bLueTIDE: Projeto português impulsiona conhecimento sobre zona entremarés e aproxima crianças do oceano
Depois de dois anos de trabalho, o projeto bLueTIDE, promovido pelo MARE – Centro de Ciências do Mar e do Ambiente, chegou ao fim, com uma cerimónia simbólica que decorreu esta semana na praia de Paço de Arcos, no concelho de Oeiras.
A missão dos 26 investigadores envolvidos era estimular o conhecimento da comunidade escolar sobre a biodiversidade rica e singular das zonas rochosas entremarés, a área que fica coberta de água durante a maré cheia e que fica a descoberto quando o mar recua, e promover o contacto dos estudantes do primeiro ciclo e dos seus professores com o mar e, em especial, com esses habitats, que são autênticos ‘laboratórios a céu aberto’, através dos quais é possível vislumbrar a vida marinha sem ser preciso equipamento de mergulho ou entrar num submersível.
Este projeto de literacia oceânica, que atuou nas zonas da Figueira da Foz, Peniche, Setúbal e Sines, chegou a instituições públicas de ensino com o galardão Escola Azul no litoral, bem como a outras escolas ainda fora dessa categoria, a mais de 50 quilómetros da costa. Contas feitas, a iniciativa contou com 1.500 participantes, entre eles 541 crianças e 150 professores.
Zara Teixeira, investigadora do MARE e coordenadora do bLueTIDE, explicou à ‘Green Savers’ que os investigadores têm “uma responsabilidade social que passa por trabalhar com crianças, para passar o nosso conhecimento e garantir que no futuro ou elas se tornam investigadores conscientes, ou, no mínimo, adultos com um forte sentido de responsabilidade social e ambiental”.
A responsável contou-nos que os alunos das Escolas Azúis tendiam a mostrar um conhecimento mais avançado sobre as temáticas do mar do que os das escolas que não têm esse galardão, mas frisou que todos eles, independentemente de onde vinham, apresentavam um enorme entusiasmo.
O projeto superou todas as expectativas, disse, salientando que “não queremos que o projeto fique por aqui”. Com o intuito de assegurar a continuidade do trabalho desenvolvido, os investigadores estão a finalizar um website, que deverá estar pronto até ao final de agosto, em que toda a comunidade docente, não apenas os professores que participaram no projeto, poderá aceder a um manancial de recursos para incorporarem nos seus programas curriculares ensinamentos sobre os oceanos e sobre a vida na zona entremarés.
Esse portal, que Zara Teixeira lamenta não ter sido possível converter em livros físicos porque o financiamento não chegou para tal, contará com informação e vídeos que os professores podem consultar sobre vários aspetos da zona entremarés. Conta também com atividades e jogos, que podem ser implementados em sala de aula ou no exterior, e que ajudem a tornar mais divertida a aprendizagem e, assim, assegurar que esse conhecimento chega às crianças do ciclo primário e nelas deixe uma marca indelével.
A coordenadora destacou que uma das conclusões que mais saltou à vista foi o facto de os professores notarem que lhes falta conteúdo para abordar questões sobre o mar e o ambiente em geral. “Sentem que ao longo da vida precisam de ir melhorando os seus conhecimentos”, para poderem estar a par dos mais recentes avanços científicos, “e há muito pouca informação para eles se irem atualizando”, referiu, salientando que o que não falta é vontade.
“Há muita falta de formação para professores”, lamentou, recordando como muito positiva a resposta dos docentes relativamente a um maior contacto e envolvimento com a comunidade científica, afirmando que “é preciso que mais investigadores e cientistas venham às escolas”.
Além dos conteúdos para os professores, foi possível criar o que chamaram de ‘um guia de curiosidades’ para os alunos, também ele digital, através do qual podem ter acesso a informação divertida e facilmente compreensível sobre algumas das formas de vida que habitam nas zonas entremarés. Até ao final de agosto, esse guia estará disponível online e gratuitamente para todos os que se interessem por esses habitats entre o mar e a terra.
Uma janela para a vida debaixo de água sem tirar os pés de terra firme
A zona entremarés é aquela área que fica descoberta durante a maré vazia e que fica submergida quando o mar volta a subir. Quando as águas marinhas recuam, é desvendado todo um mundo de vida que evoluiu especificamente para sobreviver e singrar nessa zona com características muitos singulares.
Chamando a nossa atenção para as rochas na praia de Paço de Arcos durante a maré vazia, Teresa Cruz, do pólo do MARE da Universidade de Évora e outra das investigadoras envolvidas no bLueTIDE, apontava para uma pequena poça formada pelo retrocesso da maré. Era contornada por algumas pequenas rochas cobertas de algas verdes, mas uma delas apresentava uma mancha circular acastanhada.
“São as lapas que estão a arrancar as algas presas na rocha”, explicou-nos. As lapas são precisamente um dos animais mais abundantes nas zonas entremarés da costa portuguesa, a par das cracas, um outro crustáceo que vive agarrado às superfícies rochosas.
Teresa Cruz considera que a zona entremarés é “o bocadinho de mar que podemos caminhar”. Além dos animais que vivem fixados às rochas, esses habitats fervilham de vida, com outras criaturas marinhas que, quando a maré está vazia, procuram abrigar-se do sol tórrido.
Ao caminhar sobre as rochas descobertas, caranguejos espreitam de fissuras sombrias, anémonas retraem os seus tentáculos coloridos e brilham sob a luz solar, ‘tapetes’ de algas esverdeadas cobrem fragmentos rochosos, pequenos peixes mantêm-se imóveis nas poças de água e procuram passar despercebidos ao olhar atento dos predadores, e lapas, cracas e alguns mexilhões são encontradas um pouco por todo o lado.
São espécies que, ao longo de milhares de anos, aprenderam a suportar o vai e vem da água do mar, sendo capazes de viver em pequenas poças ou mesmo expostas ao ar, pelo menos até a maré voltar a galgar a terra e, de novo, encher de água fresca essas zonas.
Teresa Cruz disse-nos que a zona entremarés permite olhar para uma parte da vida marinha sem ser preciso mergulhar, pelo que constituem excelentes locais para aprender sobre a diversidade de vida oceânica e, assim, impulsionar o conhecimento sobre esses ecossistemas. Além de serem zonas com uma biodiversidade que pode passar despercebida a muitos de nós, salientou que várias dessas espécies têm valor económico e são importantes para a alimentação humana, pelo que a sua conservação e proteção são fundamentais.
Falta financiamento para a literacia do oceano
O projeto bLueTIDE contou, para os dois anos de atividade, com um financiamento total de 25.000 euros, grande parte do qual (21.250 euros) através do EEA Grants, o mecanismo financeiro do Espaço Económico Europeu, que em Portugal é operado pela Direção-Geral de Política do Mar.
Apesar de dizer que o “espírito de missão” dos investigadores ajuda a superar qualquer escassez de financiamento que possa haver, Zara Teixeira não deixou de salientar que há sempre necessidade para mais apoio, destacando, em particular, que em projetos deste tipo é importante ser possível contratar “pelo menos um recurso humano” que possa estar inteiramente dedicado à iniciativa.
Mas “estes financiamentos não são suficientes”, comentou, acrescentando que “isso significa que todos os investigadores que estão dedicados ao projeto estão a fazê-lo em part-time e em regime de voluntariado”.
Além dos recursos humanos, outro obstáculo levantado pela escassez de financiamento é a impossibilidade de “ter melhores produtos”, sobretudo para os professores, destacando Zara Teixeira que não foi possível, por exemplo, produzir, em formato físico, os jogos que os docentes podem usar nas suas aulas. E o mesmo aplica-se ao guia de curiosidades para os alunos.
“Não conseguimos também mais financiamento para trazer mais vezes as crianças do interior ao litoral”, adiantou a investigadora, explicando que “os autocarros são caríssimos” e que nem sempre as autarquias têm capacidade de resposta.
“Se tivéssemos tido mais financiamento e recursos humanos dedicados teríamos eventualmente conseguido fazer um verdadeiro trabalho de literacia do oceano”, com um maior envolvimento das comunidades escolares, mais atividades e mais contactos com os investigadores. Zara Teixeira disse que, dessa forma, talvez fosse possível ter tido “um verdadeiro impacto positivo e alguma verdadeira mudança de comportamento das crianças” e estender mais o projeto no tempo.
Quanto à continuidade do bLueTIDE, a coordenadora diz que é muito provável que o projeto “fique por aqui”, porque articular 26 investigadores de vários pontos do país “foi duro” e alguns não poderão mesmo continuar.
Ainda assim, assegura-nos que os projetos de literacia oceânica do MARE vão continuar, “com ou sem financiamento”, pois o centro de investigação já o faz desde 2015, não só através de atividades para as escolas, mas também de formações gratuitas para professores.
“Eventualmente, vamos é aproveitar os recursos que já temos para, de vez em quando, irmos às escolas ou dar mais formação na área”, afirmou a responsável.
A importância da literacia oceânica
Zara Teixeira considera que a disseminação do conhecimento sobre os oceanos são se deve resumir às escolas e que “é para qualquer idade”, destacando que “falta muita literacia dos oceanos para empresas”.
A investigadora contou-nos que isso é fundamental para que possamos estar cientes da nossa influência no oceano, bem como a influência que ele tem em nós e nas nossas sociedades. “É o reconhecimento dessa interdependência”, salientou, indicando que tal ajudará a “mudar, de alguma forma, os nossos comportamentos para garantir que há uma sustentabilidade ambiental”.
E “por muito que tenhamos já uma consciência ambiental, há sempre muito mais que podemos fazer”. Por isso, a literacia ambiental e, neste caso, oceânica, procura assegurar que existe uma verdadeira “mudança de comportamentos”.
Elisabete Brigadeiro, responsável de Ciência e Inovação da Câmara de Oeiras e que esteve presente no evento de encerramento do bLueTIDE, disse-nos que a promoção do conhecimento científico e a sua transmissão à população ajuda as pessoas “a compreenderem aquilo que leem e aquilo que veem, e ajuda-as a terem um sentido crítico relativamente às falsas informações neste contexto pós-verdade em que vivemos”.
Em declarações à ‘Green Savers’, destacou a importância do projeto do MARE, apontando que “a área da literacia do oceano é amplamente subfinanciada” e que apesar do que tem vindo a ser feito “continua a ser muito pouco”.
Elisabete Brigadeiro disse que existe um hiato entre o trabalho desenvolvido por projetos como o bLueTIDE e o “salto que é preciso dar” para “passar o conhecimento adquirido para um público mais alargado”. E afirmou que a autarquia quer “internalizar este conhecimento”, não só nas escolas de Oeiras, mas também fazê-lo chegar a toda a população.
Embora o projeto não tenha abrangido escolas desse município, a responsável destacou que para a autarquia “foi um orgulho e um gosto” que a praia de Paço de Arcos tenha sido escolhida como local da sessão de encerramento.
Agora, “vamos perceber com os investigadores como podemos tirar partido deste trabalho que realizaram e levá-lo mais longe, levá-lo a mais pessoas”, sublinhou.