Afonso Lobato Faria, Águas de Portugal: “A seca que assola o Brasil e a Califórnia é difícil de acontecer em Portugal”



A renovação da rede de distribuição e a modernização de algumas outras infra-estruturas da chamada Alta são os grandes projectos portugueses para o período entre 2014 e 2020, durante o qual se investirá 3,7 mil milhões.

Na segunda parte da entrevista exclusiva ao Green Savers, o presidente da Águas de Portugal (AdP) abordou ainda a importância da inovação para a empresa, a influência de fenómenos naturais como a seca e sismos na distribuição da água e, finalmente, a privatização da EGF e da própria AdP.

O Ministro Moreira da Silva admitiu que a reforma do grupo Águas de Portugal permitirá ao sector ter a capacidade para investir €3,7 mil milhões nos próximos anos. Para onde irá este dinheiro?

Este número é obtido num plano realizado todos os sete anos, em Portugal. O sector das águas, em Portugal, tem um plano estratégico nacional – o último é o PENSAAR 2020, para o período entre 2014 e 2020. Foi feito um trabalho coordenado pelo engenheiro Veiga Frade, em que o grupo Águas de Portugal também participou, sobre as necessidades de investimento do ciclo urbano da água para os próximos anos. Este número é uma estimativa dos investimentos que são necessários fazer na Baixa e na Alta – são investimentos que levarão Portugal a ter uma Baixa tão bem apetrechada, em 2020, como a Alta. Este investimento é, essencialmente, a renovação da tubagem em Baixa e uma lógica de gestão mais eficiente. Há entidades gestoras em Baixa que não têm um cadastro – ou seja, não têm, no seu sistema de informação geográfica, a localização das tubagens, para as monitorizar. Há um grande trabalho a fazer de conhecimento das redes e gestão eficiente e profissional destas redes. Este é o investimento esperado.

Parte deste investimento virá do POSEUR?

O POSEUR dará uma boa ajuda, mas os números que temos para o ciclo urbano da água, neste programa, são inferiores a €700 milhões. Esta diferença entre os €3,7 mil milhões e os €700 milhões terá de ser numa lógica fora do quadro comunitário de apoio e de sustentabilidade económica. O sector da água é de capital intensivo, ou seja, requer muito capital e dinheiro. Como as entidades gestoras não têm este capital próprio, há que recorrer à banca – nacional ou internacional. A banca internacional terá de ter uma lógica de Banco Europeu de Investimento, com taxas de juro atractivas e empréstimos de longo prazo. A outra hipótese é a banca comercial nacional e, aqui, entre a lógica de um banco e o seu cliente – o banco só empresta se souber que o cliente tem capacidade de pagar de volta. Tem de haver uma lógica económico-financeira nas entidades gestoras que permita convencer a banca nacional a emprestar, por exemplo, €30 milhões, porque aquela sabe que terá o seu dinheiro de volta. E se as tarifas não recuperarem os custos, o dinheiro não será pago de volta.

Quais os investimentos prioritários da Águas de Portugal nos próximos anos?

A Águas de Portugal é dos principais investidores nacionais. Temos tido uma média de €400 milhões por ano e já estamos numa fase de menor investimento. Em 2014, no entanto, investimos €200 milhões – estaremos no top ten de empresas a investir em Portugal. Estes investimentos e os futuros são de vários tipos: temos a conclusão da infra-estruturação básica, como as estações de tratamento de águas residuais. Temos dois investimentos importantes no Algarve, cada um de €10 milhões, de renovação de ETAR que já estão na sua fase final de existência – uma em Portimão, Companheira, e outra na zona da Ria Formosa – Faro e Olhão. Temos a renovação e modernização de infra-estruturas já existentes e duas áreas muito importantes. A primeira está relacionada com a forma como reduzimos energia. O grupo Águas de Portugal é um intenso consumidor de energia e temos gastos energéticos elevados. Isto é verdade tanto para o abastecimento de água como para águas residuais domésticas.

A Águas de Portugal acabou de ser premiada pela inovação em projectos de redução de energia.

Exacto. Isso já tem uma lógica de produção de energia em estações de tratamento de águas residuais. Existe um processo de digestão anaeróbica onde podemos produzir energia.

E qual o segundo grande investimento?

É na área de inovação. Há um aspecto fascinante para nós, que está relacionado com as redes inteligentes. Este é um conceito mais associado à rede eléctrica mas que, na água, ele é de grande importância. Neste momento, através da EPAL, um cliente pode conhecer melhor os seus consumos face ao que se passava antes. No passado, o contacto entre uma entidade gestora e um consumidor final era feito através de uma factura. Neste momento, através de contadores inteligentes e um serviço que é o WaterBeep, a pessoa pode conhecer os seus consumos de 15 em 15 minutos.

É um sistema que vai ao pormenor do consumo de água.

O utilizador final, se quiser, pode saber que há um pingo na sua torneira. Esta comunicação mais frequente entre o utilizador final e a entidade gestora é algo que é um caminho infinito de possibilidades. No limite, posso saber o que cada um dos meus electrodomésticos gasta de água, comparar com os meus vizinhos. Há uma entidade gestora que, na Holanda, está a premiar quem, em determinado bairro, tem consumos menores. Isto para fomentar [a poupança]. O consumidor final é alguém que é cada vez mais solicitado, pelo que olhar para uma factura da água não é dos aspectos mais fascinantes. Mas se colocarmos todo o consumo de água numa lógica de responsabilidade global e tratarmos disso numa forma mais lúdica, podemos entrar num caminho interessante e que faz as pessoas possam [ter] uma relação mais contínua com a factura da água. É um caminho muito interessante.

O WaterBeep foi desenvolvido pela equipa de inovação da EPAL, mas não está presente noutros locais do país. Existe essa possibilidade?

Este é um conceito desenvolvido para o concelho de Lisboa e, sim, é um produto que pode ser transportado para outras entidades gestoras. Havendo interesse, pode ser exportado para [outros municípios de] Portugal e até estrangeiro. Este é um produto que tem um potencial de internacionalização.

A EPAL tem outro produto “internacionalizável”, o Wone.

Sim. Esse está relacionado com as perdas de água, uma das chagas em Portugal. As perdas de água – física e não facturada – rondam os 40% em Portugal. Nos últimos seis ou sete anos, a EPAL passou de 25% de perdas para menos de 8% e Lisboa está no top das melhores cidades do mundo nesta área. O Wone é um processo tecnologicamente exigente e requer uma gestão cuidada e reparar rapidamente todas as fugas. Esta inovação está aberta a outras entidades gestoras e algumas já têm trabalhado connosco.

Por outras palavras, a AdP vai continuar a apostar bastante na inovação.

Sim, é um dos nossos objectivos.

Quantas pessoas trabalham a inovação da AdP?

É difícil encontrar um número certo, porque há pessoas que não trabalham exclusivamente na inovação. Mas cerca de 50 pessoas trabalham directa ou indirectamente na inovação.

Estive recentemente no Congresso Mundial da Água e pude perceber que Portugal é um país privilegiado pela forma como o sector da água trabalha a inovação e a qualidade do recurso. É verdade?

Portugal deu um salto extraordinário nos últimos 20 anos. Nessa altura havia uma zona de excepção, Lisboa, mas o resto do país estava um pouco atrasado. Neste momento Portugal está na primeira linha e há várias razões para isso, na minha opinião. Uma delas é a regulação independente e a outra é o grupo Água de Portugal, que tem uma dimensão crítica e orientações claras do estado para a implementação desta reforma, não só nas águas e águas residuais mas também nos resíduos e sólidos urbanos, através da EGF. Temos também um tecido empresarial dinâmico, o que faz com que Portugal tenha as melhores tecnologias no tratamento das águas residuais e água e inovações em entidades gestoras em Baixas. Somos um país respeitado e a organização desse congresso, em Portugal, é simbólica e revela o respeito que Portugal angariou. Mas ainda há coisas a fazer no sector da água – é nisso que estamos centrados, em fazer com que o sector progrida na Baixa e fique mais sustentável do ponto de vista económico-financeiro. Hoje o nosso sector está muito avançado e tem vários benefícios a nível económicos: o turismo, por exemplo. O que seria de Portugal, termos turísticos, se as nossas praias não tivessem águas de qualidade.

Não é algo que pensemos imediatamente quando estamos a falar da Águas de Portugal.

Correcto, mas isso é essencial. Ou [falar] de saúde pública. O sector do saneamento básico foi responsável, ao longo de séculos, pelas principais doenças do mundo. Infelizmente, no mundo inteiro, continuam a existir problemas de saúde pública, sobretudo em África, porque não há tratamento adequado da água e águas residuais. Porque isto é um ciclo: posso tratar bem da água, mas se não tratar bem das águas residuais não há tratamento que valha a um rio totalmente poluído. Na água, e do ponto de vista de saúde pública, Portugal não tem problemas. Somos privilegiados e isso é mérito de muitos profissionais, da actual geração e, sobretudo, da anterior.

“[Moreira da Silva] já disse que privatização não está em cima da mesa”

As secas que estão a ocorrer no Brasil e na Califórnia poderão acontecer em Portugal, no futuro?

É uma pergunta extremamente difícil de responder. É evidente que uma seca que existe noutro país – como é o caso do Brasil, sobretudo São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais – corresponde a um padrão anormal e é difícil de evitar. O caso da Califórnia é parecido, ainda que seja mais estrutural que o de São Paulo, porque há consumos muito elevados e pontas reservas de água. Hoje, Portugal está a salvo deste tipo de acontecimentos, mas casos diferentes têm respostas diferentes. Os investimentos foram feitos não só na melhoria da rede mais também no abastecimento e reservas estratégias. As secas extremas, em Portugal, quase passaram despercebidas, o que diz que estamos bem apetrechados. Um dos aspectos que ainda não está acautelado, na Califórnia, é o do consumo de água, que é muito elevado neste estado norte-americano. Em Portugal temos consumos per capital muito inferiores mas, numa altura de seca, tem de haver uma comunicação muito forte para os consumidores finais, para controlarem ainda mais este recurso, não só do ponto de vista económico como da sua sustentabilidade. As secas combatidas com a gestão da procura e da oferta. Em termos de oferta, isso é feito pelas reservas estratégicas – e Portugal tem trabalhado neste sentido. Na gestão da procura – ou informação aos clientes finais – Portugal já tem consumos per capita razoáveis mas, se este acontecimento for uma realidade, tem de haver uma comunicação eficiente para controlarmos este tipo de consumos. O que se passa no Brasil e Califórnia é difícil de acontecer em Portugal, mas a meteorologia é fundamental. Se tivermos um período de seca de muitos anos, temos de encontrar outro tipo de soluções.

E em caso de sismo, o abastecimento de água está seguro?

Há planos de contingência, critérios e procedimentos na construção deste tipo de sistemas. Grosso modo, este assunto está acautelado. Dito isto: depende da magnitude desse tremor de terra. A EPAL participa num grupo constituído para emergências ou casos de sismo. Até porque a questão da água é crítica neste tipo de fenómenos naturais.

Viu-se isso no Haiti.

Sim, precisamente.

A EPAL vai receber 800 novos colaboradores com a nova reforma.

Haverá uma fusão operacional entre as Águas de Lisboa e Vale do Tejo e a actual EPAL. Enquanto durar esse contrato de concessão, esses colaboradores passam a ser colaboradores de EPAL. A ideia é que a zona de Lisboa, tal como a do Porto, possa ser chamada para esta reestruturação e colaborar com o resto do País para baixar tarifas e existir uma maior eficiência de todo o sistema.

Mas o nome EPAL vai manter-se?

Sim, tal como a Águas de Lisboa e Vale do Tejo. Mas a EPAL terá a gestão da Águas de Lisboa e Vale do Tejo.

A relação da EPAL de Lisboa e Luanda foi reactada. Que sinergias e negócios poderão existir nos próximos tempos?
A EPAL e Águas de Portugal. Temos tido vários contactos nos últimos anos, o mais recente levou a um contrato assinado pela EPAL de Lisboa e Luanda sobre formação e perdas de água na capital angolana. Este é um processo que acarinhamos e tudo o que possamos fazer para melhorar a gestão da água em Angola é importante. Existe ainda uma colaboração estreita com outras entidades angolanas, nomeadamente no Ministério das Águas, no sentido de melhorar e promover todas as boas práticas internacionais da gestão da água.

Que outros projectos internacionais estão a trabalhar?

Em Moçambique e Timor-Leste e, mais recentemente, Cabo Verde.

Em Moçambique e Timor-Leste a AdP tem 100% de uma empresa. E em Cabo Verde?

Temos uma sucursal. E temos contactos regulares com Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe. Temos todo o gosto de partilharmos o nosso know how com as congéneres.

Só falta Brasil para fechar o ciclo da lusofonia.

Tivemos vários contactos com o Brasil, mas eles não estão tão activos como nos outros países que referi. Até porque o Brasil tem uma capacidade própria muito elevada na área da água e saneamento.

Como está a privatização da EGF?

O acordo entre as Águas de Portugal e o consórcio vencedor – agrupamento Suma – já foi assinado. O passo seguinte passaria por um parecer obrigatório da Autoridade da Concorrência, que está a desenvolver todos os estudos para o parecer. Aguardamos calmamente que a Autoridade da Concorrência se pronuncie.

Última pergunta: de vez em quando fala-se da privatização da Águas de Portugal…

Esse é um assunto do accionista e, como presidente do grupo Águas de Portugal, não me devo pronunciar. Mas o senhor ministro do Ambiente tem sido peremptório a dizer que não pondera nem equaciona a privatização do grupo Águas de Portugal. Neste momento é um não-assunto. Estamos a trabalhar, de uma forma muito intensa, na reforma do grupo Águas de Portugal, 100% público. E o senhor ministro já disse que a [privatização] não está em cima da mesa.

TENHA EM CONTA

Qual a diferença entre a Alta e a Baixa no sector das águas?

O sector da água está separado entre o que é a alta e a baixa. A primeira é o tratamento da água e o transporte até ao reservatório de distribuição. Nas águas residuais domésticas, a Alta é o tratamento e rejeição no meio hídrico, com valores controláveis. A Baixa é, normalmente, responsabilidade dos municípios, que compram a água da Alta à AdP e a distribuem para casa das pessoas – e cobram-lhes. No saneamento é igual: a rede em Baixa recolhe as águas residuais domésticas e é controlada pelos municípios, que as enviam para empresas do grupo AdP para tratamento.

Esta entrevista faz parte de um trabalho mais abrangente sobre o sector da água em Portugal e, em particular, sobre a Águas de Portugal. Durante os próximos dias será publicada a segunda parte da entrevista a Afonso Lobato de Faria, entre outros artigos sobre o tema.

Afonso Lobato Faria nasceu em 1968, é licenciado em Engenharia Civil pelo IST e foi nomeado presidente da AdP em Dezembro de 2011.





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