A proteção dos oceanos é fundamental para combater a crise climática. Mas estaremos a fazer o suficiente?
“Travar a emergência nos oceanos é uma corrida que temos de vencer”. Este aviso foi deixado pelo Secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, numa cimeira dedicada aos oceanos que decorreu no passado mês de janeiro, na cidade de Mindelo, em Cabo Verde. Instando o mundo a mobilizar-se pela defesa dos ecossistemas marinhos, o português frisou a urgência de “preservar esta preciosa dádiva azul para os nossos filhos e netos”.
Quase meio ano antes, na Conferência dos Oceanos que transformou Lisboa no epicentro da diplomacia oceânica, Guterres afirmou que, embora o oceano ligue o mundo, temo-lo tomado como “garantido”, alertando que a relação dos humanos com a Natureza está a fazer subir a temperatura dos mares, põe em risco as zonas costeiras, ameaça fazer desaparecer os Estados insulares e acidifica os oceanos, degradando e devastando a vida que neles habita.
Todos os anos, cerca de 80% das águas residuais de todo o mundo são despejadas nos ecossistemas marinhos sem qualquer tratamento e perto de oito mil milhões de toneladas de plástico acabam nos oceanos anualmente. Até 2050, a quantidade total de plástico nos oceanos poderá pesar mais do que todos os peixes juntos.
“Não podemos ter um planeta saudável sem ter um oceano saudável”, sustentou, alertando que o fracasso poderá ditar o colapso da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, cujo objetivo 14 prevê a conservação e uso sustentável dos oceanos, dos mares e dos recursos marinhos.
Além da poluição e das alterações climáticas, a pesca insustentável surge como outras das grandes ameaças. Estima-se que em 2019 mais de um terço dos stocks de peixe a nível global estivessem a ser alvo de sobre-exploração. A juntar a tudo isso, mais de metade do oxigénio no planeta é produzido pelos oceanos, pelas pradarias de ervas marinhas e pela algas fotossintéticas.
Por isso, a proteção dos oceanos é fundamental para combater a crise climática. Mas estaremos a fazer o suficiente?
Esta semana, na 10.ª cimeira mundial dos oceanos promovida pelo jornal ‘The Economist’, que decorreu no Centro de Congressos de Lisboa, Olivier Poivre d’Arvor, embaixador especial do Presidente francês Emmanuel Macron para os pólos e assuntos marítimos, respondeu a essa pergunta com um rotundo ‘não’, apontando, numa mensagem endereçada aos líderes mundiais, que, no que toca à proteção dos oceanos, não basta falar, é preciso agir.
O diplomata francês tem feito parte das negociações que estão a decorrer na sede das Nações Unidas, em Nova Iorque, para criar um tratado global para proteger e conservar os ecossistemas marinhos em águas internacionais. Até amanhã, dia 3 de março, as delegações dos Estados-membros da ONU deverão apresentar um consenso sobre esse instrumento vital para a proteção dos oceanos, e que está a ser negociado há 15 anos.
Contudo, Olivier Poivre d’Arvor lamentou que, na terça-feira, ainda se estava longe de alcançar um acordo entre os vários países, apelando às populações de todo o mundo que pressionassem ainda mais os seus governos. “Toda a gente diz que se preocupa com os oceanos, mas está na altura de prová-lo”, sentenciou.
O quadro é ainda mais negro quando olhamos para o atual panorama geopolítico mundial. O diplomata francês revelou que as conversações sobre um tratado para a proteção do alto-mar, isto é, da biodiversidade em águas além das jurisdições nacionais, tem deparado com obstáculos, designadamente levantados pela Rússia e pela China, comentando que as negociações com esses dois países são “totalmente impossíveis”. Assim, é muito provável que não seja possível chegar a um consenso até ao final desta semana, tal como inicialmente previsto e depois de mais de uma década de trabalho.
Em cima de uma outra mesa de negociações está a mineração em mar profundo, uma atividade de extração de minérios no fundo dos mares que, de acordo com os ambientalistas e com um corpo científico cada vez maior, poderá ter impactos desastrosos na vida marinha.
As previsões apontam para que em julho deste ano a Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (ISA) possa, por fim, permitir a mineração em mar profundo, abrindo as portas à exploração a uma escala industrial das profundezas marinhas, um mundo sobre o qual pouco se sabe. Aliás, há mesmo quem diga que hoje sabemos mais sobre a superfície da Lua do que sobre o fundo dos nossos mares.
França é um dos países que se opõem à mineração em mar profundo, liderando uma coligação de perto de 20 Estados que querem manter no solo os minerais marinhos. “Não é tempo para isso”, apontou Olivier Poivre d’Arvor, argumentando que a saúde dos oceanos está já gravemente debilitada e que “não sabemos que impactos ambientais” a mineração poderá gerar.
Por isso, esse conjunto de países quer impedir que a mineração em mar profundo seja aprovada este ano e, se possível, adiá-la por 15 ou 20 anos, com o diplomata francês a frisar que não é uma atividade que seja economicamente viável, pelo menos não atualmente.
“Para os oceanos, precisamos de um acordo ao estilo do que foi alcançado para o clima em Paris, em 2015”, apelou.
É precisa uma cidadania mais ativa para proteger os oceanos (e o planeta)
Em 2017, ocorreu, em Nova Iorque, a primeira conferência das Nações Unidas especialmente dedicada aos oceanos. Apesar de alguns progressos feitos desde então, ainda ficou muito por fazer.
Para Zara Teixeira, investigadora do Centro de Ciências do Mar e do Ambiente (MARE), o estado dos oceanos deve ser hoje motivo de grande preocupação. Um conjunto de ameaças, entre as quais a sobre-exploração, a poluição, a destruição de habitats e os efeitos das alterações climáticas, atiram o futuro dos oceanos para o domínio da incerteza.
Ainda assim, a cientista reconhece que nos últimos tempos se tem desenvolvido “uma maior consciência” dos impactos humanos sobre os ecossistemas marinhos. Atualmente, empresas, governos e as populações em geral têm tentado “minimizar” os seus impactos nos oceanos, salientou, e acredita que, pelo menos, “estamos no caminho para tentar melhorar”.
À margem da conferência, Zara Teixeira chama-nos a atenção para a relação de interdependência entre os vários fatores que põem em risco a saúde dos oceanos. A perda de habitat, os declínios da biodiversidade e as alterações climáticas são ao mesmo tempo causas e consequências, pelo que para combater uma é preciso combater as restantes.
Pessoalmente, a investigadora considera que a prioridade deve ser o combate às alterações climáticas, uma vez que as suas gravidade e dimensão “continuam a ser negligenciadas”.
“Acho que não há ainda uma consciência dos verdadeiros impactos globais das alterações climáticas”, sublinhou, avisando que podemos estar a subestimá-lo, seja ao nível político, porque as decisões que devem ser tomadas podem mexer com interesses poderosos, seja ao nível das próprias comunidades, que, mesmo perante a sua dimensão assombrosa, tendem a desvalorizar o problema e “não querem acreditar nisso”.
“É uma realidade muito dura de encarar, porque os impactos são muito fortes e implicam investimentos financeiros muito grandes e profundas mudanças de estilos de vida”, disse-nos Zara Teixeira.
Por isso, a luta pela proteção do planeta deve ser de todos, porque é para todos, e não pode, nem deve, ser deixada a pequenos grupos de decisores políticos ou líderes de grandes agentes económicos.
A cientista contou-nos que reconhece um grande valor nas manifestações climáticas mobilizadas por jovens ativistas, que ocorrem frequentemente um pouco por todo o mundo, especialmente no chamado ‘Norte Global’, incluindo em Portugal. Mas lamenta que depois não haja consequências a nível político, que deem uma verdadeira resposta a essas reivindicações.
Assim, é preciso energizar uma cidadania ativa, “que tem estado muito adormecida”, especialmente em Portugal, explicando a investigadora que isso “não tem de implicar um ativismo agressivo”. Pequenas ações, como escolher nos supermercados os produtos com os menores impactos ambientais, são fundamentais e estão ao alcance de todos nós.
E defende que o Governo deveria implementar mais medidas que ajudem a população a fazer as melhores escolhas. E Zara Teixeira dá exemplos. O pescado capturado mais perto da nossa costa poderia ser vendido a um preço inferior ao que é capturado em águas mais distantes ou estar sujeito a um IVA reduzido (ou mesmo isento de IVA), uma vez que teria uma menor pegada carbónica.
Mas para isso é preciso que as pessoas saibam o que estão a comprar. Por isso, a certificação pode ser uma forma de ajudar os consumidores a optarem por produtos que tenham menores impactos no planeta e, assim, a contribuírem ativamente para o combate às alterações climáticas.
A investigadora argumenta que é importante que o conhecimento produzido pela Ciência possa depois ser entendido e aplicado, por exemplo, pelas empresas, para que possam reduzir os seus impactos ambientais. O MARE está atento a isso, e já constituiu grupos de trabalho especificamente dedicados à construção de ‘pontes’ entre os mundos científico e empresarial, numa lógica de investigação aplicada e de colocação da Ciência ao serviço da transformação da forma como as empresas, e todas as populações, se relacionam com o Ambiente.
Nesse campo, Zara Teixeira disse-nos que é possível notar um grande aumento do interesse das empresas em reduzir os seus impactos, seja porque a isso são obrigadas por lei, seja porque daí resultam benefícios financeiros, seja porque estão realmente preocupadas com o atual estado do planeta e querem contribuir ativamente para a sua proteção.
Questionada sobre se Portugal está a fazer o suficiente para proteger os oceanos, a cientista disse-nos que “falta alguma coragem política” para tomar as decisões que têm de ser tomadas e para aplicar os investimentos necessários, uma vez que o conhecimento científico existe, mas resta encarar a realidade e trilhar o caminho mais acertado.
E recordou que houve alturas no passado em que foi dada uma maior importância ao mar e ao desenvolvimento económico que ele possibilita, algo que hoje não é tão evidente, embora a economia do mar tenha vindo a crescer nos últimos anos. Mas “ainda há muita margem para crescimento”, assinalou.
Contudo, alerta que é preciso que a economia baseada no mar seja realmente sustentável, para ser possível fazer coexistir o desenvolvimento económico com os objetivos de conservação dos ecossistemas marinhos e para não agravar a sua deterioração.
O futuro dos oceanos e, claro, também do planeta avizinha-se incerto e pouco luminoso. Ainda assim, Zara Teixeira afirmou que, enquanto cientista dedicada ao elemento que faz da Terra o ‘planeta azul’, “para mim faz sentido continuar a lutar” e a contribuir para a proteção dos oceanos, embora, tomando a História como referência, não seja possível ter a certeza de que os líderes mundiais terão a coragem para fazer o que precisa de ser feito.