Humberto Rosa, Comissão Europeia: “A pior forma de reduzir emissões é através da crise económica”
Foi secretário de Estado durante seis anos – de 2005 a 2011 – e é hoje um dos políticos com uma das pastas mais importantes na Comissão Europeia, a direcção-geral da Acção Climática. Sediado em Bruxelas, Humberto Rosa falou com o Green Savers sobre a política ambiental europeia, o foco global para a transição verde e sobre a recente taxa dos sacos de plástico, algo que deveria ter sido implementado há mais tempo. “Posso confidenciar que a tinha na minha lista de objetivos políticos desde o início do mandato. [Esta lei] devia ter sido aprovada há pelo menos dez anos – e contra mim falo. A necessidade de travar o consumo desmesurado de sacos de plástico está identificada há muito”, revelou ao Green Savers.
De acordo com o político português, as metas europeias ajudaram a demonstrar ao mundo “como é possível a um grande bloco dissociar o crescimento económico do crescimento das emissões”. Leia a entrevista exclusiva de Humberto Rosa, director para a adaptação e as tecnologias de baixo carbono e direcção-geral da Acção Climática da Comissão Europeia, ao Green Savers
Na prática, quais as suas funções em Bruxelas, quantas pessoas lidera e como decorre habitualmente um dia de trabalho típico?
Desde Janeiro de 2012 que exerço funções de director numa das direcções-gerais da Comissão Europeia. Sou responsável por um dos três directorados da DG Acção Climática, que lida com a adaptação às alterações climáticas e com as tecnologias de baixo carbono, correspondendo a três unidades com cerca de 50 funcionários. Um dia típico de trabalho envolve em geral reuniões internas e externas, muito processamento de email e de documentos, e orientação estratégica nos temas políticos do directorado. Ocasionalmente tenho missões de representação em eventos diversos, em geral no âmbito da União Europeia (UE).
A Comissão Europeia admitiu recentemente que a meta de reduzir 20% no consumo de energia, até 2020, poderá não ser conseguida. Quais os motivos deste fracasso e como podemos reforçar este investimento a médio e longo prazo?
Acho que estamos longe de dever falar em fracasso. Nos últimos anos a eficiência energética da UE teve progressos significativos através do melhor uso da energia em edifícios, produtos, processos industriais e veículos. Por exemplo, hoje em dia os edifícios novos usam em média metade da energia que usavam em 1980, enquanto que a indústria é cerca de 20% menos intensiva no uso da energia que em 2001. É certo que as projecções sugerem que possamos ficar 2 ou 3 pontos percentuais abaixo da meta geral de mais 20% de eficiência energética até 2020, mas a realidade é que a intensidade energética da economia europeia baixaram cerca de um quarto entre 1990 e 2010. Quanto a reforço deste objectivo, o Conselho Europeu definiu a meta indicativa de 27% de eficiência energética até 2030, com uma revisão em 2020 com vista a chegar a 30%. Creio que esse é um sinal político significativo para estimular continuados investimentos e esforços nessa verdadeira racionalidade que é usar menos e melhor toda a energia que consumimos.
Em relação à redução dos gases com efeito de estufa e investimento em energias renováveis, os objectivos para 2020 serão atingidos?
Serão certamente. Desde que o primeiro pacote energia-clima foi adoptado, em 2008, a UE já reduziu as suas emissões de gases com efeito de estufa em cerca de 18% em comparação com os níveis de emissões de 1990. Está pois claramente num rumo que lhe permitirá atingir e ultrapassar a meta de 20% até 2020. Quanto às energias renováveis, a UE tem instalada cerca de 44% da capacidade energética renovável do mundo, correspondendo a cerca de 13% da energia consumida na União – e mais uma vez, as projeções indicam que a meta de 20% até 2020 será ultrapassada. Mas o que me parece ainda mais significativo do que este sucesso em atingir as metas é o facto de, no mesmo período, a economia da UE ter crescido cerca de 45% em termos reais. As metas europeias ajudaram assim a demonstrar ao mundo como é possível a um grande bloco dissociar o crescimento económico do crescimento das emissões, e vieram contribuir para empregar um número crescente de europeus nas chamadas eco-indústrias. Isto só são más notícias para aqueles que insistem em remar contra a imparável maré das energias renováveis e de um desenvolvimento de baixo carbono.
De que forma a recessão económica e industrial dos últimos anos, na Europa, ajudou a política ambiental europeia a alcançar números mais interessantes de redução de emissões, eficiência energética e transição para uma economia verde?
A pior forma de reduzir emissões é provavelmente através da recessão ou crise económica. Com certeza que um contexto de crise implica sempre uma redução da atividade económica, e como tal do consumo energético e das emissões, mas a verdade é que, mesmo descontando o efeito da crise, a UE continuaria a ter atingido as suas metas, graças às políticas de clima e energia que veio adoptando. O que me pareceria impróprio seria não aproveitar o contexto da crise como uma boa oportunidade para mudar as bases insustentáveis da economia, substituindo-a, paulatinamente, por uma nova economia mais verde, mais circular, mais eficiente no uso de recursos e de baixo carbono. Esse impulso de oportunidade é que pode ser uma ajuda a obter desta fase económica difícil que a UE atravessou e ainda atravessa.
Caso esta recessão não tivesse acontecido – e agora entramos no campo das suposições – acredita que os números evoluiriam tão favoravelmente em relação a estes temas? E em relação ao investimento em renováveis, estariam eles mais desenvolvidos?
Acredito que alguns números seriam menos favoráveis, e outros mais favoráveis. Como disse antes, certamente que a crise reduziu conjunturalmente algumas das emissões e consumos. Mas como a sua pergunta sugere, também implicou uma quebra no investimento privado e nas condições financeiras para o desenvolvimento das energias renováveis. O que entendo é que a crise económica não é o factor explicativo para o progresso da UE rumo à descarbonização. A UE continua a ser o bloco mais avançado e na prática liderante em política de clima e energia, e isso apesar da crise económica, não graças a ela. Lembro-me de ter ouvido quem pré-anunciasse o fim da política europeia de combate às alterações climáticas por causa da crise económica. Esses enganaram-se: o tema não vai embora e continuará a ser politicamente determinante agora e bem para lá da conjuntura económica atual.
Disse recentemente que a política ambiental não é inimiga do crescimento económico – como referiu, desde 1990 as emissões na Europa caíram 18% enquanto o PIB cresceu 45%. Qual a importância da inovação e desenvolvimento e implementação das novas tecnologias nestes números?
Digo há muito e reafirmo que a política de ambiente não é inimiga da economia. Aliás, há décadas que não há propriamente grande novidade nessa afirmação, desde que o próprio conceito de desenvolvimento sustentável se definiu e estabeleceu. Mas é importante continuar a afirmá-lo, e mesmo reforçar a mensagem: a política de ambiente não só não é inimiga, é mesmo uma aliada valiosa da economia. A regulamentação ambiental pode ser um constrangimento ao status quo económico e produtivo, evidentemente. Mas é um constrangimento fértil no que gera de eficiência e de redução de desperdício, e sobretudo, é um grande motor da inovação. Nem toda a redução de emissões na Europa terá vindo de novas tecnologias, mas julgo inegável que a política de ambiente e de clima veio induzir uma maior implantação e difusão de uma diversidade de inovações tecnológicas. Veja-se por exemplo a fertilidade de soluções existentes ou emergentes no campo das energias renováveis, ou nos novos modelos de automóveis.
Em Julho de 2014, a Comissão Europeia decidiu financiar o primeiro grande projeto europeu de captura e armazenamento de carbono. Como está a decorrer esse projeto? Infra-estruturas deste género, que já foram alvo de críticas, poderão ser cada vez mais utilizadas na Europa? Existe algum plano, que conheça, para estruturas iguais em Portugal?
A captura e armazenamento de carbono é uma tecnologia indispensável para a longa mas inevitável transição para uma sociedade não dependente dos combustíveis fósseis. Todos os estudos e modelos indicam um papel relevante desta tecnologia na Europa e no mundo, e ela está comprovadamente madura para aplicação comercial. Há um programa que gerimos chamado NER300 (New Entrants Reserve 300), para apoio a projetos inovadores de energias renováveis e de captura e armazenamento de carbono, através de verbas da venda de licenças de emissão de CO2. O projecto que refere é britânico, tendo sido o único de captura e armazenamento de carbono que obteve financiamento do NER300. Temos como tal muita expectativa de que esse projecto veja a luz do dia tão cedo quanto possível, para plena demonstração da viabilidade desta tecnologia também na Europa. Não estou ciente de qualquer plano ou projeto de captura de carbono em Portugal, mas em contraponto o país obteve financiamento do NER300 para vários projectos inovadores de energias renováveis.
O foco da transição verde europeia são os sectores da energia, indústria e transportes. Que países mais se opõem à legislação ambiental? E que países que lideram o processo?
Não me parece que se possam colocar as coisas numa dicotomia simples de países liderantes ou opositores. Por exemplo, é natural que os países mais dependentes do carvão, ou com menos potencial conhecido de energias renováveis, tenham mais preocupações quanto ao ritmo da descarbonização imposta pela política climática. Mas dependendo das circunstâncias nacionais em cada sector, por vezes vemos também países potencialmente campeões da agenda verde terem as suas próprias reservas ou preocupações perante este ou aquele avanço político. Julgo que há um percurso próprio que os países fazem ao longo da integração do seu desenvolvimento económico com o acervo comunitário em clima e ambiente, e que, com o tempo aumenta a abertura ao que chama de transição verde. Para lhe contar um caso que vivi, quando fui Secretário de Estado do Ambiente, certa vez fiz uma intervenção com discurso avançado em favor de legislação europeia de protecção dos solos. Na altura houve um alto responsável da Comissão Europeia que se confessou surpreendido de estar a assistir a uma fase em que Portugal demonstrava ter já alcançado uma posição ambientalmente avançada. Isso mostra como terá havido um percurso de progresso e de maior abertura ambiental desde a nossa adesão até àquela altura.
Qual a sua opinião em relação ao tema da fracturação hidráulica? Será que as vantagens económicas desta prática serão superiores às desvantagens ambientais?
Não gostaria de encarar o tema como um mero balanço entre vantagens económicas e desvantagens ambientais. A prática da fracturação hidráulica só poderá fazer sentido se as desvantagens ambientais forem evitadas, limitadas e controladas, e as vantagens económicas e energéticas maximizadas. Julgo essencial que haja uma cuidada e profunda avaliação de impactos ambientais caso a caso, incluindo quanto aos riscos para as águas subterrâneas e quanto aos riscos de emissões fugitivas de metano para a atmosfera. É um facto que o gás de xisto continua a ser um combustível fóssil, mas se servisse para substituir carvão, por exemplo, o balanço de emissões até poderia ser positivo, desde que não houvesse fugas de metano, que é um gás com efeito de estufa bem mais potente que o dióxido de carbono. Em qualquer caso, não me parece que se possa esperar ver na Europa uma aposta na fracturação hidráulica equivalente à que houve nos Estados Unidos, por várias razões: diferenças nas percepções da opinião pública, na definição dos direitos de propriedade sobre os recursos geológicos, na efectiva disponibilidade do recurso, ou na disponibilidade de infraestrutura de transporte de gás. Parece-me mais seguro continuar a apostar nos recursos endógenos renováveis europeus.
Em 1974 distribuía no liceu a revista Frente Ecológica, pioneira no ecologismo político. De onde surgiu esta paixão pela ecologia, numa época em que ela nem era tida em conta em países mais evoluídos e – então – em democracia?
É curioso que mo pergunte, porque já várias vezes coloquei a mim próprio a questão. O episódio da Frente Ecológica veio no pós-25 de Abril, quando eu e um colega de escola, despertados de fresco para a política, visitámos o pioneiro Afonso Cautela que liderava o Movimento Ecológico Português. Antes disso recordo-me de muito novo ainda, quando a idade da razão despontava, já ter um interesse particular por assuntos de ambiente, poluição ou alteração do que percebia como o mundo natural, quando os via na televisão. E ainda antes disso já tinha, desde o berço, um interesse marcado por animais e pela diversidade dos seres vivos, que me atraía muito. Por isso julgo que não há uma origem concreta, é simplesmente algo que nasceu comigo – e, confesso, se mantém igual a sempre.
Qual a mais importante medida tomada pelo Governo português, nos últimos 40 anos, para acautelar a preservação da nossa identidade ambiental?
Essa é uma pergunta difícil, sobretudo para quem também foi protagonista governamental na área do ambiente durante seis anos, e que não tem necessariamente presente todo o acervo de medidas ao longo de quatro décadas. Mas talvez me arrisque a referir a Reserva Ecológica Nacional (REN), porque foi uma medida especialmente pioneira, inovadora e não determinada pela política europeia. Com todos os seus defeitos e qualidades, delimitações e desafetações, a REN foi uma medida que contribuiu para preservar certos valores essenciais do nosso património ambiental. Talvez a Rede Nacional de Áreas Protegidas mereça também referência especial enquanto símbolo de preservação de parte do melhor que o nosso património natural tem para oferecer. Neste domínio sinto algum orgulho por no meu mandato ter consigo dotar todas as áreas protegidas nacionais do respetivo plano de ordenamento.
Há muitos países que querem um acordo como zero emissões na segunda metade do século. É um objectivo demasiado ambicioso e possível para o continente europeu? E, já agora, desejável do ponto de vista da economia verde?
Espero que seja como diz, e que de facto muitos países queiram rumar a uma civilização humana com um balanço nulo de emissões de gases com efeito de estufa até ao fim do século. É um objetivo que acho não só necessário como indispensável, e efectivamente desejável para estimular uma economia mais verde e sustentável. Não me parece que seja demasiado ambicioso para a Europa, se não vejamos como o Conselho Europeu já decidiu que a UE deverá reduzir as suas emissões entre 80 e 95% até 2050, em coerência com o que a ciência climática indica como contributo necessário dos países desenvolvidos. O rumo europeu de descarbonização já foi iniciado, será continuado através das metas e decisões do pacote energia-clima 2030, e está consubstanciado no Roteiro de Baixo Carbono da UE até 2050. Esse Roteiro mostra que é um rumo alcançável com tecnologias já disponíveis, com estímulos económicos para induzir mudanças de comportamento, e com esforços diferenciados mas efetivos em todos os setores. Com a inovação que continuará a ser impulsionada pela política climática, vejo como natural que daí em diante se prossiga rumo a emissões-zero, com progresso, desenvolvimento e sustentabilidade.
Portugal legislou finalmente uma taxa para os sacos de plástico. Há quanto tempo deveria ela ter sido aprovada?
Olhe, devia ter sido aprovada há pelo menos dez anos – e contra mim falo. A necessidade de travar o consumo desmesurado de sacos de plástico está identificada de há muito, e posso confidenciar que a tinha na minha lista de objetivos políticos desde o início do mandato que me coube no Ministério do Ambiente, logo em 2005. Simplesmente, nessa altura as prioridades que encontrei foram tantas que deixei esse tema para depois. Isso revelou-se um erro, porque o contexto político e económico mudou e uns anos mais tarde já não havia condições para fazer vingar uma taxa sobre os sacos de plástico. Tentei uma abordagem de preço mínimo, que embora sem gerar receita teria o mesmo efeito de racionalizar o consumo, mas mesmo isso não se revelou possível. Fico muito satisfeito de ver que finalmente vigora em Portugal uma medida tão básica e difundida na UE como a de não deixar ser gratuito o que tem custos ambientais tão altos. Aliás, considero que é urgente reconsiderar em geral todo o uso descartável de plástico, por ser um material que o mundo natural não absorve, sob pena de vermos continuar a aumentar a quantidade inenarrável de plástico nos oceanos e não só. A reciclagem contribui, mas não resolve nem pode resolver plenamente o problema.
Muitos vêem-no como um futuro Ministro do Ambiente. É um cargo que o seduz?
O que lhe posso dizer é que estou plenamente seduzido pelo cargo e missão que hoje detenho na Comissão Europeia. A quem quer que venha a ser o próximo Ministro do Ambiente de Portugal desejo muita força e boa sorte, porque terá certamente uma tarefa bem exigente e difícil pela frente.