Abutre-preto: Primeiras crias da época detetadas na Serra da Malcata



Estima-se que atualmente existam perto de 40 casais reprodutores nidificantes de abutres-pretos (Aegypius monachus) em Portugal, distribuídos por quatro colónias: Douro Internacional, Tejo Internacional, Alentejo e Serra da Malcata.

Foi nessa última região que, no início de maio, os parceiros do projeto LIFE Aegypius Return, iniciado em setembro passado, detetaram, durante uma reunião técnica e com recurso a telescópios, um ninho de abutre-preto, o décimo conhecido da espécie nesse local, bem como as primeiras crias da época de reprodução, que termina em setembro. Do total de 10 ninhos ocupados na Malcata, cinco estão em reprodução.

Milene Matos, da Vulture Conservation Foundation (VCF), é a coordenadora deste projeto cofinanciado pela União Europeia, cujo objetivo é até 2027, ano em que termina, duplicar o número de casais reprodutores residentes (para 80) em Portugal e de chegar às cinco colónias, bem como criar as condições para que a espécie possa, definitivamente, fixar-se e estabilizar-se de forma sustentável no território, onde há décadas era abundante.

“Com todos estes indicadores, esperamos que a espécie, durante a vigência do projeto, venha a ter condições para, em Portugal, passar do estatuto de conservação ‘Criticamente em perigo’ para ‘Em Perigo’”, salientou à ‘Green Savers’.

A responsável esclareceu que ao longo deste ano outras crias foram detetadas nas demais colónias acompanhadas pelo projeto, mas para já não há números fechados.

“No final do ano divulgaremos os resultados desta época de nidificação, que ainda não estão estabilizados”, adiantou, acrescentando que “neste momento os casais reprodutores já estão a incubar ou mesmo já a alimentar as suas crias (apenas uma cria por casal), mas ainda poderá haver falhas na reprodução, e, eventualmente, ainda algum ninho por detetar”.

Por isso, “só quando todas as crias estiverem desenvolvidas e forem também voadoras poderemos fechar os resultados, contabilizando todos os indicadores relativos ao sucesso reprodutor da espécie este ano”, observou.

Serra da Malcata é importante para conectividade com colónias em Espanha

A Serra da Malcata, junto à fronteira com Espanha e atravessando os municípios de Penamacor de Sabugal, “tem zonas com habitat de grande potencial para a expansão da espécie”, elucidou a conservacionista, com vastas áreas de “habitat favorável” onde os abutres-pretos se poderão fixar e nidificar, expandindo a distribuição da espécie em Portugal.

A Malcata é também, nas palavras da responsável, “uma localização geográfica estratégica que permitirá fomentar a conetividade entre as colónias de Portugal e de Espanha”, uma vez que está muito próxima de uma colónia no lado espanhol que tem mais de cem ninhos. E é também um importante eixo para a ligação “entre as colónias mais a norte e mais a sul do país”, sublinhou.

Ninho de abutre-preto na Serra da Malcata, sobre uma azinheira, no qual é visível uma cria ainda muito pequena*. Foto: Eduardo Santos / LPN

“Por exemplo, num possível cenário de assentamento da espécie noutras zonas do país, por exemplo, no vale do Águeda ou na zona de Almeida, a colónia da Malcata terá com certeza importância para a continuidade territorial da espécie, permitindo combater o isolamento das colónias e, por oposição, fomentar o fluxo génico, reforçando a resiliência da espécie”, disse-nos Milene Matos.

“Todas estas colónias, bem como as áreas de conetividade entre elas, estão a ser exaustivamente monitorizadas pelas equipas de projeto e também pelos vigilantes da natureza e técnicos do ICNF”, acrescentou a coordenadora, destacando também a participação da Rewilding Portugal e da ATN (Associação Transumância e Natureza) na monitorização da colónia da Malcata.

Eduardo Santos, da Liga para a Protecção da Natureza (LPN), um dos parceiros deste projeto LIFE responsável pelo acompanhamento da colónia da Herdade da Contenda (Alentejo), disse-nos que os casais de abutres-pretos, regra geral, geram apenas um ovo por cada época, ou seja, por ano. Isso revela uma “baixa produtividade” comparativamente a outras espécies de aves que coloquem mais ovos, e faz com que a recuperação da espécie seja mais morosa.

A colónia do Alentejo, na Herdade da Contenda, é acompanhada pela Liga para a Protecção da Natureza (LPN). Nesta fotografia, vê-se um abutre-preto num ninho construído sobre um pinheiro-bravo*. Foto: Foto: Eduardo Santos / LPN

“Tudo se processa devagar e leva o seu tempo”, afirmou, recordando-nos que a Natureza tem os seus próprios ritmos e ciclos, que podem muitas vezes não corresponder às expectativas dos humanos.

Ainda assim, admitiu estar otimista quanto ao alcance do objetivo de duplicar até 2027 o número de casais reprodutores no país. “É perfeitamente realizável”, frisou Eduardo Santos, apontando que tal não se deverá apenas à tendência de crescimento da espécie em Portugal, mas também às medidas de conservação que o projeto pretende implementar.

Como nos disse Milene Matos, algumas dessas medidas são, por exemplo, a construção de 120 novas plataformas que formarão ninhos artificias “ao longo da raia fronteiriça entre Portugal e Espanha”, a reparação de 105 ninhos naturais ou plataformas já existentes, melhorar as condições dos habitats “através da prevenção de incêndios”, uma maior vigilância das colónias, criar dois novos campos de alimentação e “66 ‘áreas não-vedadas’ em quintas de criação de gado para a alimentação de aves necrófagas”, e reforçar a colónia do Douro Internacional, que é a “mais frágil e limítrofe”.

Faz também parte dos planos do projeto reduzir a mortalidade dos abutres-pretos, com o acompanhamento de adultos e crias através de emissores GPS e com o “envolvimento de 14 zonas de caça e 300 caçadores num programa piloto de transição para o uso de munição sem chumbo”, e reforçar a deteção de casos de envenenamento.

Em suma, afirmou Milene Matos, o que se pretende é a “sensibilização das entidades competentes e da população em geral”, estabelecendo “acordos e parcerias de cooperação em diferentes campos de intervenção, desde a agricultura, florestas e caça até à gestão do habitat”.

40 anos depois de ter desaparecido, abutre-preto regressou a Portugal

Desde a década de 1970 que a espécie, apesar de presente no país, estava classificada como extinta enquanto espécie reprodutora, por não existirem colónias nidificantes. No entanto, em 2010 as aves arrancaram na recolonização de áreas portuguesas, um regresso sem qualquer intervenção humana possibilitado pelos indivíduos de colónias de Espanha que começaram a nidificar no lado português do Tejo Internacional, formando “quase uma extensão da colónia de Espanha”, contou-nos Eduardo Santos. Anos mais tarde, surgiria a colónia do Douro Internacional.

O desaparecimento dos abutres-pretos em Portugal foi impulsionado por um conjunto de ameaças. Uma das principais foi o envenenamento, “muitas vezes indireto”, explicou-nos a responsável do projeto. Sendo animais necrófagos, ou seja, que se alimentam de animais mortos, os abutres acabavam por ingerir carcaças de animais que tinham sido envenenados, por exemplo, “no âmbito de campanhas de controlo de predadores”, através de pesticidas ou do chumbo usado na caça.

Além disso, a perda ou perturbação do seu habitat, “por exemplo através da sua conversão para agricultura intensiva”, os incêndios florestais e a falta de disponibilidade de alimento, resultante de “alterações das práticas pecuárias de regime extensivo para regime intensivo” e de regras sanitárias que “impediam os produtores de gado de deixarem as carcaças dos animais mortos ar livre” são todos fatores que empurraram os abutres-pretos para extinção enquanto espécie reprodutora.

Milene Matos salientou ainda que essas aves, como tantas outras, são vulneráveis a colisões, à eletrocussão em linhas elétricas e são ainda “vítimas de perseguição direta”.

“No âmbito do projeto LIFE Aegypius Return trabalharemos a grande parte das ameaças à espécie, mitigando-as”, assegurou.

Abutres são “fundamentais quer para a saúde pública, quer para a funcionalidade ambiental”

Enquanto aves necrófagas, que se alimentam de animais mortos, os abutres são centrais no ciclo de matéria orgânica dos ecossistemas dos quais fazem parte.

“Alimentam-se de carcaças de animais mortos, fazendo-as ‘desaparecer’ muito rapidamente do ambiente, prevenindo a disseminação de doenças, e evitando avultados custos associados a formas alternativas de destruição desses resíduos orgânicos (como a incineração)”, esclareceu Milene Matos. Como tal, “prestam serviços dos ecossistemas que são fundamentais quer para a saúde pública, quer para a funcionalidade ambiental”.

Além disso, os abutres são também agentes no combate às alterações climáticas. Segundo a conservacionista, ao se alimentarem das carcaças no local em que esses animais morreram, “evita-se o seu transporte e formas de descarte que emitem mais carbono”.

E a sua importância não se cinge à esfera ecológica, pois têm também “um valor cultural muito importante em muitas regiões do mundo e do nosso país”, disse, “sendo símbolos de liberdade, força e resiliência, que marcam a identidade cultural e territorial dessas regiões, prestando importantes serviços culturais”.

A coordenadora do projeto acredita que essas perceções podem ser valorizadas, por exemplo, através do ecoturismo “pelo que os abutres podem direta e indiretamente contribuir para a economia e o desenvolvimento regional”.

“Os abutres, como qualquer outra espécie, são testemunhos da história natural e elementos da nossa biodiversidade que têm o seu valor intrínseco e, como tal, o direito à existência, à proteção e à permanência no território”, declarou.

Em novembro deste ano, entre os dias 14 e 17, acontecerá a ‘European Vulture Conference 2023’, em Cáceres, Espanha.

A iniciativa, organizada pela Vulture Conservation Foundation, reunirá especialistas, bem como interessados, de todo o mundo, e tem como propósito central promover a conservação dos abutres, bem como a sua investigação científica, na Europa e para lá dela.

De acordo com a organização conservacionista, pretende-se “chamar a atenção para a importância destas aves, que prestam serviços dos ecossistemas fundamentais para o equilíbrio da natureza e para a nossa qualidade de vida, e permanecem tão incompreendidas”.

 

*As fotos aqui apresentadas foram tiradas a uma distância segura para fins de monitorização e conservação. É crucial não se aproximar de ninhos para fotografar, fazer birdwatching ou outra atividade durante a época de reprodução, uma vez que corresponde a um período muito sensível e qualquer perturbação aos casais nidificantes pode resultar em insucesso reprodutor.





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