Tratado do Alto Mar: Organizações e cientistas portugueses saúdam acordo, mas deixam avisos



Após quase duas décadas de negociações tortuosas, este fim-de-semana os países do mundo finalmente chegaram a um acordo para proteger a biodiversidade em águas internacionais, ou seja, aqueles ecossistemas e habitats que estão além das jurisdições nacionais e, por isso, mais vulneráveis a atividades ambientalmente prejudiciais.

António Guterres, Secretário-geral das Nações Unidas, apelidou o resultado de “uma vitória para o multilateralismo”, que tem recentemente estado sob grande pressão, especialmente devido ao atual contexto geopolítico e à tensão crescente entre grandes potências políticas mundiais, como os Estados Unidos da América, a Rússia e a China.

Apesar das dificuldades e dos contratempos, as delegações nacionais alcançaram, por fim, um acordo que agora dá corpo ao que é já conhecido como o Tratado do Alto Mar, que, em linhas gerais, cria uma estrutura legal que permitirá designar 30% dos oceanos como áreas protegidas, canalizar mais fundos para a conservação da vida marinha e estabelecer regras sobre o acesso e a utilização dos recursos marinhos. Além disso, o acordo permitirá também regular atividades económicas que se desenrolem em águas internacionais para minimizar os seus impactos sobre os ecossistemas, como a pesca, o tráfego marítimo e até a mineração em mar profundo, através, por exemplo, de avaliações de impacte ambiental.

A importância deste tratado não pode ser subestimada, uma vez que, nesta altura, cerca de 10% de todas as espécies de plantas e animais marinhos enfrentam o risco de extinção, segundo estimativas da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN), uma percentagem que poderá chegar aos 90% até 2100 se as emissões de gases com efeito de estufa se mantiverem elevadas, de acordo com um estudo publicado no ano passado na revista ‘Nature Climate Change’.

O representante da Organização das Nações Unidas afirma que este tratado é essencial para a concretização dos objetivos traçados pela Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e pela Estratégia Global para a Biodiversidade (também conhecido como Acordo de Kunming-Montreal) que prevê a proteção de, pelo menos, 30% dos ecossistemas em terra, no mar, na costa e de água doce até 2030.

O acordo suscitou também reações por parte da Comissão Europeia. Virginijus Sinkevičius, comissário responsável pelas pastas do Ambiente, Oceano e Pescas, descreveu o tratado como o “Acordo Azul” e declarou que se trata de “um momento histórico para os oceanos” e que foi agora dado “um crucial passo em frente” na preservação da diversidade da vida marinha, “que é essencial para nós e para as gerações vindouras”.

Agora, resta que 60 países ratifiquem o tratado nos respetivos parlamentos para que, por fim, passe a ter força de lei.

O que dizem os cientistas?

Maria João Franco Bebianno, Professora Catedrática Jubilada da Universidade do Algarve e membro do Centro de Investigação Marinha e Ambiental (CIMA), considera que a aprovação do Tratado ao Alto Mar “terá repercussões importantes na proteção e sustentabilidade dos oceanos e da biodiversidade”, pois “o oceano é o suporte de vida na terra e devem ser feitos todos os esforços para melhorar a sua saúde”.

Para a investigadora, este acordo permitirá definir “as fundações que irão permitir uma melhor gestão e proteção da biodiversidade marinha em áreas para além da jurisdição nacional, que é um assunto crítico para a manutenção da saúde do oceano”.

Mas deixa um aviso: o sucesso do Tratado dependerá de uma “implementação efetiva” por parte dos países signatários e tal exigirá “um trabalho conjunto de colaboração entre governos, cientistas e organizações da sociedade civil”. Maria João Franco Bebianno defende que “devem ser feitos todos os esforços para proteger e preservar o oceano para as gerações futuras”.

O alto-mar representa dois terços dos oceanos a nível global e cobre quase metade da Terra, o ‘planeta azul’.
Foto: Thomas Vimare / Unsplash

Para José Xavier, investigador do Centro de Ciências do Mar e do Ambiente (MARE), da Universidade de Coimbra, o acordo alcançado “sem dúvida que foi um grande feito para a melhor gestão das águas internacionais”, ainda para mais quanto, atualmente, somente 1% das águas além das jurisdições nacionais estão protegidas por lei.

Em declarações à ‘Green Savers’, o cientista destaca o “papel importante” que Portugal desempenhou ao longo de todos os anos de negociações deste tratado, e salienta que agora falta “definir melhor os vários níveis de proteção nas várias regiões”, para que exista uma uniformidade quanto ao estabelecimento de áreas marinhas protegidas em alto mar, e “compreender melhor como este Tratado se relaciona com outras convenções”, tais como o Tratado da Antártida, que já abrange águas internacionais abaixo dos 60 graus sul de latitude, e a Convenção das Nações Unidas sobre do Direito do Mar, “que possui ações para a extensão da plataforma continental dos países”.

José Xavier diz que agora é preciso que os vários países passem o acordo para os seus respetivos ordenamentos jurídicos nacionais, algo que “pode levar anos”, pelo que quanto mais cedo isso acontecer, mais cedo se poderá começar a proteger os oceanos e toda a vida que neles habita e que deles depende, incluindo nós humanos.

Por seu lado, Joana Xavier, do Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental (CIIMAR), da Universidade do Porto, destaca que este “é um acordo há muito aguardado” e que considera ser “ambicioso e unificador”, que dá provas de que “é possível unir as mais diversas vozes (governos, sociedade civil incluindo populações indígenas, instituições científicas e académicas, e organizações não governamentais) em torno de uma visão coletiva de sustentabilidade (e equidade) para o futuro não só do Oceano, mas do Planeta como um todo”.

As tartarugas-verdes (Chelonia mydas) são apenas um das espécies de tartarugas marinhas afetadas pelas atividades em alto-mar, pois atravessam os oceanos em grandes migrações para se reproduzirem.
Foto: kfa / Wiki Commons

A cientista diz-nos, no entanto, que se podem desde já antever alguns “desafios”, como a relação do Tratado do Alto Mar com “outros instrumentos e quadros legais”, sobretudo com os que dizem respeito à pesca e à mineração em mar profundo, e também “a mobilização dos recursos financeiros necessários à implementação do acordo”.

“Será crucial que os compromissos e processos vertidos no acordo sejam devidamente implementados, monitorizados e avaliados. E isso requererá uma enorme cooperação e coordenação internacional entre todas as partes”, observa Joana Xavier.

O que dizem as organizações?

Catarina Grilo, responsável de Conservação e Políticas da ANP|WWF, diz-nos que o Tratado do Alto Mar agora conseguido “corresponde, de facto, ao resultado pretendido”, pois, além de ser legalmente vinculativo (pelo que se os Estados-parte não cumprirem com as regras serão penalizados), “cria, finalmente, um quadro legal internacional para a conservação da vida marinha e a contenção de atividades nocivas em pelo menos dois terços do oceano, localizado em águas internacionais”.

A ambientalista releva como um dos principais pontos positivos a obrigação de “atividades que possam ter um impacto na vida do oceano” passarem a estar sujeitas a avaliações de impacte ambiental, “criando-se assim uma janela de oportunidade para travar as atividades prejudiciais em curso e reduzir impactos ambientais acumulados sobre o oceano”, não a exploração de minerais nas profundezas dos mares, mas também “a captura e armazenamento de carbono em águas profundas, atividades sobre as quais há ainda muito pouco conhecimento”.

Conta-nos Catarina Grilo que a ANP|WWF vê também como positivo o facto de o tratado criar um órgão técnico e científico que “será fundamental para assegurar que as propostas e planos de gestão para áreas marinhas protegidas sejam devidamente avaliados, e que os relatórios de avaliação de impacto ambiental sejam recebidos e tornados acessíveis à comunidade internacional”, além de definir um Comité de Implementação e Cumprimento, que atuará como instância de resolução de litígios “que dá uma oportunidade aos Estados de tomarem medidas contra possíveis infrações”.

O corais contam-se entre os seres marinhos (uma combinação entre pequenos invertebrados e microalgas) que mais estão a sofrer com a poluição marinha e com o aumento da temperatura dos mares.
Foto: NOAA / Wiki Commons

Olhando para Portugal, diz que a aprovação deste acordo cria uma boa oportunidade “para trazermos para cima da mesa a urgência de o Estado português avançar de vez com a regulamentação da Rede Nacional de Áreas Marinhas Protegidas, que está há vários anos em preparação, mas que tarda em ver a luz do dia”.

Será esse regulamento, explica-nos, que permitirá a “proteção efetiva de 30% do nosso mar”, uma vez que se estima que ainda menos de 10% das águas nacionais estão designadas como áreas marinhas protegidas (4% até às 200 milhas náuticas da costa, mas 7% se se considerar a plataforma continental estendida, até às 350 milhas náuticas). Para mudar isso e alcançar as metas definidas quer no Tratado do Alto Mar, quer no Acordo Global da Biodiversidade, é preciso mais investimento e uma melhor gestão das áreas marinhas protegidas, pois hoje “não estamos a proteger ativa e adequadamente a nossa natureza”.

Carolina Silva, da organização Zero, assevera que este acordo é “um passo histórico fundamental que nos coloca um pouco mais perto de concretizar a meta global de proteger 30% do oceano até 2030” e salienta também o reforço dos “critérios subjacentes às avaliações ambientais para analisar o potencial impacto das atividades comerciais antes do seu início”. Mas, a esse respeito, avisa que “os organismos internacionais existentes que já regulam atividades humanas como o transporte marítimo, as pescas e própria mineração em mar profundo” poderão, pelo menos até que o tratado entre em vigor, continuar a permitir essas atividades “sem seguirem as normas de impacto ambiental dispostas no Tratado”.

“A experiência diz-nos que estes organismos regulatórios, como a Organização Marítima Internacional, falham muitas vezes em alavancar a ação ambiciosa, rápida e rigorosa que se exige num contexto de emergência combinada do clima e do oceano”, aponta Carolina Silva, mas reconhece que “a expectativa é de que este acordo agora alcançado possa ajudar a reforçar a gestão destas atividades, contribuindo para efetivar abordagens coletivas que vão além do business-as-usual”.

Ainda assim, afiança que é “um sinal político crítico que coloca, finalmente, o oceano no topo da agenda internacional e que se espera que alavanque uma ação global no sentido de proteger este bem comum das crescentes pressões da atividade humana”, e espera que este tratado represente “uma abordagem precaucionária à exploração do alto mar, contribuindo para a regulação de atividades altamente poluentes e danosas como a sobrepesca, o transporte marítimo e a mineração em mar profundo”.

Apesar do que de bom este novo acordo traz para impulsionar a proteção dos oceanos e da vida marinha que neles pulula, Inês Cardoso, da Direcção Nacional da Liga para a Protecção da Natureza (LPN), o acordo peca por colocar como um dos principais princípios sobre os quais assenta o do ‘poluidor-pagador’, que defende, recordando a “hierarquia da mitigação”, que “deverá ser o último recurso e não a primeira linha orientadora”.

Por outro lado, a dirigente ambientalista afirma que a meta da proteção de 30% dos oceanos surge como algo indefinido “perante do vortex de perda de biodiversidade”, e porque o que acontece fora dessas áreas protegidas é “igualmente importante”.

“Proteger 30% de mar alto, e manter a partir de terra os objetivos expressos de crescimento económico como se este fosse possível e infinito, muito pouco irá contribuir para o alcançar dos objetivos de conservação, que são, por um lado reduzir a taxa de redução da biodiversidade, e por outro fomentar as condições para que esta recupere o que se tem vindo a perder”, acautela Inês Cardoso, que se mostra cética quanto à real capacidade que este acordo terá para verdadeiramente proteger a vida marinha.

“Se até aqui, nem as zonas dentro da jurisdição nacional, representaram uma prioridade concretizada, dificilmente que está fora do alcance logístico será prioritário”, aponta, e deixa-nos um conselho: “aguardemos”.

“Assegurar a conservação e o uso sustentável da diversidade biológica marinha das áreas além da jurisdição nacional, para o presente e no longo-prazo”. Este é o grande objetivo geral definido no texto do tratado como está atualmente redigido, e que foi acordado pelas delegações dos vários países das Nações Unidas, uma missão ambiciosa e inquestionavelmente urgente.

Resta-nos agora esperar para ver se os países signatários, realmente, colocam a proteção dos oceanos no topo das suas listas de prioridades e se são capazes de escutar os apelos da História, e de traduzir a retórica política em ações concretas, para o bem de todos, no mar, em terra, no planeta.





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