Entrevista a António Carias de Sousa: “A redução do consumo de água passa pela equidade na alocação, pela minimização das perdas e pela sustentabilidade ambiental”



A engenharia, tal como outras áreas de conhecimento, tem também um importante papel a desempenhar no combate dos efeitos, e até das causas, das alterações climáticas.

António Carias de Sousa, Presidente da Ordem dos Engenheiros – Região Sul, falou com a ‘Green Savers’ sobre como pode a engenharia ajudar a proteger o planeta e os ecossistemas e serviços dos quais muitos seres, incluindo nós, dependem.

António Carias de Sousa, Presidente da Ordem dos Engenheiros – Região Sul

No que toca à água, um recurso vital cada vez mais escasso, mas que continua a não ser gerido da melhor forma, a engenharia pode contribuir para uma maior eficiência dos sistemas de distribuição e dos setores que mais água consomem em Portugal, em direção a uma verdadeira sustentabilidade ambiental das sociedades.

Green Savers (GS): A engenharia é, por definição, uma das disciplinas através das quais o humano modifica o mundo físico à sua volta em prol do melhoramento da vida humana. Nesse sentido, como pode a engenharia contribuir para reduzir o consumo de água, especialmente na agricultura, o setor que mais água consome em Portugal e um dos mais expostos à escassez desse recurso natural?

António Carias de Sousa (ACS): A engenharia tem várias definições possíveis e muitas finalidades. Uma delas poderá ser a aplicação dos princípios técnicos e científicos para a utilização sustentável dos recursos naturais, desde o planeamento, o projeto e a construção de infraestruturas, que contribuam para o funcionamento da sociedade, numa perspetiva de sustentabilidade forte, que contemple os seus três pilares fundamentais: económico, social e ambiental.

A redução do consumo de água passa pela equidade na alocação, pela minimização das perdas e pela sustentabilidade ambiental.

No caso específico da agricultura, vai ser necessário produzir a mesma, ou superior, quantidade de alimentos com a mesma, ou inferior, quantidade de água. A concretização desse desafio passa, no essencial, por dois vetores: i) reduzir as perdas nos sistemas de abastecimento e de distribuição; ii) utilização de culturas mais adaptadas às condições edafo-climáticas de cada região.

GS: Mais tecnologia poderá mesmo ser a solução para uma agricultura mais ambientalmente sustentável? Há quem defenda a recuperação de técnicas de agricultura tradicionais, e isso implica menos tecnologia.

ACS: Agricultura tradicional não implica, necessariamente, a utilização de menos tecnologia. A tecnologia é importante para utilizar as culturas mais adaptadas às condições edafo-climáticas de uma determinada região, passando pela adequada dotação de rega e pela eficiência na utilização dos recursos. Ou seja, poderá, e nalguns casos deverá, recorrer-se às técnicas tradicionais, mas sem o suporte tecnológico associado à engenharia dificilmente as mesmas terão sucesso, face a uma cada vez maior competição por recursos finitos e escassos – água e solo.

GS: Sabendo que a tecnologia pode ajudar a minimizar desperdícios, a otimizar produções e a um acompanhamento constante das culturas permitindo agir prontamente, será que todos os agricultores terão acesso a essas soluções ou só as grandes empresas o conseguirão? Pode a engenharia ajudar os pequenos agricultores a serem também mais sustentáveis?

ACS: Não só pode, como deve. Os sistemas de adução e de distribuição dependem das infraestruturas de uma determinada região. À escala dos pequenos agricultores terão que ser pensadas e autorizadas as culturas mais adequadas, bem como ser dada a formação necessária para que seja efetuada uma adequada gestão dos recursos disponíveis. Isso já está a acontecer, numa escala menor do que seria desejável, mas estão em curso diversos projetos para tornar isso uma realidade.

GS: Mesmo no campo das nature-based solutions, uma abordagem defendida amplamente para minimizar e restaurar os danos causados pelos humanos ao planeta, a engenharia poderá ter um papel a desempenhar?

ACS: Claro que sim. As soluções baseadas na natureza, ou “nature based solutions”, pretendem mimetizar a resposta do ambiente natural às diferentes pressões, com resultados evidentes e reconhecidos, nomeadamente a nível local. Por outro lado, sem as soluções de engenharia, suportadas no conhecimento técnico e científico, não será possível implementar essas soluções de forma efetiva e sustentável, pela simples razão de que são mais um contributo para uma utilização adequada dos recursos, mas não o único.

GS: As perdas de água nos sistemas de abastecimento são também um foco de preocupação. Considera que é precisa uma nova abordagem à forma são concebidos os sistemas de abastecimento? Qual seria? Isto considerando que se espera que cada vez mais pessoas vivam nas cidades e que a água disponível poderá, inversamente, ser cada vez menos.

ACS: De facto, isso é um foco de preocupação. Também neste caso, e mais uma vez, a palavra será – eficiência. Ou seja, redução de perdas. Os sistemas, de uma forma geral, estão estruturalmente bem concebidos. O que é que é necessário? Uma adequada manutenção, uma otimização, nomeadamente em termos dos consumos de energia, e uma adequada monitorização, com vista a responder aos problemas, de forma pró-ativa e não reativa, porque a segunda é muito menos eficaz.

O facto de cada vez mais pessoas estarem concentradas em grandes cidades é uma tendência irreversível, estando previsto que em meados do século atual, o número de pessoas que viverá nas grandes metrópoles corresponderá a mais de metade da população. Esses sistemas precisam de ser resilientes (capazes de manter o seu funcionamento face a diferentes tipos de pressões), eficientes (capazes de que cumprirem os seus objetivos sem perdas de água) e, eventualmente, redundantes (com capacidade para recorrerem a outras origens de água). Nessa perspetiva de redundância, é essencial que se equacionem origens alternativas, normalmente mais dispendiosas em termos de custos de investimento e de exploração, mas mais fiáveis ao nível da garantia das disponibilidades. Neste caso, podem e devem ser equacionadas soluções que passam pela reutilização de águas residuais, pela recolha e utilização de águas pluviais e, nos casos em que tal for necessário, pela dessalinização de água do mar.

Provavelmente, as grandes metrópoles terão que ser geridas, em termos da água, tal como uma bacia hidrográfica, em que existem fluxos de entrada e de saída. A mudança de paradigma, suportada na engenharia e na tecnologia, pode e deve passar pela recirculação de uma parte significativa do que seriam esses recursos, reutilizando-os, numa perspetiva de circularidade, bem como pela recuperação de subprodutos, transformando-os em matérias-primas.

GS: E no que toca às crises planetárias, as alterações climáticas, a poluição e a perda da biodiversidade, como pode a engenharia contribuir para combatê-las?

ACS: Provavelmente foram mencionadas três dos principais problemas que o Planeta, e aqueles que nele têm o seu habitat, enfrentam. Em termos de perda de biodiversidade as explicações serão muitas, mas, pelo menos a maioria delas, decorre da poluição e de uma sobre-exploração dos recursos disponíveis, a maioria dos quais são finitos e vulneráveis.

Quando se fala de alterações climáticas o foco é dirigido para uma tetralogia de nexus – água, energia, alimentação e clima. Os primeiros três parâmetros sempre estiveram ligados, e continuarão a estar, obrigando a um planeamento dinâmico que permita lidar com a aleatoriedade e a irregularidade da distribuição espacial e temporal desses parâmetros, com destaque para a água. Quando se considera a questão das alterações climáticas, acrescenta-se um nível adicional de complexidade, que torna esse planeamento dinâmico ainda mais complicado e, sobretudo, desafiante.

Não será possível dar resposta a essa necessidade sem conhecimentos técnicos e científicos, que suportam a utilização da engenharia e das medidas de engenharia que, nesta fase, terão que passar por medidas de minimização e também de adaptação, porque teremos de enfrentar a mudança.

GS: Considera que a engenharia e os engenheiros deviam ter uma voz mais audível no que toca à tomada de decisões relativamente a questões ambientais, sobretudo da água? Porque seriam importantes os contributos dessa disciplina na conceção de políticas sobre Ambiente?

ACS: Não sei se se trata de uma voz “mais audível” ou, necessariamente, “mais interventiva”. Não podemos ter dúvidas sobre a importância da engenharia na sociedade atual, aos mais diversos níveis, e a necessidade do seu contributo para evitar ou minimizar problemas, através de um adequado planeamento, ou, no limite, para encontrar soluções que permitam equacionar e resolver problemas.

Quando se pergunta, especificamente, relativamente à água? A estrutura da Diretiva Quadro da Água (Diretiva da União Europeia) assenta em vários pilares, um dos quais pressupõe uma maior participação dos diferentes atores envolvidos nos processos de planeamento e gestão da água, o que pressupõe os que a utilizam, os que procedem ao planeamento do processo e os que tomam decisões sobre o processo. Os engenheiros, não sendo os únicos, estão em todos esses grupos, muitas vezes em mais do que um, e têm a capacidade e a obrigação de contribuir para a antecipação dos problemas e, quando necessário, para a sua resolução, suportados no seu conhecimento técnico e científico, bem como nas diferentes especialidades da engenharia, de forma a contribuir de forma significativa para uma sociedade mais preparada para enfrentar todos os desafios, e são muitos, que temos pela frente.





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