Do Porto para o Fundão: Técnico de som muda radicalmente de vida para produzir cerejas com a ajuda de galinhas”



Um técnico de som, que punha música no Barracuda no Porto, alterou os seus ciclos biológicos e passou a levantar-se à hora a que antes se deitava. Hoje, Carlos Matos produz cereja e, para obter as melhores variedades (mais suscetíveis à praga da mosca), recorre a galinhas que não só limpam o terreno, como se alimentam dos ovos que dão origem às moscas. Em Alcongosta, no Fundão, num terreno de 10 hectares, explica-nos porque decidiu mudar radicalmente de vida: “Cheguei a uma altura em que queria fazer algo completamente diferente, porque já estava mesmo cansado de um tipo de vida que é específico, é muito mais à noite, não tem muita rotina, ou seja, não tem regras em termos de horários, o que não é propriamente algo saudável. Além disso, já tinha um gosto especial pela natureza. Sempre que ia de férias, optava pelo chamado turismo rural”. Com esta mudança, Rui diz que aliou aquilo de que gostava muito com algo que acha que é importante para a sociedade: “começar a produzir comida saudável, que não seja nociva, que não seja tóxica”.

Neste percurso, o mais complicado foi mesmo “voltar a estudar, regressar à altura em que era mais teoria e menos prática”. Por isso, garante, a formação do Centro de Frutologia Compal foi “muito importante”, o seu “primeiro contacto direto”. Começou em 2015 e passou pela formação em 2016. Não conhecia o Centro, mas quando encontrou, arriscou porque, como disse e se diz na gíria, “quem não arrisca não petisca”. E “petiscou”. Vencedor de duas bolsas do Centro de Frutologia Compal, Carlos considera que estas foram determinantes para o seu projeto agrícola, que se destaca pela componente da sustentabilidade e pela inovação disruptiva através da criação de um microecossistema de produção biológica.

ACADEMIA DA COMPAL JÁ FORMOU MAIS DE 100 FRUTICULTORES

O Centro de Frutologia Compal visa estimular a inovação ao longo de toda a cadeia de valor da fruta, reforçar o setor nacional e valorizar a fruta portuguesa e os seus derivados. E fazer isto “envolve trabalharmos com as várias entidades, os vários stakeholders, ao longo de toda a cadeia de valor, promovendo o estabelecimento de contatos e o networking, a troca de experiências e de conhecimento, o estabelecimento de parcerias e, através disto, a resolução de desafios com que o setor se defronta”, explica Madalena Lynce de Faria, da Comissão de Gestão do Centro de Frutologia Compal, à Green Savers.

Quando criaram a Academia, há 11 anos, continua, “havia um contexto específico de crise em que muitas pessoas olharam para as terras que tinham como uma oportunidade de regresso à agricultura”. Havia, na sua opinião, algum “romantismo que, por definição, não era realista e também uma ideia de
‘regresso’ que trazia riscos consigo – é interessante ‘regressar’ ao natural, à terra, mas fazê-lo com uma perspetiva de passado, agarrados a técnicas e processos do passado, seria uma receita para o insucesso”. E por isso criaram a Academia, para dotarem estas pessoas de um “rápido contato com a realidade
no terreno e trazer o futuro para este seu regresso à agricultura”, através de uma formação “muito prática, orientada para conseguirem identificar onde procurar as soluções específicas para
os seus desafios específicos”.

Madalena Lynce de Faria revela que mais de 100 fruticultores frequentaram a formação, enquanto formandos, e que, em muitos casos, estiveram presentes em edições posteriores, para partilhar os seus exemplos e os seus conhecimentos práticos, quase sempre nas suas próprias explorações. Exemplos disso mesmo são Alexandre Pacheco – a produzir ameixa, em Alegrete, Portalegre – Ana Pacheco – a produzir romã, em Beja – Aurora Santos- a produzir marmelo, em Beja – Daniel Marques, a produzir romã, em Torres Novas – e, claro, Carlos Matos, que produz cereja com a ajuda de galinhas.

Na agricultura utilizava-se a introdução de animais para vários fins e, ao mesmo tempo, as galinhas não só nos ajudam com o problema de uma praga, como também arejam o solo porque, quando andam, estão constantemente a raspar o solo e isso é bom para ele.

Carlos Matos

COMO AS GALINHAS AJUDAM

Como? Em primeiro lugar importa sublinhar que há dois tipos de mosca, a drosophila suzukii, que, segundo Carlos, é uma “praga mais recente, mas facilmente capturável com armadilhas com garrafas” e a mosca da cereja, que já não se apanha tão facilmente. Esta mosca deposita ovos isolados nos frutos, as larvas desenvolvem-se dentro das cerejas e comem a polpa à volta do caroço. Passadas cerca de três semanas, as larvas saem dos frutos e passam para o estágio de pupa dentro do solo, onde passam o inverno a aproximadamente 3 cm de profundidade. Só aparecem passado um ano.

É precisamente nesta fase que as galinhas entram em ação. “Temos esse espaço de tempo para que as galinhas possam andar lá, porque elas alimentam-se de vários insetos: de pupas e de pequenos insetos que estão no chão. E, por isso, usamos os capoeiros junto às árvores com as variedades que são mais tardias e, por isso, mais sujeitas às moscas, que preferem os frutos que ficam mais tempo na árvore”, explica o produtor. E, ao fim de alguns anos, continua, “começámos a perceber que a mosca está a ter cada vez menos incidência”. Mas, alerta, “é algo que demora. É preciso algum tempo para isto começar a acontecer. Para esse ecossistema funcionar”.

A maior dificuldade deste projeto são mesmo as galinhas. “No biológico temos de ter aves certificadas. Quase ninguém vende e, por isso, são valores absurdos. E para criá-los há um problema: metade vão ser galos, ou seja, não vão ser galinhas poedeiras que para nós é importante porque os ovos são uma fonte de rendimento importante que ajuda a sustentar as galinhas. Depois também morrem bastante facilmente, ou por doenças, ou por predadores. É mesmo difícil constituir um bando”, explica Carlos, revelando que já tiveram quase 100 galinhas e agora estão outra vez com cerca de 40. “Houve uma vez”, conta, “que entrou um animal, que não sabemos o que é que foi, que matou tudo. Agora foi uma raposa, elas estavam
cá fora, nós estávamos ali em baixo e a raposa atacou na mesma. Tinha acabado de descer o caminho com o jipe, estacionei e começo a ouvir as galinhas a fazer muito barulho, venho a correr para cima e apanho a raposa a atravessar aqui a estrada”, lamenta.

Lamentações à parte, Carlos evidencia a sustentabilidade do projeto, porque “em vez de estar a combater o problema da forma normal – que neste momento é utilizar produtos químicos, que são prejudiciais para a saúde das pessoas, das árvores e do solo – estamos a utilizar um processo natural, que existe na natureza”, sublinha o produtor, acrescentando que é um processo que “até já foi utilizado há muitos anos por agricultores”. Segundo Carlos, na agricultura “utilizava-se a introdução de animais para vários fins e, ao mesmo tempo, as galinhas não só nos ajudam com o problema de uma praga, como também arejam o solo porque, quando andam, estão constantemente a raspar o solo e isso é bom para ele”. Além disso, continua, “estão sempre a estrumar. Por onde andam, acabam por ir fertilizando o solo e também se nota que o solo está cada vez mais fértil. Nós não usamos nem queremos utilizar produtos de fertilização que sejam nocivos”. Por isso, conclui, “acho que a introdução das galinhas nos ajuda em várias frentes”.

A Academia da Compal foi criada há 11 anos para dotar pessoas de um rápido contato com a realidade no terreno e trazer o futuro para este seu regresso à agricultura, através de uma formação muito prática orientada para conseguirem identificar onde procurar as soluções específicas para os seus desafios específicos,

Madalena Lynce de Faria

A IMPORTÂNCIA DE PRESERVAR O SOLO

Para Nuno Gaspar Oliveira, CEO da NBI- Natural Business Intelligence, consultora de Negócios & Ecologia, um dos pontos fundamentais da agroecologia – a ciência que procura compreender as relações ecológicas entre os diferentes elementos do agroecossistema- é precisamente a “saúde do solo, que pode ser medida por indicadores como teor de matéria orgânica, valores dos nutrientes presentes, estrutura e compactação, diversidade florística, capacidade de regulação de águas superficiais e sequestro de carbono”. Outro pilar crucial é a “promoção da biodiversidade e da sua monitorização, quer em termos
de diversidade de espécies, como da complexidade dos habitats que formam os agroecossistemas equilibrados e resistentes”. Finalmente, um terceiro refere-se à “monitorização de pragas e doenças, de forma a prever a necessidade, ou não, de herbicidas, fungicidas e pesticidas”.

Atualmente Carlos percebe bem a necessidade dessa monitorização e a importância de evitar o uso de produtos fitofármacos. “Fiz a formação de produtos fitofármacos e foi aí que percebi mesmo o que é que eram esses produtos e o cuidado que tinha de se ter e principalmente os problemas. Ou seja, a partir do momento em que nós usamos esses produtos, entramos numa bola de neve em que estamos a destruir o solo. Portanto, vamos ter de estar constantemente a realimentar tudo. A partir daí, o meu objetivo foi sempre produzir de forma orgânica”.

O ex-técnico de som diz ainda que, no biológico, “é importante trabalhar variedades de cereja que nos ajudem a não ter de usar produtos” e que, nos últimos dois anos, “não usámos mesmo nada e este ano até pegou bem”. O problema, lamenta, foi o clima. “Este foi um ano mais ou menos bom. O único problema foi que houve uma grandíssima chuvada na principal altura da colheita e tivemos muitos estragos, muitas perdas, mas até essa altura tivemos um primeiro mês muito bom e depois quando veio essa chuvada tivemos mesmo muitos estragos”.

De resto, todos produtores da zona se ressentiram porque, explica Carlos, “na altura forte – nós temos cerejas/variedades que são precoces, temos as variedades que são da altura normal e as tardias – quando estavam todas mais-ou-menos naquele meio termo, veio uma chuvada muito grande e, daí para a frente, muito pouca gente teve cereja com qualidade para vender, porque a cereja racha com a água e sobram
algumas boas mas… olhávamos para as árvores e cerca de 70% da árvore tinha a cereja toda podre”.

Depois, continua, “houve pessoas que se deram ao trabalho de colher e outras que deixaram ficar. Porque a cereja está ali num limite dos custos. Ou seja, para ter lucro tem de se ter mesmo muita cereja. E para colher a cereja, também é mesmo difícil. Ou seja, para as pessoas se pagarem a si próprias é difícil. Se tiverem de andar a escolher a cereja na árvore é prejuízo e a maior parte das pessoas não fez nada”.

ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS ESTÃO A IMPACTAR MODELOS DE FRUTICULTURA

Segundo o CEO da NBI, Portugal, como muitas outras regiões, “está a sentir os efeitos das alterações climáticas, que vão desde invernos mais quentes a padrões de precipitação irregulares e eventos climáticos extremos mais frequentes, como é o caso das ondas de calor e granizo fora de época”. Este quadro, acrescenta, “está a impactar significativamente os modelos de fruticultura, que enfrentam vários desafios à sua resiliência e capacidade de adaptação”, sublinhando as “boas práticas” de agroecologia e de processos de agricultura regenerativa, tal como a instalação de sebes e arrelvamentos, que tem como objetivo integrar a Natureza no processo produtivo.

Promover o uso de variedades de frutos que requerem menos água, “mantendo a qualidade e o rendimento em cenários de maior incerteza” e a implementação de técnicas de irrigação e fertilização de precisão, “de forma a otimizar o uso da água e de a fornecer mais diretamente às raízes das plantas, reduzindo o desperdício e aumentando a eficiência” foram outros dos exemplos de práticas agrícolas sustentáveis destacadas pelo responsável.

Carlos reconhece, não apenas o valor dessas práticas, como a importância de uma boa localização. Escolheu a cereja porque é o fruto favorito da sua mulher e depois foram procurar a zona “mais produtiva do País” que, segundo o produtor, “tem muito frio, tem bastante Sol e tem, principalmente, muita água”. “Até há uma lenda”, conta, “que diz que a cereja gosta de estar virada para a Serra da Estrela e, por isso, estamos no sítio certo, porque, quando a Serra da Estrela está cheia de neve, com o vento, esta zona fica ainda mais fria. Com essa geada, acho que as árvores produzem mais”, afirma o produtor.

MERCADO BIOLÓGICO CRESCE, MAS O CAMINHO AINDA É LONGO

O ex-técnico de som acredita que o mercado biológico está a crescer porque as pessoas estão “mais conscientes” e porque se está a “chegar à conclusão de que, no biológico, até se poupa porque não é preciso gastar dinheiro em produtos”. O problema, avisa, “é a falta de mão de obra, que é um problema que nenhum modelo de produção resolve”.

Em Portugal, temos vários exemplos de projetos de fruticultura aliada à agroecologia e restauro ecológico de olivais, vinhas, amendoais e pomares de peras, maçãs, pêssegos e tantos outros frutos, mas ainda há um longo caminho a percorrer, principalmente enquanto se mantiver a falsa ideia de que recuperar a natureza e as suas funções leva à perda de produção,

Nuno Gaspar Oliveira

 

Madalena Lynce de Faria é categórica: “o paradigma está definitivamente a mudar e a sustentabilidade é
encarada como uma necessidade, um must have (algo que é preciso assegurar) e também como uma oportunidade (algo que é valorizado e incentivado)”. Mas, ressalva, “também é importante
dizer que a sustentabilidade sempre foi uma preocupação no setor – quem trabalha a terra e vive da terra tem a preocupação de a preservar e estimar e de o fazer para as gerações futuras. É uma característica inerente das pessoas no setor, e devemos reconhecê-lo”. Atualmente, continua, “existem mais conhecimentos, mais competências, mais ferramentas, incluindo tecnologia, e novas práticas para trabalhar na agricultura de forma sustentável” e, por isso, “há mudanças a fazer e a adesão a essas
mudanças tem ritmos diferentes, mas claramente vemos os profissionais (independentemente da escala que tenham) interessados em identificar, perceber e trazer para as suas explorações práticas mais sustentáveis”, aponta.

Nuno Gaspar Oliveira considera que os modelos de fruticultura biológica, de conservação e regenerativa
“possuem grande potencial de desenvolvimento” em Portugal, onde temos “vários exemplos de projetos de fruticultura aliada à agroecologia e restauro ecológico de olivais, vinhas, amendoais e pomares de peras, maçãs, pêssegos e tantos outros frutos”. Mas avisa, “ainda há um longo caminho a percorrer, principalmente enquanto se mantiver a falsa ideia de que recuperar a natureza e as suas funções leva à perda de produção”. Para o responsável, produzir fruta “é uma atividade nobre que não se coaduna com uma atitude de guerra contra a Natureza, mas sim com uma atitude simbiótica de fomentar o progresso humano em contexto de harmonia com o mundo natural”.

Quanto aos maiores desafios dos produtores agrícolas nacionais nos próximos tempos, são, para Madalena Lynce de Faria, a tecnologia e a tomada de decisão relativa à sua utilização. “A água é um desafio, as consequências e as adversidades decorrentes das alterações climáticas, a vulnerabilidade a doenças e pragas, os custos crescentes dos fatores de produção, os recursos humanos, todos estes são grandes desafios. A resposta passará em muitos casos, senão mesmo em todos, pela tecnologia. E o desafio último ou primeiro será esse: a capacidade de identificar a tecnologia adequada para a exploração e a capacidade de investimento nessa tecnologia”, conclui.

Em Portugal, temos vários exemplos de projetos de fruticultura aliada à agroecologia e restauro ecológico de olivais, vinhas, amendoais e pomares de peras, maçãs, pêssegos e tantos outros frutos, mas ainda há um longo caminho a percorrer, principalmente enquanto se mantiver a falsa ideia de que recuperar a natureza e as suas funções leva à perda de produção.

*Reportagem publicada originalmente em setembro de 2023, na revista física da Green Savers





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