Entrevista a Mark Caney: “Acredito que todos os países podem fazer mais para proteger o ambiente marinho”
Foi em 1976, com 18 anos de idade, que Mark Caney se estreou no mundo do mergulho. Na altura, estava integrado nas Forças Armadas britânicas, mas a paixão pelo oceano e pela vida marinha levou a que viesse a deixar o serviço militar, e aos 23 anos abriu um centro de mergulho em Paphos, na costa do Chipre.
Desde então, tem passado a sua vida a navegar os mares ou a explorar as maravilhas que se escondem abaixo da superfície, tendo usado a fotografia submarina para mostrar ao mundo a vida que pulula nos oceanos.
Foi Presidente da Federação Europeia de Mergulho Subaquático, Presidente do Conselho de Formação de Mergulho com Recirculação de Ar e assumiu ainda diversos cargos de destaque no Conselho Mundial de Formação de Mergulho Recreativo. Atualmente, Mark Caney é o responsável da Fundação PADI AWARE para as regiões da Europa, do Médio Oriente e de África, uma iniciativa da Associação Profissional de Instrutores de Mergulho (PADI) que tem como objetivo promover ações locais para a conservação global dos oceanos.
Caney estará em Portugal este fim-de-semana para participar nas Diving Talks, um evento internacional que se realiza em Lisboa, organizado pela Portugal Dive, e que reunirá na capital portuguesa mergulhadores de todo o mundo que são também agentes da conservação da biodiversidade oceânica.
Antes desse encontro, o mergulhador e explorador marinho falou com a ‘Green Savers’ sobre o atual estado dos oceanos do planeta, sobre o que se está a fazer e o que deveria estar a ser feito e sobre o que podemos aprender com os golfinhos, animais pelos quais nutre uma especial admiração. E deixa uma mensagem: “todos os países podem fazer mais para proteger o ambiente marinho”.
“Os oceanos são fundamentais para a saúde do nosso planeta”
A proteção da vida marinha é um dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) estabelecidos pela comunidade internacional na Agenda 2030. No entanto, apesar do reconhecimento da urgência de proteger aquele que é considerado o maior ecossistema do planeta, a poluição, as alterações climáticas e a captura excessiva de espécies marinhas continuam a devastar habitats e a pressionar a vida marinha, empurrando diversas espécies e populações em direção à extinção.
Ainda assim, Mark Caney considera que a humanidade está cada vez mais a ver os oceanos como uma parte central da vida na Terra.
“Durante muito tempo, muitas pessoas viram os oceanos como algo que ocasionalmente atravessávamos em viagem, mas pouco sabiam sobre o que acontecia abaixo da superfície”, conta-nos o explorador.
“Assumia-se que se atirássemos alguma coisa para o mar, ela desapareceria e o nosso problema estava resolvido”, recorda, salientando que “agora sabemos que esse não é certamente o caso, e que os oceanos são fundamentais para a saúde do nosso planeta”.
O Tratado do Alto Mar: Um passo positivo, mas ainda há muito para fazer
Porventura foi por causa dessa mudança de perspetiva que, em março último, depois de quase 20 anos de negociações infrutíferas, os Estados-membros da Organização das Nações Unidas (ONU) chegaram a acordo sobre o Tratado do Alto Mar, que tem como propósito proteger a biodiversidade em águas internacionais, ou seja, aqueles ecossistemas e habitats que estão além das jurisdições nacionais e, por isso, mais vulneráveis a atividades ambientalmente prejudiciais.
O acordo foi formalmente adotado a 19 de junho deste ano, e no mês passado, nas margens da semana de alto-nível da Assembleia Geral da ONU, em Nova Iorque, quase 70 governos assinaram-no, sinalizando a sua vontade para ratificar o documento, sem o qual não será possível implementar o Acordo de Kunming-Montreal (também conhecido como Estrutura Global para a Biodiversidade), que pretende proteger e conservar pelo menos 30% dos oceanos até 2030. Portugal foi um dos primeiros países a assinar o Tratado do Alto Mar, logo no dia 20 de setembro.
Mark Caney destaca a importância deste acordo recordando que “os oceanos geram 50% do oxigénio de que precisamos, absorvem 25% de todas as emissões de dióxido de carbono e capturam 90% do excesso de calor gerado por essas emissões”. Por isso, declara que “é crucial” protegê-los.
“Acredito que todos os países podem fazer mais para proteger o ambiente marinho”, afirma, apontando que “a maioria deles, incluindo Portugal, estão bem cientes dos problemas e têm tomado medidas para minimizá-los”. No entanto, alerta que “mais ainda precisa de ser feito a uma escala global”.
O tratado só vigorará a partir do momento em que for formalmente ratificado pelos parlamentos nacionais de pelo menos 60 países, pelo que, por agora, resta-nos aguardar, na esperança de que a retórica política encontre correspondência em ações concretas e no cumprimento dos compromissos assumidos.
Pôr a conservação nas mãos das comunidades
A conservação de base comunitária, isto é, projetos liderados pelas pessoas, é vista como uma das formas mais sustentáveis, duradouras e eficazes de proteger o mundo em que vivemos e os ecossistemas dos quais nós, humanos, e todas as outras formas de vida dependem.
Para Caney, “ações lideradas pelas comunidades são quase sempre muito benéficas”. O mergulhador explica-nos que a Fundação PADI AWARE tem organizado várias ações de limpeza de praias um pouco por todo o mundo.
Limpar uma praia, retirando o ‘lixo’ oriundo de atividades humanas, é, por si só, algo positivo para os ambientes marinhos e costeiros, mas Caney diz que também é importante para cultivar e reforçar nos participantes um sentimento de proteção face aos oceanos.
“É importante que as comunidades sintam a necessidade de protegerem os oceanos do mundo, especialmente aqueles que lhes são mais próximos, e fazer parte de tais atividades é uma excelente forma de construir esse espírito”, argumenta, recordando que, no dia 24 de setembro de 2022, a PADI AWARE Foundation juntou-se à organização ambientalista portuguesa Oceanum Liberandum numa ação de limpeza subaquática em Sesimbra.
Ver esta publicação no Instagram
Essa ação “quebrou o recorde mundial, com 597 participantes”, diz-nos Caney, tendo sido recolhidas mais de três toneladas de resíduos, que, sempre que possível, foram encaminhados para reciclagem.
Lições de golfinhos: “Temos de desenvolver uma forma sustentável de viver no nosso mundo, tal como eles”
“Os golfinhos têm uma inteligência que rivaliza com a nossa, e sabemos que têm uma linguagem e uma cultura próprias”, explica Mark Caney, para quem esses animais “vivem em coexistência com o seu ambiente”, uma vivência com a qual os humanos têm muito a aprender.
“Temos de desenvolver uma forma sustentável de viver no nosso mundo, tal como eles”, afirma.
Um mergulhador com várias décadas de experiência, Mark Caney desenvolveu uma particular admiração por golfinhos. Tudo começou com um “memorável encontro” com um golfinho no Mar Vermelho, durante uma noite iluminada pela Lua.
Um intruso em ‘casa alheia’, Caney recorda que ele e o golfinho interagiram durante várias horas e foi essa experiência que o fez pensar que “havia uma história que precisava de ser contada”. O livro Dolphin Way – Rise of the Guardians é o resultado desse reconhecimento, embora ser autor nunca tenha propriamente feito parte dos seus planos.
“A motivação, para mim, foi ouvir falar, um dia, de alguns botos terem sido encontrados mortos e que os cientistas acreditavam terem sido os golfinhos os culpados”, conta-nos Caney.
“Até então, sempre pensei que os golfinhos eram criaturas muito queridas e adoráveis que viviam vidas idílicas”, mas esse incidente espoletou uma reflexão: “talvez eles realmente tenham vivido vidas utópicas, talvez a sua sociedade estivesse perfeitamente alinhada com o seu mundo de uma forma que a nossa [humana] não está… e talvez todos os impactos negativos das atividades do Homem tenham começado a perturbar essa utopia”.
No seu livro, Caney dá-nos a conhecer as investigações que fez sobre “as vidas dos golfinhos e as pressões que eles enfrentam” e sobre como as sociedades humanas podem estar a alterar as culturas desses animais, alertando que esse é apenas um de vários grupos de seres marinhos que hoje procuram sobreviver num mundo em plena transformação.
“Os golfinhos têm um lugar especial no coração de muitas pessoas, uma vez que são tão obviamente inteligentes e brincalhões. No entanto, claro, são apenas uma parte da teia trófica do oceano, e precisamos de protegê-la na sua totalidade”, afirma Caney.
Para ele, esses icónicos mamíferos marinhos “são um poderoso símbolo do que o oceano tem de melhor, mas se os queremos preservar temos de preservar todas as partes do ecossistema”.
O mergulho e a conservação dos oceanos
Mark Caney descreve os mergulhadores como “os embaixadores da humanidade no mundo submarino”. Como tal, “vemos, por vezes, os danos que estão a ser feitos em primeira-mão, pelo que estamos numa posição para influenciar outras pessoas e para agirmos diretamente”.
Ele recorda-nos que, nos últimos 30 anos, a PADI e a AWARE “têm construído uma voz verdadeiramente única pela proteção do mundo subaquático” e “definido metas ambiciosas para a conservação do oceano” através da estratégia ‘Blueprint for Ocean Action’, que tem como objetivo impulsionar o combate às alterações climáticas, a criação de áreas marinhas protegidas e a conservação de espécies vulneráveis.
O mergulho, segundo Caney, é importante para aumentar a consciência das pessoas sobre as ameaças a que os oceanos, e toda a vida neles contida, estão sujeitos, numa lógica de ‘conhecer para proteger’.
Embora apenas uma pequena fração da população mundial tenha alguma vez feito mergulho, Caney diz que aqueles que já o fizeram “tendem a ter um maior apreço pelo oceano e por tudo o que nele existe”. E recorda as palavras de um poeta e ambientalista senegalês, Baba Dioum, proferidas em 1968, mas que se mantêm fortemente atuais: “No final de contas, só conservaremos aquilo que amamos. Só amaremos aquilo que compreendemos. Só compreenderemos aquilo que nos for ensinado”.
Tal como todas as atividades humanas, o mergulho tem também os seus impactos no ambiente. Por isso, Caney afirma que “é importante que os mergulhadores ajam de forma responsável”, razão pela qual, continua, “a PADI enfatiza fortemente as melhores práticas em todos os nossos cursos para assegurar que os mergulhadores sabem o que devem e o que não devem fazer”.
Além disso, acrescenta o britânico, “temos também agora padrões ISO, acordados pela indústria, sobre como os operadores de mergulho podem gerir os seus negócios da forma mais ambientalmente amigável para preservar o ambiente aquático que todos amamos”.
Durante as Diving Talks, em Lisboa, Caney irá falar, precisamente, sobre “o que a PADI AWARE Foundation está a fazer para ajudar o ambiente marinho e como os mergulhadores se podem envolver”.
As empresas são parte do problema, mas podem ser parte da solução
Para Mark Caney, “muitas empresas, especialmente aquelas que têm investidores públicos, estão bem conscientes da sua imagem e vão querer continuar a fazer o que está certo”.
Ainda assim, alerta que toda a sociedade tem um importante papel a desempenhar para travar o ‘greenwashing’, responsabilizar as empresas pela forma como tratam o planeta e os oceanos e exigir as mudanças necessárias.
“Os consumidores podem ajudar ao serem seletivos naquilo em que gastam o seu dinheiro, e os governos podem implementar regulamentos e fornecer incentivos para encorajar as melhores práticas”, defende.