Entrevista a Helena Freitas: É preciso combater espécies invasoras para evitar “perda de serviços importantes”



Depois de uma semana de intensos trabalhos em Bona, na Alemanha, terminou este sábado a 10ª sessão plenária do Painel Intergovernamental para a Biodiversidade e Serviços de Ecossistema (IPBES), uma plataforma das Nações Unidas criada em 2012 que reúne cientistas e especialistas de todo o mundo.

A instituição tem como missão fornecer aos decisores políticos, ao setor privado e à sociedade em geral o melhor conhecimento científico sobre o estado da biodiversidade e dos ecossistemas da Terra para que seja possível protegê-los da melhor forma possível, para o bem da humanidade e das demais formas de vida que connosco partilham o planeta.

Helena Freitas, Professora de Ecologia e Biodiversidade da Universidade de Coimbra, representou Portugal nesse encontro, na qualidade de ponto focal nacional designado pelo Governo. Em entrevista à ‘Green Savers’ a partir de Bona, a cientista revelou-nos as principais conclusões do encontro, que este ano teve como principal foco a ameaça à biodiversidade representada pelas espécies exóticas invasoras.

As espécies invasoras como uma das maiores ameaças à biodiversidade

Este ano, o plenário do IPBES centrou-se, sobretudo, na questão das espécies exóticas invasoras, cuja proliferação, disse-nos Helena Freitas, “constitui uma das cinco principais causas para a perda de biodiversidade a nível mundial, a par das alterações do uso do solo e do mar, da exploração direta de organismos, das alterações climáticas e da poluição”.

As acácias (nesta foto, uma Acacia cyclops) são consideradas um grupo de espécies invasoras em Portugal.
Foto: SAplants / Wikimedia Commons (licença CC BY-SA 4.0)

No final do ano passado, no âmbito da 15.ª cimeira global da biodiversidade (COP15), foi adotado o Acordo de Kunming-Montreal, que assume como uma das suas metas (Meta 6) “eliminar, minimizar, reduzir e/ou mitigar os impactos das espécies exóticas invasoras na biodiversidade e nos serviços dos ecossistemas”.

Agora, da 10.ª sessão do IPBES, emerge um documento, divulgado esta segunda-feira, que pretende responder “à necessidade de apoiar os decisores na compreensão do estado atual e das tendências das espécies exóticas invasoras, os seus impactos, as suas causas, a gestão e as opções políticas que melhor respondem aos desafios que colocam”, explicou a investigadora portuguesa.

E acrescentou que o relatório, que foi elaborado por 86 especialistas de 49 países ao longo dos últimos quatro anos, pretende “avaliar a variedade dessas espécies que afetam a biodiversidade e os serviços dos ecossistemas”, compreender “a extensão da ameaça que essas espécies representam para várias categorias de biodiversidade e serviços dos ecossistemas, incluindo os impactos na biodiversidade agrícola e na segurança alimentar, na saúde humana” e “as principais vias e os agentes da introdução e propagação dessas espécies entre países e dentro de cada país”.

Além disso, são também objetivos saber qual “o estado global e as tendências dos impactos dessas espécies e as intervenções de gestão associadas por região e sub-região, tendo em conta vários sistemas de conhecimentos e valores” e “o nível de sensibilização para a dimensão das espécies exóticas invasoras e os seus impactos”, bem como “a eficácia das atuais medidas de controlo internacionais, nacionais e subnacionais e das opções políticas associadas que podem ser utilizadas para prevenir, erradicar e controlar as espécies exóticas invasoras”.

Proliferação de invasoras pode causar a “perda de serviços importantes”

Questionada sobre a razão pela qual as espécies invasoras são consideradas uma das grandes ameaças à conservação da biodiversidade, Helena Freitas afirmou que “pelas suas características, em determinados contextos e oportunidade, as espécies invasoras têm maior capacidade de utilização dos recursos disponíveis e ocupam o território, sendo que tipicamente não permitem a instalação de outras espécies menos competitivas”.

Por isso, a proliferação dessas espécies não-nativas pode provocar “a simplificação dos ecossistemas” e, consequentemente, originar “uma perda de serviços importantes e a uma perda da sua resiliência”.

A título de exemplo, a académica recordou-nos os incêndios que recentemente devastaram Maui, uma ilha do arquipélago do Havai.

Incêndios em Maui, no Havai, devastaram áreas naturais, bem como zonas urbanas, nesse estado norte-americano no início de agosto.
Foto: Guarda Nacional dos EUA / Wikimedia Commons (licença CC BY 2.0)

“A maioria das áreas queimadas ocorreu em zona de pastagem e presença de arbustos secos não nativos que atualmente compõem cerca de 1/4 do coberto vegetal do Hawaii, e que facilitam a propagação dos incêndios”, avançou, salientando que “o abandono das grandes propriedades de açúcar e ananás permitiu a rápida invasão de gramíneas não nativas” e que “as gramíneas exóticas constituem um combustível especialmente potente; crescem rapidamente quando chove e ficam profundamente enraizadas no solo, disponibilizando uma camada permanente de combustível muito inflamável”.

E as espécies exóticas de gramíneas tendem a proliferar no rescaldo de incêndios, muito mais do que as nativas, pois crescem mais rapidamente e as suas raízes são profundas, e fazem, por isso, aumentar o risco de incêndio. Esse é um ciclo vicioso, uma vez que plantas invasoras geram mais combustível e os fogos dizimam as comunidades de plantas nativas e abrem caminho ao domínio pelas espécies exóticas.

“A não intervenção conduzirá a uma simplificação acelerada dos ecossistemas à escala global”

Algumas vozes podem insurgir-se contra medidas de erradicação de espécies invasoras, cuja presença foi resultado da mão humana, que as transportaram dos seus habitats de origem para terras distantes onde podem desestabilizar os ecossistemas locais.

No entanto, ainda que compreenda essa visão, Helena Freitas alertou que “a não intervenção conduzirá a uma simplificação acelerada dos ecossistemas à escala global”, um cenário em que sairão a ganhar “espécies mais competitivas e tipicamente beneficiadas pelas atividades humanas que, em última análise, são as que prejudicam a saúde e o bem-estar dos ecossistemas e da vida em geral”.

Ademais, a cientistas sublinhou que “a perda de serviços de provisão e regulação destes novos ecossistemas aumentará a dificuldade de acesso a bens essenciais, levando a mais pobreza e desigualdade”.

A comunidade científica mundial reconhece que grande parte das espécies e ecossistemas estão atualmente ameaçados pela expansão das exóticas invasoras, sendo exemplo dos impactos desse desequilíbrio ecológico as ilhas oceânicas, onde “a maioria de todas as extinções de mamíferos, aves, anfíbios, répteis, caranguejos terrestres, caracóis terrestres e insetos” resulta, direta ou indiretamente, da presença dessas espécies não-nativas.

Como se não bastasse, as espécies invasoras são também a causa de prejuízos económicos significativos. Estima-se que em 2001 os danos causados por elas em 2001 tenham atingido os 1,4 mil milhões de dólares a nível global. Em 2019, as perdas terão mesmo ultrapassado os 423 mil milhões de dólares.

E o aumento das invasoras leva a uma maior uso de pesticidas para combatê-las, prática que agrava ainda mais a pressão sobre a biodiversidade, já fortemente ameaçada, além de representar riscos para a saúde humana.

Um documento que será “útil na formulação das políticas nacionais” de combate às invasoras

O relatório hoje tornado público pela IPBES contêm informação que Helena Freitas considera ser “da maior importância para tratar uma temática complexa e cuja resolução implicará uma intervenção técnica mais robusta e eficaz, e uma colaboração mais estreita entre Estados”.

Subscrito por mais de 140 países, incluindo Portugal, este documento, segundo a cientista, será “útil na formulação das políticas nacionais” de combate às espécies exóticas invasoras.

Nele, é revelado que mais de 37 mil espécies terão sido introduzidas pelos humanos “em todas as regiões e biomas da Terra”, fora dos seus habitats de origem, tornando-se espécies exóticas depois de estabelecidas. Desse total, mais de 3.500 tornaram-se invasoras, competindo com as espécies nativas e ocupando os seus nichos ecológicos.

Atualmente, estima-se que sejam registadas cerca de 200 novas espécies invasoras por ano, “um ritmo sem precedentes”, segundo os relatores. Até 2050, o número de espécies exóticas invasoras poderá ser 36% superior ao registado em 2005 caso nada seja feito.

Poster criado para a IPBES10 mostra algumas das espécies classificadas como invasoras no novo relatório.
Fonte: IPBES / Facebook

De acordo com os números apresentados no documento da IPBES, 60% do declínio e da extinção de espécies nativas tem sido causado pelas invasões biológicas, sendo que as ilhas são os locais onde o fenómeno é mais preocupante. Dizem os especialistas que 90% das extinções globais por espécies exóticas acontecem em ilhas.

O relatório diz-nos ainda que mais de 2.300 de todas as espécies classificadas como exóticas invasoras são encontradas em terras de povos indígenas um pouco por todo o planeta, colocando em risco a qualidade de vida desses grupos humanos, afetando a sua autonomia e as suas identidades culturais, e causando mesmo a perda de meios de subsistência.

Num cenário como este, os autores do documento denunciam que as políticas de gestão de espécies invasoras têm sido insuficientes para fazer face a um problema que agudiza uma das maiores crises planetárias dos nossos tempos: a perda de biodiversidade.

Perto de 45% dos países abrangidos pela análise da IPBES não investem na gestão das espécies invasoras e só 20% dos países têm, de facto, “legislação ou regulamentação nacional direcionada especificamente para a prevenção e controlo de espécies exóticas invasoras”, segundo informações avançadas à ‘Green Savers’, e mesmo quando existe essa legislação pode estar fragmentada e ser díspar entre setores.

“As diferenças de perceção, incluindo interesses e valores contraditórios, da importância e urgência da ameaça das espécies invasoras, associadas à falta de consciência da necessidade de uma resposta coletiva e coordenada, bem como a lacunas nos dados e nos conhecimentos, podem dificultar a gestão das espécies exóticas invasoras”, alerta o relatório.

Falta de um “sistema global de observação da biodiversidade” coloca em risco esforços

“Dispomos de um sistema global de observação do clima, mas não de um sistema global de observação da biodiversidade”, lamenta Helena Freitas, alertando que não há “capacidade instalada” para avaliar em contínuo a biodiversidade nem “a eficácia da implementação das políticas com vista à sua conservação e uso sustentável”.

Para a docente da Universidade de Coimbra, “atualmente, os dados relativos à biodiversidade são recolhidos de acordo com protocolos distintos, armazenados em bases de dados dispersas, com muitas lacunas e nenhuma capacidade operacional, sem estruturas dedicadas para garantir a recolha a longo prazo e o armazenamento adequado de dados”. E essas falhas são particularmente visíveis nos países em desenvolvimento, onde, ironicamente, se registam os níveis de maior biodiversidade.

Por isso avisou-nos que “vai ser necessário investir e desenhar mecanismos efetivos de apoio aos países com menos recursos!”.

A biodiversidade em Portugal: “é preciso fazer mais e o momento é crítico”

A perda de biodiversidade é uma crise de abrangência planetária, pelo que Portugal não lhe escapa. Os Livros Vermelhos lançados recentemente, como o dos mamíferos, dos invertebrados e dos peixes, fizeram soar alguns alertas com o aumento do grau de ameaça que alguns grupos e espécies hoje enfrentam.

Para Helena Freitas, “é preciso fazer mais” pela conservação da diversidade biológica no país e “o momento é crítico”. Apontando que é já clara “a magnitude das ameaças sobre a biodiversidade” e reconhecendo “os conflitos que se agudizam entre a conservação dos recursos naturais e as soluções económicas, mesmo da chamada economia verde”, a cientista defende que “é preciso uma política de conservação da biodiversidade forte”, em que todas as partes interessadas estejam envolvidas, a trabalhar em conjunto e a conceber soluções.

A especialista disse-nos que o que realmente faz parte, no que toca à conservação da biodiversidade em Portugal, é “o reconhecimento da necessidade de investigar e proteger”. Para ela, não será possível um “alinhamento saudável entre a economia e a conservação da natureza sem conhecimento”.

Como tal, considera que “são necessários mais apoios para esta área e para a formação de recursos humanos”.

O mangusto-de-java (Herpestes javanicus) é um dos mamíferos que surgem na Lista Nacional de Espécies Invasoras.
Foto: Chung Bill Bill / Wikimedia Commons (licença CC BY 2.0)

Em Portugal, a gestão de espécies exóticas invasoras está enquadrada no Decreto-lei 92/2019, de 10 de Julho, competência que está sob a alçada do Instituto para a Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), que constitui uma Lista Nacional de Espécies Invasoras, da qual fazer parte várias centenas de espécies de diversos grupos taxonómicos: algas, plantas, moluscos, mamíferos, insetos, peixes, aves, répteis e anfíbios.

Da conservação da biodiversidade pode depender o futuro da humanidade

Olhando para o que poderá esperar o planeta no futuro, Helena Freitas contou-nos que hoje “há uma perceção generalizada de que nos aproximamos de um possível colapso ambiental cuja magnitude ameaça a própria sobrevivência da humanidade”. Esse reconhecimento é motivado, sobretudo, pelos impactos das alterações climáticas, que cada vez mais se fazem sentir, até mesmo de formas catastróficas.

Numa era em que a marca humana torna-se indelével sobre o planeta, a vida digna de uns não pode ser alcançada à custa da vida indigna dos outros, acredita Helena Freitas. Por isso, é preciso “alargar o nosso conceito de dignidade para abranger não só os seres humanos, mas também todas as formas de vida”.

“Num mundo à beira de se tornar inabitável, a dignidade humana está inexoravelmente ligada à nossa consideração e respeito pelas outras espécies e pela vida em geral”, alertou.

Questionada sobre se, para salvar o planeta, as sociedades humanas têm, inevitavelmente, de mudar a forma como veem e lidam com a Natureza e com todas as formas de vida que a constituem, Helena Freitas não tem dúvidas.

“A transição ecológica e a promoção da sustentabilidade, é o caminho mais transformador, mais racional e mais inteligente que qualquer organização ou comunidade pode adotar e promover”, afirmou a cientista, sublinhando que “a felicidade humana estará igualmente mais próxima de uma relação existencial comprometida com o outro e com as demais formas de vida do que prisioneira de uma visão materialista e individualista do mundo”.

Uma transformação imprescindível para assegurar que a vida na Terra, tal como a conhecemos, não se torne um mero registo sulcado na superfície rochosa do planeta. Mas para isso é preciso agir, e agir já, pois, como nos disse Helena Freitas, “o tempo corre contra nós”.

Portugal no IPBES: “Sinto sempre alguma frustração por não termos uma participação maior”

Na 10.ª sessão do IPBES, Portugal foi representado apenas por Helena Freitas, enquanto ponto focal nacional. Portugal é um dos membros da plataforma e participa através da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), mas, segundo Helena Freitas, “não financia a IPBES”. Embora nos tenha dito que o evento correspondeu às expectativas que consigo levou para Bona, a cientista, referindo-se ao envolvimento português, confessou-nos que “sinto sempre alguma frustração por não termos uma participação maior”.

Ainda que o país não tenha marcado presença com uma delegação, Helena Freitas assegurou-nos que “temos tido cientistas portugueses a participar com muito empenho e dedicação na redação e avaliação de documentos, e temos uma cientista portuguesa no MEP (Multidisciplinary Expert Panel)”, referindo-se à Professora Isabel Sousa Pinto, da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto.

Entre outras funções, o MEP disponibiliza apoio científico e técnico ao plenário do IPBES, bem como assegura a qualidade científica dos materiais apresentados durante a sessão.





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