Entrevista a José Furtado: “O Matt Damon refere de forma muito inteligente a necessidade de se entender melhor a crise da água”



No Dia Mundial da Água foi lançado o livro “O Valor da Água”, de Gary White e Matt Damon, com o apoio do Grupo Águas de Portugal. A Green Savers falou com o presidente do Grupo AdP, José Furtado, que escreveu o prefácio deste livro.

A história de como esta dupla improvável, um engenheiro hidráulico e um ator, criaram a organização Water.org e desenvolveram soluções para melhorar o acesso à água segura e/ou saneamento é contada no livro “O Valor da Água”, e, para José Furtado, as perspetivas de cada um “complementam-se e, no seu conjunto, mostram-nos como a conjugação de esforços e as parcerias podem ser muito frutuosas”.

Nesta entrevista, o presidente do Grupo AdP fala da importância dos investimentos na água e no saneamento, dos conflitos em torno da água e explica que, em Portugal, o problema que se coloca “não é tanto o de falta de água, mas sim a irregularidade da sua distribuição no território e da imprevisibilidade e irregularidade da precipitação, cada vez mais agravada pelas alterações climáticas”.

  • Qual a importância deste livro e porque é que a Águas de Portugal resolveu associar-se?

Este livro, centrado no valor da água, mostra como o acesso aos serviços de água é fundamental para as pessoas e tem impactos positivos significativos em todos os aspetos das suas vidas. O Grupo Águas de Portugal associou-se à edição portuguesa do livro “O Valor da Água” porque nele reconhecemos valores e compromissos que partilhamos e porque estamos certos de estar a contribuir para suscitar uma maior sensibilização pública em torno da valorização da água, um recurso tão valioso, quanto escasso.

  • E o que lhe parece da história de como esta dupla improvável, um engenheiro hidráulico e um ator, criaram a organização Water.org e desenvolveram soluções para melhorar o acesso à água segura e/ou saneamento?

A Water.org desenvolve um trabalho fantástico, nomeadamente na promoção e concretização do acesso à água e saneamento para todos e, com este livro, convida todos a fazerem parte da solução, combinando esperança com recursos, capacitando famílias e comunidades para acabar com a crise global da água. Esta dupla improvável conta histórias sobre como o acesso à água permite a muitas pessoas libertarem-se do círculo vicioso da pobreza, mostrando as várias facetas deste importante trabalho da Water.org. As perspetivas de cada um complementam-se e, no seu conjunto, mostram-nos como a conjugação de esforços e as parcerias podem ser muito frutuosas.

  • É importante termos figuras públicas envolvidas que vão para o terreno por uma causa? A mensagem que passa ganha maior credibilidade?

As figuras públicas são, por inerência, influenciadores e líderes de opinião, podendo amplificar mensagens e promover causas junto de um público maior e mais diverso, muitas vezes permitindo a concretização de projetos que, de outra forma, não conseguiriam realizar-se. Mas a envolvência das figuras públicas apenas funciona se estas se identificarem com a causa, com os valores que são promovidos, se envolverem “de coração”. A propósito da história de uma rapariga que começou a ir à escola porque “apenas” demorava uma hora por dia a ir buscar água, depois de terem construído um poço mais perto da sua casa, o Matt Damon refere de forma muito inteligente a necessidade de se entender melhor a crise da água e os seus múltiplos impactos na vida das pessoas. Escreve ele que «tinha a sensação de que esta crise iria ter a atenção necessária quando conseguíssemos que mais pessoas ouvissem histórias com a desta rapariga. E o que é uma celebridade se não um excedente de atenção totalmente desnecessária? Se eu pudesse redirecionar alguma dessa atenção para uma causa que precisava dela, sentiria que tinha começado a fazer alguma diferença, pelo menos.»

  • No prefácio, escrito por si, diz que as histórias, “aparentemente simples, mas de grande impacto, que encontramos neste livro são evidências de como os investimentos na água e no saneamento são essenciais para fazer a diferença na vida das pessoas e nas sociedades”. Pode exemplificar algum desses investimentos?

Não precisamos de recuar muito no tempo para encontrar grandes diferenças. Em 30 anos, os investimentos feitos em Portugal na construção de sistemas de abastecimento de água permitiram passar de 50% para 99% de água controlada e com boa qualidade nas nossas torneiras. Já os serviços de saneamento, que abrangiam 31% da população em 1993, têm hoje uma taxa de cobertura de 86%, com os benefícios evidentes na qualidade das águas balneares e na quantidade de bandeiras azuis em Portugal, acima da média dos países da União Europeia. Trata-se, muitas vezes, de trabalho “invisível”, como o que está a ser feito para responder aos desafios da escassez de água, do controlo da poluição e do uso eficiente dos recursos. Temos de tornar este trabalho mais visível para que todos possamos dar valor ao bem mais precioso, a água.

  • Houve alguma história que o tivesse particularmente marcado?

Nenhuma das histórias relatadas nos pode deixar indiferentes. No Grupo Águas de Portugal conhecemos bem a dramática realidade de quem não tem acesso à água, por via do trabalho que desenvolvemos, no terreno, em muitas partes do mundo. É sempre uma enorme satisfação quando se concretizam os projetos que levam a água às pessoas e partilhar a alegria com estas comunidades. É neste sentido que recordo a última das histórias relatadas neste livro, quando uma rapariga diz o que «faria com o tempo que uma torneira de água lhe tinha devolvido. “Vou brincar.”» Porque, efetivamente, «uma fonte de água potável não garante só a sua sobrevivência. Proporciona liberdade. Proporciona alegria. A oportunidade de, finalmente, simplesmente, viver!».

  • Diz também que, neste livro, o valor da água “surge enfatizado como fator de reversão do círculo vicioso de pobreza em que centenas de milhões de pessoas se encontram, em especial as raparigas e mulheres que não podem estudar ou trabalhar porque o seu tempo está destinado a fazer grandes caminhadas para irem buscar água”. De que forma pode a água a reverter esse círculo vicioso?

A água assume uma relevância cada vez maior como fator de desenvolvimento sustentável, bem patente na Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, onde está individualizada num dos objetivos (ODS6) e é considerada transversalmente essencial para o atingimento de todos os outros ODS. A água é fundamental para a agricultura e para a produção de alimentos, sendo essencial para erradicar a pobreza e a fome, alcançar a segurança alimentar, melhorar a nutrição e a saúde e bem-estar das pessoas. O acesso a serviços de água seguros é também condição necessária para uma educação de qualidade e para a redução de desigualdades de género, dado que as mulheres e raparigas são as principais responsáveis pela gestão da água de uso doméstico.

  • Os conflitos em torno da água estão rapidamente a tornar-se numa realidade que podemos ter de enfrentar num futuro não muito distante?

As guerras pela água, ou conflitos pelo acesso e controle dos recursos hídricos, têm ocorrido em várias partes do mundo e podem ser considerados uma realidade em algumas regiões. A escassez de água, o crescimento populacional e as alterações climáticas estão entre os fatores que podem contribuir para as tensões sobre os recursos hídricos, que podem se transformar em conflitos entre países, regiões ou mesmo comunidades. Exemplos de guerras ou conflitos por recursos hídricos incluem as tensões entre a Etiópia, o Sudão e o Egito sobre a Grande Barragem do Renascimento Etíope, o conflito pela água no Médio Oriente, já de longa data, envolvendo a Israel, Jordânia e Síria e a Palestina numa disputa pelo controle do rio Jordão e a disputa entre a Índia e o Paquistão na região de Caxemira sobre o rio Indo. No entanto, é importante observar que nem todas as disputas ou tensões sobre recursos hídricos se transformam necessariamente em conflitos armados, e muitos países e comunidades têm conseguido negociar e administrar os seus recursos hídricos por meios pacíficos. Portugal e Espanha dão o exemplo com a Convenção de Cooperação para a Proteção e o Aproveitamento Sustentável das Águas das Bacias Hidrográficas Luso – Espanholas, conhecida como Convenção de Albufeira e em vigor desde o início do ano 2000.

  • Concorda com o Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, quando se pronuncia que “a luta contra as alterações climáticas é o mais importante combate das nossas vidas”?

Concordo. As alterações climáticas são um dos grandes desafios com que a Humanidade se confronta atualmente e no âmbito do qual se requer uma ação efetiva e urgente, em dois planos: por um lado, na adaptação aos efeitos das alterações climáticas, como as secas, as ondas de calor, a subida do nível da água do mar, chuvas torrenciais, inundações e outros eventos extremos; por outro lado, na mitigação das alterações climáticas pela descarbonização, uso sustentável dos recursos, diminuição da poluição. Porque a verdade é que o nosso modo de vida impacta negativamente o clima e o clima impacta a nossa qualidade de vida e, se nada for feito, porá em risco a sobrevivência da espécie humana neste planeta. Vivemos um tempo marcado pela volatilidade, incerteza, complexidade e ambiguidade, mas estas ameaças não devem ser paralisantes. Pelo contrário, devemos integrá-las como instrumentos de propulsão para a ação. Cabe a todos e a cada um de nós contribuir com a sua parte, no respetivo espaço de atuação, de forma integrada e mobilizando os mais próximos e a sociedade para o imperativo que representa garantir a sustentabilidade da humanidade.

  • O Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) nº 6 estabelece a meta de alcançar, até 2030, o acesso universal e equitativo à água potável e segura para todos, e também prevê a gestão integrada dos recursos hídricos a todos os níveis, incluindo no que toca à cooperação transfronteiriça. Faltam apenas oito anos. O que nos pode dizer acerca destas metas e do seu realismo?

Os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável acordados entre as 193 nações em 2015 envolvem 169 metas a ser alcançadas por todos os países, até 2030. É uma agenda ambiciosa, mas fundamental para a sustentabilidade em áreas críticas para a humanidade e para não deixar ninguém para trás. Os ODS visam apoiar um crescimento sustentável, regenerativo e inclusivo, que possa fazer face à emergência climática, à perda de biodiversidade e às desigualdades sociais, promovendo inovação, crescimento económico e desenvolvimento para todos. Existe já a consciência de que, no atual ritmo de progresso, não serão alcançadas as metas traçadas para o ODS6 até ao final da década. Isto exige uma mobilização global em torno de um novo quadro de compromissos que promova uma agenda de ação para a água e dê resposta ao imperativo de acelerar os esforços para enfrentar desafios que permanecem, como o acesso limitado à água potável e ao saneamento, e se agravam, como o aumento da pressão sobre os recursos hídricos e ecossistemas e o risco crescente de secas e cheias no contexto das alterações climáticas. Em Portugal estamos bem posicionados para cumprir as metas do ODS6. Temos feito um enorme esforço nas três últimas décadas na infraestruturação do setor da água, o que colocou o país entre os melhores desempenhos da Europa e está patente, nomeadamente, na qualidade da água de abastecimento, na cobertura dos serviços de saneamento e nas externalidades positivas na saúde pública, assim como também no ambiente, e na qualidade das águas balneares.

  • Refere ainda que situação em Portugal não é, “de todo, comparável com os casos relatados neste livro”, mas disse recentemente que “temos de nos habituar a viver com menos água”. O que é que o problema da falta deste recurso necessita?

Em Portugal, o problema que se coloca não é tanto o de falta de água, mas sim a irregularidade da sua distribuição no território e da imprevisibilidade e irregularidade da precipitação, cada vez mais agravada pelas alterações climáticas. Dada a localização geográfica do nosso país, numa região fortemente impactada pelas alterações climáticas, as perspetivas são de que a água vai passar a ser mais escassa em grande parte do território, como já aconteceu com a seca que se registou no nosso país em 2022 e se antecipa possa repetir-se já este próximo verão. Está em execução o programa de investimento no reforço da resiliência dos sistemas de abastecimento de água, de desenvolvimento de fontes alternativas como a dessalinização e a utilização de águas residuais tratadas. Mas também há que mudar comportamentos, pelo que é necessário continuar a promover a consciencialização de todos os utilizadores de água para a necessidade do uso eficiente da água.

  • Porque é que o tema da procura é particularmente relevante e qual a necessidade em termos de oferta?

As disponibilidades hídricas em Portugal são superiores às necessidades de água, mas a grande variabilidade regional, sazonal e interanual do regime hidrológico leva a que, sobretudo nas regiões do Algarve e do Alentejo, se verifiquem situações de escassez, agravadas por efeito das alterações climáticas, o que tem determinado uma intervenção mais estruturada. Esta década é a mais crítica de sempre no que respeita a gestão dos recursos hídricos no nosso país, em especial no que concerne ao nexus água – energia – alimentos. A procura de alimentos cresce de forma acelerada e as exportações nacionais de produtos agrícolas aumentam. Somos confrontados com a crise energética na Europa e Portugal tem uma parcela importante de produção de energia hidroelétrica. E, em paralelo, os padrões de consumo causam um enorme desequilíbrio na oferta e procura, não obstante o clima e o regime hidrológico estarem a sofrer alterações sem precedentes que afetam as disponibilidades de água.

  • O que é que está a ser feito para evitar o risco de falta de água e como é que se conserva, protege, desenvolve, planeia e faz a gestão e uso eficiente da água, com base na sustentabilidade ambiental?

Os efeitos das alterações climáticas, o esgotamento de recursos e a poluição são desafios enormes nos quais a água desempenha um papel principal. A dimensão destes desafios societais é agravada por circunstâncias complexas resultantes da pandemia e da guerra, com impactos brutais ao nível social, económico e ambiental. Importa, pois, atualizar e concretizar uma nova visão para a gestão da água, integrada e multissetorial, sustentável e orientada para o aumento da segurança hídrica, com um alcance nacional e com impacto. O Grupo Águas de Portugal, com 3 décadas dedicadas à infraestruturação que permite termos serviços de abastecimento de água e de saneamento de excelência em Portugal, está a reforçar a sua capacidade de resposta a estes desafios. No nosso compromisso de sustentabilidade sistematizamos um conjunto de ambições, com objetivos, metas e planos de ação, para concretizar o nosso propósito de “Fazer a diferença na vida das Pessoas”. Neste âmbito, estamos a atuar a diferentes níveis, nomeadamente na qualidade de serviço, resiliência de infraestruturas, eficiência e digitalização, economia circular, inovação e também na neutralidade energética e carbónica.

  • O abastecimento de água para consumo humano está assegurado mesmo em tempo de seca?

Durante a seca do ano passado, a água não faltou nas torneiras em Portugal. Tal como aconteceu durante a pandemia, os serviços essenciais de abastecimento de água foram assegurados pelos trabalhadores das nossas empresas, de norte a sul do país, sem falhas. Este trabalho, que é muitas vezes invisível, deve ser enaltecido pois trata-se de serviços essenciais à vida das pessoas, às atividades produtivas e ao funcionamento das sociedades. Em 2022 criámos uma task force para a gestão dos efeitos da seca com a participação de todas as nossas empresas de abastecimento de água para reforçar o trabalho das nossas equipas e garantir a monitorização das disponibilidades de água, a identificação das situações críticas e as medidas de contingência e mitigação. Os trabalhos prosseguem e estamos certos de que terão resultados muito positivos no que respeita ao aumento de resiliência dos sistemas no contexto da seca e escassez de água, continuando a garantir o abastecimento de água para consumo humano.

  • E a qualidade da água está sempre salvaguarda?

A qualidade da água está sempre salvaguardada.





Notícias relacionadas



Comentários
Loading...