Corrida ao gás ameaça Acordo de Paris. “A crise energética apoderou-se da crise climática”, denuncia a Climate Action Tracker
A guerra da Rússia contra a Ucrânia, que arrancou oficialmente no passado dia 24 de fevereiro, despoletou uma crise energética sem precedentes na Europa, com ecos em várias outras regiões do planeta. O estrangulamento da oferta de petróleo nos mercados mundiais deu o tiro de partida para uma corrida ao gás natural, com os Estados europeus a procurarem preencher as suas reservas energéticas para se prepararem para o inverno.
Contudo, a organização Climate Action Tracker (CAT) argumenta que a comunidade internacional, ao tentar pôr cobro à crise energética que se intensifica, terá sido demasiado voraz, e estima que a procura e consumo de mais gás “ameaça” a limitação do aquecimento global a 1,5 graus Celsius acima de valores pré-industriais, uma meta plasmada no Acordo de Paris, do qual são parte 194 países.
A CAT calcula que as emissões de dióxido de carbono que poderão ser geradas por projetos de gás natural liquefeito (GNL) em construção, aprovados e propostos para o período entre 2021 e 2050 podem fazer com que cheguemos a 1,5 graus de aquecimento já em meados deste século.
Na corrida para substituir o gás que era fornecido pela Rússia, os países estarão a deitar por terra a possibilidade de concretização das metas de Paris, e a CAT prevê que, em 2030, o excesso de oferta de GNL possa chegar às 500 megatoneladas, o que equivale a “cinco vezes a importação de gás russo para a UE em 2021, e o dobro do total de exportações globais [de gás] da Rússia”.
“A crise energética apoderou-se da crise climática”, alerta Bill Hare, CEO da Climate Analysis, organização parceira da CAT, e acrescenta que os projetos de GNL propostos, aprovados e em construção “excedem largamente o que é preciso para substituir o gás russo”.
E essa corrida pode ser observada um pouco por todo o mundo. Na Europa, em África, na América do Norte, na Ásia e na Austrália, é possível verificar uma grande pressão para expandir as capacidades de prodição e importação de GNL nessas regiões, o que “pode fazer com que as emissões globais ultrapassem níveis perigosos”, salienta a análise.
“Aumentar a nossa dependência do gás fóssil não pode ser a solução para as crises climática e energética de hoje”, assinala Hare.
Denunciando que entre a cimeira do clima de Glasgow (COP26) de 2021 e a que decorre agora em Sharm El-Sheikh, no Egipto (COP27), as previsões de aquecimento global mantêm-se inalteradas, “pois poucos governos aumentaram as suas metas para 2030, fizeram novos compromisso para com a neutralidade carbónica ou mantiveram-nos”.
Assim, com base nos planos climáticos nacionais que são, até ao momento, publicamente conhecidos com metas que apontam para o final desta década, o aquecimento global em 2100 atingirá os 2,4 graus Celsius.
“Com os governos focados na crise energética, este foi um ano de pouca ação climática”, argumenta Niklas Höhne, do NewClimate Institute, outra organização parceira da CAT.
Indicando que, entre Glasgow e Sharm El-Sheikh, muito pouco de significativo foi feito para abandonar progressivamente o carvão, para disseminar massivamente a adoção da mobilidade limpa e para cortar drasticamente as emissões de metano, Höhne afirma que “sem ações fortes até 2030, os governos não conseguem alcançar a neutralidade carbónica”.
As cheias que submergiram um terço do Paquistão, os fogos que carbonizaram grandes áreas das florestas europeias, russas e norte-americanas, e ondas de calor extremo que varreram o planeta desde a Europa até à Ásia fizeram de 2022 “um ano de devastação climática”, sublinha o especialista, que afirma que as emissões globais em 2030, com os atuais compromissos assumidos pelos governos, “continuarão a ser duas vezes mais elevadas do que poderiam ser” para limitar o aquecimento a 1,5 graus.
Para essa tendência se inverter, “os países têm de ativar o ‘modo de emergência’ para o clima tal como fizeram para a crise energética”, assevera Höhne.