até repletas de vómito.
Fonte: Relatório

“Fomos até ao epicentro do mundo da ‘fast fashion’ [moda de consumo rápido] para desmascarar uma verdade feia – que o comércio de roupas usadas na Europa é, em grande medida e cada vez mais, um comércio de resíduos escondido”, sublinha Betterman Simidi Musasia, fundador da Clean Up Kenya, que apelida a prática de “colonialismo dos resíduos”, que “supostamente é ilegal”.

O responsável diz que “uma grande porção das roupas doadas para caridade por pessoas bem-intencionadas” acaba em países menos desenvolvimento e mais pobres, “porque a coluna vertebral da indústria da ‘fast fashion’ é plástico, e as roupas de plástico são essencialmente porcaria”. Dessa forma, países como o Quénia tornam-se “válvulas de escape” para escoar “a sobreprodução sistémica” do chamado ‘Norte Global’.

Segundo o relatório, vários testemunhos de pessoas que experienciam em primeira-mão esta catástrofe ambiental e social indicam que ao Quénia chegam roupas com manchas, sujas de pêlos de animais e até cobertas de vómito. Chegaram mesmo a ver um uniforme da McDonald’s ainda com a placa do nome do funcionário que a usou.

Dizem as organizações não-governamentais que o fluxo de roupas sintéticas de fraca qualidade para o Quénia, vindas de todos os cantos do mundo, “tem aumentado significativamente nos últimos anos”, equivalendo a 17 artigos de roupa anuais por cada queniano, sendo que desse total de artigos, oito “são inúteis”.

E o problema pode mesmo ser maior, uma vez que esta investigação focou-se somente nas roupas que são exportadas diretamente para esse países africano, e não tem em conta os artigos que lá chegam a partir dos países da UE através de outros Estados. Por isso, a organizações defendem a urgência da implementação de mecanismos de monitorização dos resíduos da indústria da moda para que os países mais pobres deixem de ser os ‘vazadouros’ do mundo rico.

Uma parte significativa das roupas que chegam ao Quénia, por serem de fraca qualidade, acabam por ser queimadas para gerar calor para ajudar a cozinhar alimentos ou para aquecer água.
Fonte: Relatório

A Changing Markets Foundation responsabiliza o setor por criar “uma explosão de roupa de fraca qualidade” e de tentar “esconder as consequências com reivindicações éticas grandemente enganadoras”.

Os autores argumentam que as marcas de roupa deviam ser obrigadas a pagar pelos resíduos que produzem e que os artigos deviam ser produzidos de foram sustentável, logo desde a fase de design.

Em junho, a Comissão Europeia, como a ‘Green Savers’ reportou esta semana, deverá apresentar uma proposta de revisão à Diretiva-quadro sobre o Desperdício, que obrigará os Estados-membros a reduzir a produção de resíduos e o desperdício, não o alimentar, mas também de outros produtos, promovendo a reutilização e a reciclagem.

Aponta a investigação que atualmente 69% das roupas produzidas contêm plástico, como nylon e poliéster, “que quase nunca são recicladas”.

“A não ser que a indústria da moda mude de forma significativa, o que vimos no Quénia e noutras partes do mundo será apenas o começo”, frisa George Harding-Rolls, da Changing Markets, que acrescenta que “a solução não é acabar com o comércio de roupas usadas, mas sim reformá-lo”, defendendo “regras e limites” para um indústria que diz ser “hedonística”.

Quanto à proposta legislativa em desenvolvimento em Bruxelas, o responsável espera que seja “abrangente” e que deve incluir “metas rigorosas sobre a reciclagem e reutilização”, bem como “impostos sobre o plástico” para forçar a indústria da moda a adotar tecidos de maior qualidade e mais sustentáveis.

“Não podemos permitir que as empresas de reciclagem se escondam atrás de falsas promessas e devem banir a exportação de roupa de fraca qualidade”, observa.





Notícias relacionadas



Comentários
Loading...