Acesso à Energia: Títulos de Equidade Energética
ESTUDO FELPT
A pobreza energética é um problema que, cada vez mais, afeta os cidadãos portugueses que se veem impossibilitados de garantir um acesso a serviços energéticos essenciais capazes de assegurar o conforto térmico nas suas casas. Este é um tema de particular relevância, num contexto de perdas de rendimento e de aumentos de preços de energia.
Os efeitos da pobreza energética podem manifestar-se a vários níveis, para além das dimensões de privação material e monetária, estando também associados a efeitos na saúde e desigualdades vitais.
Apesar das diferentes medidas implementadas pelo Estado Português, com vista a mitigar os efeitos da pobreza energética, estas apresentam-se ainda insuficientes para enfrentar a dimensão do problema.
Veja-se que, em Portugal, o acesso à energia é plenamente garantido, no sentido de acesso físico à mesma. No entanto, Portugal enfrenta grandes dificuldades, no que diz respeito a assegurar as necessárias condições de conforto térmico, apresentando níveis preocupantes de pobreza energética, que afetam cerca de 19% da sua população (EUROSTAT, 2020).
Além disso, de acordo com os dados divulgados em 2022 pelo EUROSTAT, em Portugal, em 2021, 16,4% da população reportou incapacidade de manter a habitação adequadamente quente, sendo o quinto país da União Europeia com maior percentagem de população afetada. Destaca-se ainda que um quinto da população indicava, em 2020, a presença de infiltrações, humidade e bolores nas suas habitações (EUROSTAT 2021).
Neste contexto, os Future Energy Leaders Portugal (FELPT) propõem a criação de Títulos de Equidade Energética (TEE), com vista a integrar, no ordenamento jurídico português, uma medida capaz de incentivar o investimento de fundos privados em iniciativas de mitigação da pobreza energética, a par dos programas já existentes, proporcionando, aos investidores, benefícios fiscais com uma finalidade que remeteria ao regime fiscal do mecenato. Nesta proposta, os fundos obtidos através da subscrição dos TEE serão reencaminhados para programas de mitigação de pobreza energética.
Os TEE têm por base uma adaptação, devidamente fundamentada, da realidade dos Títulos de Impacto Social (TIS) e a respetiva projeção sobre a realidade da pobreza energética.
Em termos comparados, o primeiro TIS foi lançado em 2010 pela Social Finance, no Reino Unido, com o nome de “One Service”, e visava responder ao problema da reincidência criminal. Com duração de 5 anos, mobilizou cerca de 5 milhões de Libras e propôs-se trabalhar durante um ano após a libertação com 1000 ex-reclusos da prisão de Peterborough. A intervenção financiada pelo referido TIS reduziu em 9% a reincidência comparativamente com o grupo de controlo.
No nosso caso, a lógica de financiamento e implementação dos TEE pressuporia, pelo menos, a participação do seguinte conjunto de pessoas ou entidades:
- Investidor (I), responsável pela subscrição de TEE e consequente financiamento da iniciativa/atividade
- Agente Implementador (AI) (ex: município), responsável pela materialização do objetivo contratualmente fixado e tendente à redução da situação de pobreza energética
- Beneficiário (B), correspondente à pessoa singular (ou conjunto de pessoas singulares, no caso de agregados familiares) que beneficia diretamente da intervenção do Agente Implementador
- Parceiro (P), correspondendo à entidade contratada por AI, sempre que seja essa a opção adotada, para a execução das medidas que permitem alcançar os objetivos a que se subordinam os TEE.
Em termos legísticos, os TEE podem ser criados por Resolução do Conselho de Ministros, devendo o respetivo regime fiscal ser aprovado por Lei ou Decreto-Lei Autorizado.
A lógica relacional subjacente aos TEE – e que, a este nível, replica o caso dos TIS – pode descrever-se da seguinte forma:
Esquema 1: Organigrama de TEE, sem consideração de aplicação de benefícios fiscais
A consagração do modelo subjacente aos TEE poderá conhecer variações, nomeadamente no que concerne à percentagem de devolução dos fundos ao Investidor.
Num cenário-base simplificado, assumir-se-á que o Investidor é remunerado através do benefício fiscal correspondente à dedutibilidade e majoração da subscrição dos TEE, aplicando um regime semelhante ao que fora desenhado para os TIS – ainda que, neste caso, com as devidas adaptações.
Nos termos da Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro[1], passou a dispor-se no artigo 19.º-A do EBF que “são considerados gastos e perdas do período de tributação, em valor correspondente a 130% do respetivo total e até ao limite de 8/1000 do volume de vendas ou de serviços prestados, os fluxos financeiros prestados por investidores sociais, reconhecidos por estes como gastos, no âmbito de parcerias de títulos de impacto social”.
Assim, pese embora os TIS não estejam sistematicamente integrados no regime fiscal do mecenato, o legislador consagrou um regime de benefícios fiscais teleologicamente orientado face ao regime fiscal do mecenato, em particular no que concerne aos benefícios que são oferecidos aos investidores.
Esta realidade poderia facilmente replicar-se para os TEE, através do aditamento de um novo artigo 19.º-B ao Estatuto dos Benefícios Fiscais, prevendo-se, novamente, um regime de dedutibilidade e majoração equivalente ao previsto para os TIS – ou seja, os montantes correspondentes à subscrição de TEE seriam considerados gastos e perdas do período de tributação, em valor correspondente a 130% do respetivo total e (eventualmente) até ao limite de 8/1000 do volume de vendas ou de serviços prestados.
Neste cenário, o custo fiscal, suportado pelo erário público diz respeito à diminuição marginal da receita de IRC propiciada pelo aumento de gastos dedutíveis ao nível do cálculo dos resultados de cada Investidor – algo que, em face das receitas de IRC[2], assume uma expressão orçamental negligenciável.
Da aplicação do referido regime para os TEE, a constar num hipotético novo artigo 19.º-B do EBF, resultaria o seguinte conjunto de consequências, descritas em formato de tabela e assumindo um valor hipotético de €1000 por cada TEE (e o valor-alvo “X” para o Beneficiário, resultante do aumento do nível de certificação energética da respetiva habitação), majorável para 130% dedutíveis para efeitos de IRC até um certo limite:
Tabela 1: Análise Custo-Benefício associada a modelo-base de TE
Face ao exposto, torna-se inegável que o combate à pobreza energética tem de constituir uma preocupação nacional, capaz de promover o desenho de medidas concretas que fomentem o bem-estar dos cidadãos que se encontram em situação de vulnerabilidade.
Para o efeito, uma abordagem integrada com a participação de diferentes agentes, na qual se inclui a inovadora participação de investidores privados, reveste-se de um caráter fundamental. Esta proposta pretende, assim, motivar o investidor privado a participar ativamente numa causa pública, ao proporcionar um enquadramento fiscal favorável para a subscrição de TEE, além de pretender contribuir para o cumprimento de critérios de conduta Environmental, Social and Governance (ESG), praticados por empresas que querem ser socialmente conscientes, ambientalmente sustentáveis e corretamente geridas.
Reforça-se ainda o papel do poder local na capacidade de promover a alocação destes fundos e no seu potencial para melhor identificar as necessidades e promover a equidade energética a nível municipal.
Autores:
Catarina Santos, membro dos FELPT, Associação Portuguesa de Energia
Filipe Fernandes, CIDEEF/FDUL, membro dos FELPT, Associação Portuguesa de Energia
Mariana Figueiredo, responsável jurídico e de public affairs do Sul da Europa da Eurowind Energy, membro da Direção dos FELPT, Associação Portuguesa de Energia
Nevin Alija, membro dos FELPT, Associação Portuguesa de Energia
João Pedro Gouveia, CENSE, NOVA School of Science and Technology, NOVA University Lisbon
[1] Lei do Orçamento do Estado para 2018.